Desenvolvimento, ética e imaginário infantil


Dia da Criança | 1 de junho 2023


Na véspera do Dia da Criança, vem-me à memória o conflito ético, sem solução, que a composição do meu primeiro poema teve a impertinência de trazer consigo.

Era domingo, o despertador tinha tocado às oito horas da manhã, e eu tinha de me levantar para ir à missa das nove. O problema é que tinha acordado com uma história na cabeça…

Não fazia a mínima ideia de como ela tinha ido lá parar, mas infiltrara-se na minha mente, em forma de versos concretos, que exigiam ser escritos. Por isso, não tive outra hipótese senão levantar-me rapidamente, para tirar papel e caneta da pasta, que não estava longe. Sentada na cama, escrevi então os versos que transcrevo fielmente abaixo:


© JJAVA – stock.adobe.com

Saindo da toca, cuidadosa,

Fina, esperta, astuta,

A nossa amiga raposa,

O mínimo ruído, ela escuta.

Perspicaz e com audácia,

Desce o monte a correr…

E a correr ultrapassa

O mundo das realidades,

Sonhando já, enganada,

Com a presa que há-de apanhar…


…”Enganada”, não posso afirmar!

Posso apenas desejar

Que tudo o que ela sonhou

Não se possa realizar,

E a presa possa escapar…


Nessa altura, eu tinha 9 anos de idade e frequentava a quarta classe. Lembro-me de que nunca tinha visto, ao natural, uma raposa. Mas conhecia a espécie de gravuras estampadas em livros, e de imagens televisivas. E, das ciências naturais, também sabia que se alimentava, preferentemente, de coelhos ou galinhas. Duas espécies que eu conhecia ao natural, e com as quais simpatizava bastante.

Contudo, depois de registada por escrito, e de eu a poder ler com os meus próprios olhos, a história que tinha vindo ter comigo tomou, surpreendentemente, outra feição. Isto, porque, a certa altura,  eu comecei a ler os versos, não da perspetiva em que os tinha concebido, mas da perspetiva da raposa. E foi esta segunda leitura, diametralmente oposta à primeira, que originou o terrível dilema: “Se a raposa caçar a presa, esta morre; se a raposa não caçar a presa, morre a raposa de fome”.

Perguntei-me por que teriam as raposas de ser carnívoras, e os coelhinhos fofos herbívoros. “Será por isso que são tão fofos?… Com certeza que não! Afinal, as raposas também são bonitas e, acima de tudo, são seres vivos, precisam de se alimentar para sobreviver”. Mas eu não queria, de forma nenhuma, aceitar que, para a raposa sobreviver, tinha de outro animal morrer…


Quando entrei na igreja, atrasada para a missa de domingo, levava a consciência pesada pelo atraso e, ainda mais pesada, por não ter solução para o conflito ético que se tinha estabelecido na minha mente. No meu imaginário de criança, a luta entre o bem e o mal tinha tomado formas invulgares. Tinha sido obrigada a reconhecer que, o que era “mau” para a presa, era simultaneamente “bom” para a raposa. E, fosse por que razão fosse, eu estava cada vez mais inclinada a compreender a raposa, a ser benevolente com a sua natureza de carnívoro…


Devido ao meu atraso, nesse dia, tive de assistir à missa de pé na igreja, um edifício de pequenas dimensões em relação à grande quantidade de fiéis que tinha de acomodar. Mas, dessa vez,  fiquei indiferente à situação, porque o tempo passou rápido. Estava continuamente a pensar na raposa e na presa… Pensava que, embora nunca ninguém tivesse sido capaz de me convencer a ingerir carne de coelho, a carne de galinha era a minha preferida. E, nesse domingo, como em todos os domingos na típica casa portuguesa de então, na minha, também seria servido ao almoço o célebre Cozido à Portuguesa.

Quando chegou a altura de recebermos a comunhão eucarística, observei a grande quantidade de pessoas que se agrupavam em fila, em frente do altar. E eu comecei a imaginar a quantidade de vacas, porcos e galinhas que tinham de ser abatidos, semana a semana, para que todos os portugueses pudessem comer  Cozido à Portuguesa… Afinal, eramos todos raposas!

Nesse domingo, não fui capaz de me colocar na fila. Tinham-me ensinado que não se podia comungar em pecado mortal.


Fernanda Alves Afonso Grieben

[email protected]

Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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