Personagens de Ficção: João Semana


Um médico consciente da sua missão social


No primeiro capítulo de um conto inacabado, projetado para integrar um segundo volume (que não chegou a ser composto) da antologia Serões da Província, Júlio Dinis deixou-nos uma reflexão ética sobre a missão social do médico. Em consonância com essa reflexão, João Semana – personagem do romance As Pupilas do Senhor Reitor – afigura-se ao leitor dessa primeira Crónica da Aldeia dinisiana como o protótipo do médico que está consciente da sua missão, no contexto social em que decorre a ação do romance: o do mundo rural português, na segunda metade do século XIX.


No referido conto inacabado – intitulado “A vida nas terras pequenas” –, Júlio Dinis (principal pseudónimo literário do médico Joaquim Guilherme Gomes Coelho, nascido na cidade do Porto, em 1839), realçando a importância da missão social que ao médico cumpre desempenhar, defende que, em conformidade com a natureza dessa mesma missão, “não é digno de ser médico” o estudante de medicina que, terminado o curso, não encare com apreensão o início da sua vida profissional. Na opinião do médico-poeta, todo aquele que, “nesse momento solene”, compreende o alcance da missão que vai desempenhar, tem forçosamente de “estremecer”, sentindo-se “hesitante, impressionado por uma íntima desconfiança em si próprio, nas suas forças e faculdades”. Pois, é “natural que o confrangimento do coração que à semelhança do actor novel, experimenta todo o homem, ao entrar em cena neste grande teatro da sociedade, seja tanto mais intenso e doloroso quanto maior é a importância do papel que vai representar”.

Assim sendo, é fundamental que o desempenho da profissão médica seja assumido conscientemente. E esta é uma postura que tem de ser mantida, porque, ao longo da sua vida profissional, o médico terá de confrontar-se com todo o tipo de “afecto humano”, terá de saber lidar com todo o tipo de “desgraça” que lhe projetará no caminho “o seu triste reflexo”, terá de saber salvaguardar todo o “interesse” que dependa “dos seus actos”, como também terá de saber manter o “segredo” que foi confiado “à sua lealdade”. E, para além de tudo isto, o médico terá de saber conviver com “a morte”, que, “como um espectro implacável, lhe surgirá a cada momento”, “sob formas sempre diversas e sempre pavorosas, cingida com a capela virginal umas vezes, coroada outras pelas cãs de velhice, animada por o sorriso da infância ou sinistra com os vestígios do crime”. E Júlio Dinis remata a exposição das suas ideias, declarando: “O que, sabendo isto, aceita com desassombro a missão, ou não tem inteligência para a compreender, ou possui um carácter de deplorável natureza”.


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Tendo em atenção a reflexão ética sobre a missão social do médico acima sinteticamente apresentada, pode-se, então, perguntar, se essas convicções que Júlio Dinis expressa, pela voz do narrador[1], se repercutem, ou não, no desenho do carácter das suas personagens de ficção que encarnam o papel do médico, especificamente, o do médico da aldeia. Vejamos.  

Nos contos que integram a antologia intitulada Serões da Província[2] e nos três romances com o subtítulo Crónica da Aldeia[3] (todos, primeiramente, publicados em folhetins, em O Jornal do Porto)[4], a figura do médico surge por quatro vezes: é “o médico”, do conto “As apreensões de uma mãe” (publicado de 11 de março a 1 de abril de 1862); é “doutor Jacob Granada”, do conto “Uma flor de entre o gelo” (publicado de 29 de novembro a 7 de dezembro de 1864, ou seja, já depois da estadia de Júlio Dinis em Ovar)[5]; é “Daniel”, da primeira Crónica da Aldeia dinisiana, intitulada As Pupilas do Senhor Reitor (publicada em 1866, mas principiada a ser escrita em Ovar, em 1863); e é, ainda desse mesmo romance, “João Semana”.

Dessas quatro personagens de ficção que encarnam o papel do médico, só esta última – João Semana – pode ter sido criada por Júlio Dinis com a finalidade de representar o médico da aldeia que desempenha a sua profissão em harmonia com as convicções éticas do seu criador, anteriormente expostas. Isto, porque, tanto Jacob Granada (um velho facultativo positivista, que se apaixona por uma jovem, sua paciente, depois desta ter demonstrado relutância em sujeitar-se ao paternalismo médico[6]) como Daniel (um jovem médico no início de carreira, que regressa à sua aldeia, depois de uma longa estadia na cidade, que conseguiu agudizar a sua predisposição para o namoro) são personagens redondas ou multidimensionais. Ou seja, são dinâmicas, surpreendem o leitor, obrigando-o a uma modificação da sua conceção, a uma diferenciação progressiva da imagem que delas forma. Quanto à personagem que só é apresentada como “o médico”, sem ser identificada, essa pode ser apreendida como sendo, unicamente, a encarnação de uma ideia (que, provavelmente, no tempo de Júlio Dinis, é generalizada: a ideia do conservadorismo e estagnação científica do velho facultativo da aldeia). Ou seja, este tipo de personagem é uma personificação, que pode surgir em romances realistas (nos textos literários dinisanos, não é a única)[7], mas é imprópria para representar o médico ideal, no desempenho das suas funções. O octogenário João Semana, por sua vez, pode ser considerado um tipo social, embora as características que definem esta personagem sejam um pouco mais complexas do que aquelas que, geralmente, definem os tipos (ou stock figures). Este é o tipo de personagem que está mais indicado para analisar os estereótipos, podendo ser uma forma de crítica social[8]. Assim, João Semana, tendo sido especialmente criado para representar o tipo social do médico da aldeia, em harmonia com as convicções éticas do seu criador, funciona, no conjunto da produção literária de Júlio Dinis, como protótipo do grupo a que pertence.


