«Eurydice em Roma», de Sophia Andresen


O mito de Orpheu sob uma nova luz


«ORPHÉE, fils d’Apollon & de la Nymphe Calliope; selon quelques-uns, fils d’OEagre & de Polymine, pere de Musée, & disciple de Linus. Mercure fit present à Orphée de la lyre dont il jouoit avec tant de perfection, que les fleuves s’arrêtoient dans leur course pour l’entendre ; les rochers s’animoient, & les autres animaux féroces s’apprivoisoient, toute la Nature devenoit sensible au fon de la lyre d’Orphée. Il se perfectionnna dans les Sciences par la fréquentation des Prêtres d’Egypte, qui lui dévoilerent tous les mysteres d’Isis & d’Osiris qui leur étoint confiées, & il en rapporta les fables & les solemnités qui furent adoptées dans la Grece. Mais Orphée en communiquant à son pays les connoissances qu’il avoit acquises en Egypte, s’acommoda aux notions de ses compatriotes, & s’y rendit respectable en leur perfuadant qu’il avoit découvert les secrets des Dieux & de la Nature, avec l’art de guérir les malades. Il épousa Eurydice, & l’aima si passionnément, que la mort la lui ayant enlevée, il fut la chercher dans les Enfers. Pluton & Proserpine se laisserent toucher aux tendres sons de la lyre d’Orphée, & lui permirent d’emmener avec lui sa chere Eurydice dans le séjour des vivans ; mais à condition qu’elle le suivroit, & qu’il ne tourneroit pas la tête jusqu’à ce qu’elle fût arrivée sur la terre. Orphée n’eut pas assez de patience, & son amour ne lui permit pas d’être privé si long-tems de la vue de son épouse ; il regarda derriere lui ; Eurydice lui fut enlevée de nouveau, & il la perdit pour toujours. Orphée méprisa ensuite toutes les autres femmes ; & les bacchantes, pour s’en venger, le mirent en piece»

DICTIONNAIRE mytho-hermétique, p. 357-358.

Nos seus primórdios, o Orfismo[1] aparece como uma antropogonia que tenta explicar as origens da humanidade, defendendo que o ser humano tem dentro de si uma partícula de origem divina, que lhe permitirá, um dia, encontrar o caminho do «paraíso». Este «paraíso órfico» é um «jardim» que será o destino de algumas almas (as que cumprem certos requisitos), após a morte. É uma escatologia que se exprime em termos poéticos e misteriosos, porque Orpheu é poeta, cantor e mágico.


« Quand ton âme aura quitté la lumière du soleil, va vers la droite, comme doit le faire quiconque est vraiment sur gardes. Salut, toi qui as subi ce qu’auparavant tu n’as pas encore subi. Tu es devenu dieu, de mortel que tu étais. Chevreau, tu es tombé dans le lait. Salut, salut, prends la route de droite, vers les prairies et les bois de Perséphone » (IG XIV, 642)[2].


Textos como este, redigidos em verso, eram inscritos em pequenas folhas de ouro que foram encontradas junto a esqueletos, perto da mão ou da boca do morto. Desta forma, pretendia-se conduzir a alma do defunto ao «jardim» final, o «paraíso órfico». E, para o atingir, parece que a direção seria sempre a da direita. Será seguindo esta direção que a alma do defunto poderá atingir a divinização. Esta é, em última instância, o seu alvo. Estes textos evocam «prados» e «bosques», um «lago» e «águas correntes», uma «fonte» e um «cipreste branco», assinalando o caminho a seguir. E o branco predomina simbolicamente – a cor do «leite».

Orpheu é um viajante, um explorador que transmite à doutrina órfica um carácter exótico e enigmático. O Orfismo, que surge sempre aliado a outra corrente esotérica, vai buscar as raízes da sua mensagem aos Mistérios egípcios e ao país dos Argonautas que procuravam o Toison d’Or. Este foi o trajeto iniciático percorrido pelo próprio Orpheu que, no seu percurso, sempre se revelou um rebelde, no sentido positivo do termo, rompendo com tradições. No entanto, segundo o mito, Orpheu não é só o herói que enfrenta a morte, descendo aos infernos, também é aquele que – depois de ter perdido definitivamente a sua esposa – se vira contra o sexo feminino. Neste sentido, ele proíbe a presença de mulheres nos Mistérios que ele institui[3], fundados nas suas experiências do Além. Interdição que irá provocar a fúria das mulheres trácias, que perseguirão os membros da confraria e matarão Orpheu.

