Poética de Aristóteles: Imitação e Reconhecimento


Na parte da  Poética[1] que chegou até nós, Aristóteles tece considerações sobre a imitação (mimesis), que constitui a essência da arte em geral e da poesia em particular (cf. Poética, 1447 a), e desenvolve uma teoria da tragédia, definindo-a como «imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes  [do drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções» (Poética, 1449 b).

Esta «imitação de acção» é praticada mediante «o ritmo, a linguagem e a harmonia» (Poética, 1447 a), ou só por dois destes meios.  Aristóteles divide as espécies de poesia pelas qualidades dos indivíduos que praticam a acção (objecto), do meio por que se imita e do modo como se imita, e essas espécies vêm a ser: ditirambo, nomo, comédia, tragédia, epopeia… (cf. Poética, 1448 a)

Mas, quanto ao modo de imitar, todas as espécie se agrupam em duas grandes divisões, conforme a imitação se realiza mediante narrativa ou mediante actores, isto é, narrando o poeta os acontecimentos, seja na própria pessoa, seja por intermédio de outras, ou representando as personagens a acção e agindo elas mesmas (cf. Poética, 1448 a).

A tragédia, a cujo estudo Aristóteles se dedica na segunda parte da Poética, insere-se nesta última categoria de representação por personagens  «que agem e  que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento» (Poética, 1449 b). Para Aristóteles, são estas duas causas naturais – o carácter e o pensamento – que determinam as acções, e é nelas que reside a origem da «boa ou má fortuna dos homens» (Poética, 1450 a). Já que «os imitadores imitam homens que praticam alguma acção, e estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole». Assim, só há variedade de caracteres nestas diferenças, e quanto ao carácter todos os homens se distinguem pelo vício e pela virtude (Poética, 1448 a).


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Na Ética a Eudemo[2] Aristóteles apresenta-nos a felicidade como o fim ou objecto supremo da vida humana. Afirma: «uma vez que a virtude da alma e a sua virtude são necessariamente uma e a mesma coisa, a obra da virtude da alma consistirá numa vida boa: este é, afinal, o bem perfeito, que corresponde à felicidade» (II, I, 1219 a).

Daqui se depreende estar a felicidade dependente da virtude que «é a melhor disposição, o melhor estado, a melhor faculdade de tudo o que possui um determinado uso ou uma função» (II, I, 1218 b), sendo que «a melhor função depende do melhor estado» (II, I, 1219 a), e que «a função de cada coisa é o seu fim» (II, I, 1219 a). Nesta sequência de pensamento, «o bem agir e o bem viver equivalem a ser feliz; de facto, cada um destes planos, vida e acção, corresponde a um uso e a uma actividade» (II, I, 1219 b).

Neste Livro II da Ética a Eudemo, Aristóteles divisa a felicidade no recto exercício das funções da natureza moral e intelectual do homem, estabelecendo a distinção entre bens interiores e exteriores: a definição de virtude e a sua divisão em virtudes intelectuais e virtudes éticas… E, a partir do Capítulo III, sobressai a concepção de virtude como meio-termo, que traduz o recto uso da razão, o katà tòn orthón lógon (II, V, 1222 a),  a posição média entre o excesso e o defeito na sensibilidade às emoções.

Com esta breve digressão visámos apenas fazer um parêntese que nos permitisse melhor compreender o valor que tem a virtude no pensamento aristotélico e o porquê da importância atribuída à tragédia enquanto imitação de acções virtuosas, já que – como anteriormente referimos – é nestas acções que reside a origem da «boa ou má fortuna dos homens».


Mas em que se traduz, a nível comportamental, a virtude?

Na Retórica,[3] Aristóteles enumera os seus elementos: «são a justiça, a coragem, a temperança, a magnificência, a magnanimidade, a liberalidade, a mansidão, a prudência e a sabedoria», diz-nos ele, e esclarece que «as maiores virtudes são necessariamente as que são mais úteis aos outros, posto que a virtude é a faculdade de fazer o bem» (Retórica, 1366 b).

Ao contrário de Platão, para quem a imitação das coisas sensíveis (que, por sua vez, imitam as Ideias eternas e exemplares) constitui uma imitação da imitação, Aristóteles vê na imitação um processo de recriação, que poderá tornar-se numa forma de conhecimento.

«O imitar», afirma Aristóteles, «é congénito no homem […], e os homens se comprazem no imitado». Este é o ponto principal em que o homem se distingue dos outros seres vivos. Enquanto imitador, o homem apreende a realidade e esta apreensão transforma-se em conhecimento. Tal facto pode ser demonstrado através desta experiência comum: «nós contemplamos com prazer as imagens mais exactas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo [as representações  de] animais ferozes e [de] cadáveres». Isto porque «olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas», não só os filósofos como os demais homens. Este prazer na identificação do objecto imitado é sinal de conhecimento adquirido, já que se «suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada» (cf. Poética, 1448 b). 