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Em relação ao que ficou anteriormente exposto, convém destacar que, antes da sua estadia em Ovar, Júlio Dinis não criou nenhuma personagem de relevo que, nos seus textos literários, encarne o papel do médico. A primeira, doutor Jacob Granada, protagonista do conto “Uma flor de entre o gelo”, já foi criada posteriormente. Este facto reforça a ideia, tradicionalmente estabelecida, de que o médico vareiro João José da Silveira (1812-1896) teria impressionado sobremaneira o escritor portuense, também ele médico de profissão, a ponto de este lhe copiar os traços caracterológicos, reproduzindo-os no desenho do carácter do célebre João Semana, personagem do romance As Pupilas do Senhor Reitor (publicado em livro, pela primeira vez, em 1867).  

Assim, à semelhança de João José da Silveira (e diferentemente de Jacob Granada), João Semana não se limita a exercer a profissão médica obedecendo a princípios éticos inspirados numa visão positiva do mundo. Antes pelo contrário, o médico octogenário é um homem imaginativo, que nutre “a paixão do ideal”. Logo, a sua vista penetra “através do mundo das realidades” e, além dele, descobre “um mundo novo, o mundo das ilusões e da poesia”, que lhe infunde coragem para enfrentar “as provações da vida”, como escreve Júlio Dinis no já referido conto inacabado “A vida nas terras pequenas”, onde acrescenta o seguinte: “Estas frontes humanas parecem ambicionar uma coroa, seja embora de espinhos, que misturem o seu pungir às embriagadoras comoções da glória”.  


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Com efeito, no romance As Pupilas do Senhor Reitor[9], é com verdadeira devoção que João Semana exerce a profissão médica. Revelando-se sensível aos problemas concretos dos seus pacientes, e sendo, “por aquele tempo, o único facultativo da freguesia”, é “lisonjeiramente conceituado na opinião pública da terra”. Homem laborioso e bem-humorado, o velho cirurgião colhe a sua “glória” junto de todos aqueles a quem incansavelmente visita, dia após dia, praticando na aldeia a arte de curar, num tempo (a ação do romance decorre em meados do século XIX) em que, no mundo rural português, ainda se faz sentir o atraso nas ciências médicas em Portugal, em particular no estudo da anatomia[10]. Uma realidade que Júlio Dinis também retrata nessa sua primeira Crónica da Aldeia.


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No entanto, o verdadeiro obstáculo com que João Semana se confronta, dia a dia, no desempenho da profissão médica, não é a carência de conhecimentos científicos, mas a extrema indigência em que vive grande parte dos aldeãos, muitas vezes, totalmente desprovidos de recursos económicos que lhes permitam adquirir os medicamentos que o médico lhes receita. E é neste ponto que João Semana mais fielmente representa o médico ideal no exercício das suas funções – em conformidade com os princípios éticos que Júlio Dinis defende –, ao praticar a Caridade de forma discreta, e permitindo, assim, que quem dela beneficia possa preservar a sua dignidade de pessoa humana. Teria sido esta a particularidade de João José da Silveira que mais impressionou Júlio Dinis? Tudo indica que sim. Foi certamente nessa figura vareira que o médico-poeta encontrou, talvez pela primeira vez, um médico consciente da sua missão social. Um médico profundamente humano, que sabia que “se para cá do túmulo há alguma coisa que se possa chamar Céu e Inferno, é na própria consciência que se encontra” – como se pode ler no conto “A vida nas terras pequenas”.


[1] Cf. DINIS, Júlio (pseud.) – Inéditos e Esparsos. In Obras de Júlio Dinis. Porto :  Lello & Irmão, [1977], vol. 2, pp. 601-614.

[2] Cf. DINIS – Obras, vol. 2, pp. 9-234.

[3] Cf. Ibidem, vol. 1.

[4] Cf. CRUZ, Liberto – Júlio Dinis : análise biobibliográfica (1839-1971). In ARQUIVOS do Centro Cultural Português. Paris : Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, vol. 5, pp. 676-677.

[5] Cf. O JORNAL do Porto. 6:272-279 (1864).

[6] Sobre este assunto, cf.  GRACIA, Diego – Fundamentos de Bioética. Coimbra :  Gráfica  de  Coimbra  2,  2008, pp. 63-67.

[7] Sobre este assunto, cf. GRIEBEN, Fernanda – Júlio Dinis, apologista da Kunstreligion:  influência de uma corrente de pensamento europeu no percurso literário dinisiano. Lisboa : Universidade Aberta, 2016. Tese de doutoramento.  Disponível em https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/5717

[8] Cf. BODE, Christoph – Der Roman. 2 Aufl. Tübingen : A. Francke, 2011, pp. 126-128.

[9] Cf. DINIS – Obras, vol. 1, pp. 3-232.

[10] Sobre este assunto, cf. LEMOS JUNIOR, Maximiano – A Medicina em Portugal até aos fins do século XVIII: (tentativa histórica). Porto :  Imprensa  Commercial,  1881.  Dissertação Inaugural, apresentada e defendida perante a Escola Medico-Cirurgica do Porto.


O breve estudo aqui apresentado foi originalmente publicado em duas partes, no jornal “João Semana”, em 1 de janeiro e 15 de janeiro de 2018: cf. GRIEBEN, Fernanda – João Semana, um médico consciente da sua missão social. In “JOÃO SEMANA”. QUINZENÁRIO OVARENSE. 104:1 (2018), p. 8 ; 104:2 (2018), p. 8.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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