Vincent van Gogh e Cesário Verde


Dois rostos da arte que ainda estão por desvelar…


Quando Vincent van Gogh (1853-1890), numa carta a seu irmão Theo, exprime o desejo de conseguir pintar retratos que, cem anos mais tarde, se afigurassem às pessoas desse tempo futuro como aparições, está a formular uma excelente definição do que é a Pintura Impressionista, muito provavelmente, mesmo sem ainda estar ciente disso. E se, nesta sua afirmação, substituirmos a expressão ‘pintar retratos’, comprimindo-a num único termo (ainda que de aceção mais ampla do que o da própria expressão): ‘retratar’, então, poder-se-á ver na mesma asserção uma afirmação do que foi o Impressionismo Literário, assim como ele se manifesta na produção artística de Cesário Verde (1855-1886).

Português, filho de um tempo em que os valores até aí imperantes são postos em causa, porque já não se coadunam com a vida real dos indivíduos que coabitam o território português, Cesário Verde, filho da cidade e do campo, apresenta-se, no quadro da produção literária portuguesa do seu tempo, como um caso único de expressão artística. Vejamos porquê.

Os finais do século XIX europeu são palco de ideologias controversas, veiculadas por diferentes correntes de pensamento. Se assistimos, por um lado, ao enfraquecimento das grandes ‘verdades’ dogmáticas, que se diziam enraizadas na Tradição judeo-cristã, e que, desde a Idade Média, estavam sedimentadas no pensamento aristotélico-tomista; por outro, é, precisamente, no mesmo pensamento aristotélico que a Ciência (tal como Tomás de Aquino) vai procurar inspiração e tentar criar o seu próprio Império – o da religião da ciência – o cientificismo, positivista. A par desta luta dos contrários (que se tocam num mesmo ponto, como é usual) revive uma corrente de pensamento hermética, esotérica, enraizada na antiga Alquimia que (por mais paradoxal que se apresente, ou não) também se inspirara, nos seus primórdios, nas teorias aristotélicas sobre a matéria (segundo estas, o Universo teria sido criado de uma substância pura, original, “a matéria-prima”, e as primeiras “formas” que brotaram deste “caos primordial” foram os “quatro elementos”, dos quais todos os corpos foram criados em diferentes proporções e combinações).

A nível das ideias filosóficas, propriamente ditas, também não se pode traçar, neste período da História europeia uma linha pacífica. Antes sim, diferentes linhas, quase sempre paralelas, mas, por vezes, também, concorrentes. Podemos salientar, neste contexto, o niilismo nietzschiano que irá tocar, já nas primeiras décadas do século XX, a filosofia existencialista de Heidegger. Duas formas de pensamento paradigmáticas, porque, partindo ambas da mesma realidade, que é a do ser humano enquanto Dasein (ser que existe no tempo), chegam a pontos tão diferentes, como o vazio do sentido existencial, e o encontrar sentido para essa falta de sentido nessa mesma existência. É o tema da morte que move os dois pensadores: o primeiro, de forma obsessiva (que irá enlouquecer o filósofo, pela impossibilidade de encontrar uma resposta existencial positiva); o segundo, de forma sistemática. Ambos, porém, descobrem a efemeridade da existência como uma ameaça à pessoa humana que, como já Aristóteles sabia, deveria cultivar a felicidade como a primeira das virtudes. Inserido no tempo, o ente, por natureza limitado (por não ter princípio em si mesmo), vê-se a ele próprio como um ser que caminha para a morte, único marco certo. E, neste sentido, a morte pode até ser algo desejável (como o irão exprimir alguns artistas), já que é algo seguro, num contexto de insegurança.

Mas esta realidade apreendida por filósofos e artistas possui duas faces: a que acabamos de apresentar em linhas muito gerais; e outra, que consiste na descoberta da intensidade do momento, numa existência efémera. Não se tratando aqui unicamente da valorização do presente, no sentido agostiniano (enquanto lugar privilegiado de consciência da subjetividade temporal); mas sim, do advento do momento em si. Por isso mesmo, há que o viver de forma plena, no que ele tem de eterno. Porque o momento não tem passado nem futuro – é o aqui e agora, onde as questões existenciais não encontram lugar.

É a esta vivência artística do momento – que capta as impressões, ou seja (em linguagem alquímica), que apreende o espírito dos elementos (que é o próprio Mercúrio, Hermes), reconhecendo a eternidade no que é efêmero – que se refere Vincent van Gogh, na referida carta a seu irmão Theo. É uma vivência artística dominada pelo movimento que se opera entre a cor e o som, que se correspondem, mutuamente, em perfeita harmonia. Porque, segundo a filosofia natural, a cada som corresponde uma cor; e como há um número ilimitado de sons, também há um número ilimitado de cores, que se encontram adormecidas no Negro e despertas na Luz. Daqui se conclui que a vivência artística do momento coincide com a ordenação do caos interior que domina o artista, em particular, e o povo europeu, em geral. Deste poder curativo da música, já nos relata Pitágoras. De como as cores são capazes de o exprimir, mostram-nos, pela primeira vez, de forma originalmente alquímica os pintores impressionistas. Entre eles, destaca-se van Gogh, que consegue exprimir esta vivência de forma tão singular quanto Cesário Verde – talvez porque, nenhum dos dois, alguma vez, se tenha sujeitado a uma escola. Apresentam-se, na sua época, como dois espíritos rebeldes e geniais, que conseguem dialogar artisticamente com o seu tempo, permanecendo eles próprios. Tarefa difícil de cumprir para qualquer ser humano; tanto mais para o artista que, pela sua natureza sensível, depende, ainda mais do que é comum, do reconhecimento dos outros, para se sentir feliz.

Vincent van Gogh e Cesário Verde são dois rostos da arte que ainda estão por desvelar. ‘Empurrados’, para esta ou aquela escola, muito ao sabor dos gostos e às vezes das modas, são dois artistas impressionistas, no verdadeiro sentido do termo: pois captam e exprimem a impressão oferecida no momento ao olho do artista. É um olho duplo, este, não porque o artista tenha, forçosamente, dois olhos para observar, mas porque alia a visão exterior à interior. E, porque toda a realidade é simbólica quando é vista sem a desligarmos da sua essência, então, Vincent van Gogh e Cesário Verde são, talvez, dois casos únicos de artistas impressionistas-simbolistas, sem escola onde os possamos integrar.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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