Talvez este possa ser mais um passo dado na compreensão da importância que a tragédia assume no pensamento aristotétilo. Na sua visão estética, ela desempenha um papel relevante na formação e educação do espectador ao exercer na sua alma uma função purificadora e libertadora  das emoções que a tragédia representa. Isto é possível graças ao “reconhecimento” que «como indica o próprio significado da palavra, é  a passagem do ignorar ao conhecer que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita» (Poética, 1452 a).  E «de todos os reconhecimentos, melhores são os que derivam da própria intriga, quando a surpresa resulta de modo natural» (Poética, 1455 a). Desta forma, a catarsis pode ser vista como um tratamento médico das emoções, uma cura que combate o semelhante com o semelhante. No entanto, a Poética não nos oferece elementos suficientes para compreender o significado da catarse. Não fica óbvio se Aristóteles considera a catarse como a purificação das emoções ou a purificação pelas emoções. Contudo, seria redutor encará-la somente desta forma, já que a catarsis está ligada ao valor propriamente artístico da tragédia ou da música. Logo, a catarse é mais do que uma medicina das emoções, uma vez que a ela se encontra ligado «um momento mais elevado da vida espiritual, um momento no qual a emoção não é abolida, mas purificada ou exaltada»[4].

Aristóteles detém-se especialmente a ilustrar a unidade da acção trágica.  Esta deve desenrolar-se com continuidade do princípio ao fim. É muito importante a ordem do conjunto, o encadeamento dos acontecimentos. Escreve: «todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo. Pois não faz parte de um todo o que, quer seja quer não seja, não altera esse todo» (Poética, 1451 a). Por isso, o objecto da tragédia mais que o verdadeiro é o verosímil, aquilo que se pode verificar. Verosímil é o que acontece o mais das vezes; o necessário, o que acontece sempre. O mais das vezes é análogo ao necessário nas disciplinas cujo objecto é desprovido de necessidade. Lemos na Poética: «não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade» (Poética, 1451 b).

Ao contrário da história, que toma como objecto aquilo que aconteceu, a poesia incide sobre o que pode acontecer. «Por isso», escreve Aristóteles, «a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular» (Poética, 1451 b). Mas a universalidade da arte que se encontra na representação, «por liame de necessidade e verosimilhança» (Poética, 1451 b), não é uma universalidade lógica; refere-se antes à capacidade de apresentar os eventos numa conexão orgânica e unitária. E é precisamente nesta conexão que assenta a unidade da tragédia que, como manifestação artística, será domínio do belo que «é o que, sendo preferível por si mesmo, é digno de louvor; ou o que, sendo bom, é agradável porque é bom. E se isto é belo, então a virtude é necessariamente bela; pois, sendo boa é digna de louvor» (Retórica, 1366 a). A virtude é bela e digna de louvor. Daí o lugar de relevo que ela ocupa na tragédia. As personagens deverão imitar pessoas virtuosas, cujas acções austeras sejam reconhecidas pelos espectadores como acções louváveis. E nas situações adversas, surgirá a virtude catártica, que incidirá sobre os sentimentos ou as emoções, despertando o terror e a piedade nos espectadores. Pois, como podemos ler na Retórica, «sobretudo, o que inspira piedade é ver gente honrada em situações tão críticas; é que todas estas coisas, por parecerem tão próximas, causam piedade, uma vez que o sofrimento é imerecido e surge diante dos nossos olhos» (Retórica, 1386 b). Ou ainda: «as coisas temíveis são as que parecem ter um enorme poder de destruir ou de provocar danos que levem a grandes tristezas. É por isso que os sinais dessas eventualidades inspiram medo, pois mostram que o que tememos está próximo. O perigo consiste nisso mesmo: na proximidade do que é temível» (Retórica, 1382 a). É sobretudo esta proximidade que se procura. Uma proximidade que, mais do que um alvo, é o próprio caminho da arte.


[1] Seguiremos neste texto a tradução de Eudoro de Sousa, em: ARISTÓTELES – Poética. 7a ed. [s.l.]: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.

[2] ARISTÓTELES – Ética a Eudemo. Trad. Original do Grego por J.A. Amaral [livros I e II]; Artur Morão [livros III, VII e VIII e notas] Lisboa: Tribuna da História – Edições de Livros e Revistas Lda., 2005.

[3] ARISTÒTELES – Retórica. In ARISTÓTELES: Vida, pensamento e obra. [Colecção Grandes Pensadores]. Vol. II. Espanha: Público – Comunicação Social, SA, 2008.

[4] ABBAGNANO, Nicola – História da filosofia. Vol. I. 7a ed. Lisboa: Editorial Presença, 2006, p. 182.


O estudo aqui apresentado foi elaborado em 2008, no contexto de conclusão do Mestrado Integrado em Teologia (UCP).


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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