A surdez moral dos nossos governantes…


«JUSTIÇA», de Fernando Pessoa


De todos quantos diretamente sofreram pela guerra, dos que efetivamente sofreram a mesma guerra, são os mutilados os que mais pungentemente, porque mais visivelmente, fazem presa nossa compaixão. Segurou-os a Morte, na passagem; não os largou a Vida: seus corpos ficaram esfarrapados da força igual e contrária dos supremos contendentes.

Se alguem tem jus humano ― que, se não é mais, não é também menos, que o patriótico ― ao carinho supremo dos que governam e administram os Estados, são estes, que trazem nos corpos, de um modo sinistramente negativo, a mais indiscutível das condecorações.

Não pergunto nunca se foi bom ou mau que entrássemos, se foi bem ou mal que entrámos, na guerra alemã; não o pergunto porque ninguém me saberia responder, pois nisto, como em tudo, nem há factos nem argumentos, mas só testemunhas e argumentadores. Neste caso dos mutilados, menos há mister que se pergunte. Fosse quem fosse o responsável da guerra ― supondo que há verdadeiros responsáveis em estas, como em todas as coisas ― não o foram eles por certo, que para o circo foram mandados como animais, na jaula inevitável da política dos que não partiram. Assim, não havendo um critério de culpa própria que restrinja o direito que eles têm ao nosso carinho espontâneo, nada há que desculpe em qualquer homem são a indiferença para eles. E, se já a ninguém é humanamente lícito que neles pense como em quem não mereça os extremos da ação caritativa e justa, nos governos do país, que os exilou regularmente para as fronteiras da Morte, tal indiferença tem a estatura de um crime.

Urge extinguir essa indiferença, e, visto que em ela um crime se tem cometido, fazer, ao menos, o único ato profícuo de arrependimento verdadeiro, que é a não reincidência e a compensação.

Duvido, porém, que esta justiça se consiga, por isso mesmo que é justiça. A surdez moral dos nossos governantes tem par só em sua cegueira intelectual. E onde não há sentimento que se mova, nem razão que se convença, que esperança pode haver de justiça?


Fernando Pessoa


Texto recuperado e reproduzido por Paulo Samuel no jornal Vila da Feira — Terra de Santa Maria, nº 35, Outubro de 2013 (Samuel 2013, pp. 12-19), e recentemente republicado pelo próprio na revista Pessoa Plural nº 17 (Samuel, 2020).


Sepúlveda, Pedro, Ulrike Henny-Krahmer, and Jorge Uribe (eds). “Justiça.” Digital Edition of Fernando Pessoa. Projects and Publications . Lisbon/Cologne: IELT/CCeH, University of Cologne 2017-2024. Version A3.0.0-C2.1.0 <http://www.pessoadigital.pt/pub/Pessoa_Justica/diplomatic-transcription> DOI: 10.18716/cceh/pessoa


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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