Espelho e Abismo no conto «A Fada Oriana»


No conto infantil «A Fada Oriana» (1962), Sophia de Mello Breyner Andresen relata a história de uma pequena fada que, por um castigo que a Rainha das Fadas lhe aplica, perde as suas asas. Deve dizer-se que o castigo teve uma intenção didáctica: havia já algum tempo que Oriana tinha deixado de cumprir o seu dever de ajudar os habitantes, pobres, da floresta. Um desses habitantes era uma velha, quase cega, que todos os dias passava perto de um abismo, carregando um facho de lenha, demasiado pesado para a sua idade e estrutura física. No passado, Oriana costumava acompanhá-la, protegendo-a de cair no abismo. Agora, porém, só se preocupa com a sua imagem que ela admira permanentemente nas águas de um rio, onde habita um peixe que a seduziu, incentivando-a a cultivar a vaidade. Mas um dia, Oriana desperta desse sonho narcísico em que está a viver e toma consciência do seu grave erro. Tenta então recompor a sua falta, começando de novo a tentar ajudar os habitantes da floresta, mesmo desprovida das capacidades excepcionais da sua condição de fada. E é assim que a certa altura presencia como a velha, no seu árduo caminho, cai no abismo. Oriana esquece-se por completo que já não tem asas e salta no abismo para salvar a velha. Um acto totalmente altruísta que acaba por ser a sua salvação, porque nesse preciso momento surge a Rainha das Fadas que, vendo o seu gesto de amor incondicional, lhe restitui as asas, que impedirão que ela e a velha caiam no abismo.

A imagem do espelho habita o universo ficcional da Obra de Sophia, onde ela tem um peso significativo. A imagem é interessante, já em si, porque é imagem de algo que reflecte imagens. Neste sentido, poder-se-á dizer que a imagem do espelho é o símbolo por excelência, na medida em que, de uma forma muito especial, a caracteriza a ambivalência que é própria dos símbolos. Pois o espelho representa o engano e a tomada de consciência, em simultâneo. Ou seja, mostra o que é, sem o ser. Digamos que, num reino de aparências, ele seria o regente.

A imagem do espelho assume já nos antigos mitos um papel de relevo, quando estabelece uma ligação entre este mundo e o Além. Em algumas culturas encarava-se toda a Criação como espelho do Deus criador: a imagem original estaria no Além, aqui, neste mundo, só se encontrariam reproduções, sombras da verdadeira realidade. Por outro lado, o espelho também foi sempre visto como um símbolo específico de identificação da alma humana: os olhos são o espelho da alma. Mas a imagem do espelho também tem outra face: é o espelho de Narciso, que se confronta consigo mesmo, sem saber que se apaixonou pela sua própria imagem, e sem ser capaz de se ultrapassar, permanecendo neste amor-próprio. Mesmo assim, tudo isto não impede que o espelho também possa servir de meio para uma verdadeira tomada de consciência. É neste sentido que a Bíblia nos apresenta a Sophia, a sabedoria proveniente de Deus, como um espelho (cf. Sb 7, 26). E é nesta linha que na teosofia de Jacob Boehme ela é o “ornamento”, o “jogo”, o “espelho” de Deus.

Numa entrevista de 1962, interrogada sobre o significado d’O Cristo Cigano, Sophia responde:

[…] o encontro com Cristo. O encontro com a pobreza, a miséria, a solidão, o abandono, o sofrimento, a agonia.

[…] Porque se virarmos a cara ao sofrimento, a vaidade da felicidade perfeita nos levará à monstruosidade e ao crime. Há muitas maneiras de matar. É no sofrimento que o escultor vê aparecer a imagem que ele procurara em vão na manhã e nos campos. A imagem que, para além de todo o erro e pecado, está inscrita na pessoa humana.

O “encontro com Cristo” é o encontro com a indigência, sobre todos os aspectos de que ela se pode revestir. Porque Jesus se identifica com esse homem diferente que está estendido na berma da estrada larga, por onde se passa (in)diferente. No caminho estreito – que é o dele – não se passa ligeiro ou indiferente. É um árduo caminho, pausado, que requer a nossa atenção. Pois, tal como o caminho que a “velha” do conto «A Fada Oriana» tem todos os dias de percorrer, este caminho que Jesus representa também é rodeado por um abismo. Um abismo no qual se pode cair em qualquer momento de cegueira, em que se cede à tentação. Mas esse mesmo abismo também pode representar a salvação, para quem se lança nele de olhos abertos: foi o que fez a pequena “fada Oriana”, quando saltou no “abismo” para salvar a “velha”. Este é um lançamento corajoso em que é dada ao ser humano a oportunidade de se encontrar a Si-mesmo e de se redimir. Porque é só deste encontro que depende a “maturidade” (die Reifung) que Jung diz ser o arquétipo por excelência. Ora esta Katábase também pode ocorrer quando se olha no espelho. Tomando conhecimento da parte escura da sua alma, o ser humano tem a possibilidade de a integrar, redimindo-se. É só desta tomada de consciência, íntima e profunda, que depende a salvação, e não de qualquer intervenção exterior. Por isso, no conto «A Viagem» (que integra os Contos Exemplares), enquanto o “homem”, depois de eles terem ouvido “vozes” entre “as sombras do crepúsculo”, acredita já estarem salvos (“– Gente! – exclamou o homem. – Estamos salvos!”), a “mulher” contrapõe a esta certeza uma questão que não recebe resposta por parte do “homem” (“– Salvos? – perguntou a mulher”). O “homem” ignora a questão, ou nem a ouve, porque está demasiado ocupado em encontrar a “estrada”, em encontrar alguém que lhes ensine o “caminho”, que seja um guia:

  – Podes guiar-nos até lá? […].

– Vamos até lá – disse o homem. – Talvez lá esteja alguém que nos saiba ensinar o caminho. […]

– Vamos voltar para a casa – disse o homem – e lá esperaremos até que os donos cheguem e nos ensinem o caminho e nos ajudem. […].

– Estamos perdidos – disse o homem –, andamos à procura do caminho para a estrada. […].

Vamos pedir ao lenhador que nos guie – disse o homem. […].

Iam de mãos dadas através do ar doirado e verde. Esta floresta é linda! – disse a mulher.

– É – disse o homem –, mas não encontrámos ainda a estrada. […].

– O ar e a luz – disse o homem – são bons e belos. Se não estivéssemos perdidos, esta caminhada seria uma viagem maravilhosa. Mas o ar e a luz não nos sabem ensinar a estrada. […].

– Vamos depressa – disse o homem. – Vem aí a noite e ainda não encontrámos o caminho. […].

No poema «O Super-homem», Sophia pergunta:

Onde está ele o super-homem? Onde?

– Encontrei-o na rua ia sozinho

Não via a dor nem a pedra nem o vento

Sua loucura e sua irrealidade

Lhe serviam de espelho e de alimento

Esta é a tentação abismal: a de se pretender ser um super-homem, ou uma super-mulher. Porque para isso seria necessário superar a condição humana, em vez de a assumir, como fez o próprio Criador, de forma exemplar, na pessoa de Jesus Cristo. Este é o pecado, a maior das tentações. Por isso, o Louco-super-homem é cego, não vê nada de essencial. Vive na “irrealidade” que ele próprio cria, quando se vê no “espelho” narcísico do seu Eu. Ao contrário da loucura do Arcano “O Louco”, ou da de Merlin (“o Louco do Bosque”), a loucura deste “super-homem” do poema de Sophia é uma loucura solitária, não partilha da “subtil fusão que se opera entre os elementos” Este “Louco”, não comunga com a Natureza, na qual se inclui a natureza humana que, “para além de todo o erro e pecado” (como afirma Sophia no texto acima citado), traz em si inscrita a “imagem” do Criador[12]. Há um “abismo” imensurável que separa a loucura egocêntrica da criatura que mede forças com o Criador e a loucura altruísta do Amor imenso de um Deus que se faz homem e se deixa crucificar, assumindo os pecados da humanidade, como nos diz São Paulo (cf. 1 Cor 1,18; Rm 4,25). A “mulher” do conto «A Viagem», no momento derradeiro e decisivo, do qual tudo depende, ganha esta consciência, e pensa: – “Do outro lado do abismo está com certeza alguém”. E, ela, que – ao contrário do “homem” – compreende que a sua salvação não depende dos conhecimentos de algum guia ou guru, nem dos seus próprios, mas desse Alguém que está do “outro lado do abismo”, começa a “chamar”.


Sobre a temática acima exposta, cf. GRIEBEN, Fernanda Alves Afonso – Uma viagem sem princípio nem fim… com Sophia de Mello Breyner Andresen: entre esoterismo e cristianismo. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 2010. 126 p.

Pode ler AQUI o resumo e as primeiras páginas desta Dissertação de Mestrado Integrado em Teologia.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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