Um pouco na esteira das trácias, Sophia de Mello Breyner Andresen apresenta o mito de Orpheu sob uma nova luz, dando-lhe uma nova ‘vida’, e adaptando-o a uma sensibilidade muito feminina, independente da diretiva masculina. O liberalismo que caracteriza o Orfismo em relação aos ritos tradicionais do seu tempo (por exemplo: os discípulos de Orpheu eram vegetarianos e não participavam dos festins que incluíam sacrifícios animais[4]), assume-o Sophia em relação ao próprio mito, quando corta as amarras que prendem Eurydice, enquanto mulher, à vontade e decisão masculinas. Acompanhemos o pensamento de Sophia, lendo este seu poema «Eurydice em Roma»:


Por entre clamor e vozes oiço atenta

A voz da flauta na penumbra fina

E ao longe sob a copa dos Pinheiros

Com leves pés que nem as ervas dobram

Intensa absorta – sem se virar para trás –

E já separada – Eurydice caminha[5]


Neste poema, ao contrário do que narra o mito, é Euridyce que decide o seu próprio destino, e não Orpheu que decide por ela. Em «Roma», palco histórico de inúmeras separações, sem escolha possível, Eurydice (e com ela Sophia) caminha leve como um deus, cujos pés «nem as ervas dobram». Serão os pés alados de mercúrio[6]? Ela caminha «sem se virar para trás», vivendo de forma «intensa absorta» a «voz da flauta», seguindo o seu chamamento – e cumprindo, assim, o seu destino. A separação, neste caso, é redenção. Agora, «separada» e redimida, Eurydice pode seguir – livre – o seu próprio caminho. Esta separação é libertadora do que separa da matriz; do que é incerto, imperfeito, pois nunca se dá tudo, nunca «se distingue bem» o «encontro», «do fracasso» – como escreve Sophia no poema «Elegia»: 


Aprende

A não esperar por ti pois não te encontrarás

No instante de dizer sim ao destino

Incerta paraste emudecida

E os oceanos depois devagar te rodearam

A isso chamaste Orpheu Eurydice –

Incessante intensa lira vibrava ao lado

Do desfilar real dos teus dias

Nunca se distingue bem o vivido do não vivido

O encontro do fracasso – 

Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta

Quando se ergue o canto

Por isso a memória sequiosa quer vir à tona

Em procura da parte que não deste

No rouco instante da noite mais calada

Ou no secreto jardim à beira-rio

Em Junho[7]

                                            1994


A relação sentimental é imperfeita. Porque se centra no Eu, nos desejos egocêntricos. Orpheu para, olha para trás, quer ter a certeza de que ‘tem’ de novo Eurydice, que recuperou a felicidade passada. E não se lembra da promessa que fez, e da qual depende, nesse preciso momento, o retorno de Eurydice à vida. Por isso, quem parte ao encontro de Si-mesmo, não pode parar emudecido, nem olhar para trás, sem que «os oceanos», lentamente, o rodeiem. Tem de aprender a não esperar por si mesmo, mas a reconhecer-se no momento presente, «solenemente exacto». Tem de sair dessa «transparência ambígua»[8] em que habitam Orpheu/Eurydice[9].


[1] Cf. DICTIONNAIRE CRITIQUE de l’ésoterisme. Sous la direction de Jean Servier. Paris: Presses Universitaires de France, 1998, p. 987-990.

[2] Ibidem, p. 989.

[3] Os Mistérios órficos são mal conhecidos. Supõem a existência de uma iniciação (Heródoto, II, 81) e de ritos: a proibição de usar vestes de lã, o culto de Apolo, a submissão aos textos, o vegetarianismo, a recusa de assistir às mortes e aos nascimentos. Cf. RIFFARD – Dicionário do esoterismo, p. 268; «Culte à « Mystères » dans lequel Orphée joue le rôle d’initiateur légendaire et Dionysos-Zagréus celui de principe divin. Les mystères orphistes ont profondément influencé les Pythagoriciens»: MASSON – Dictionnaire initiatique, p. 203.

[4] Cf. SCHMIDT, Joël – Dicionário de mitologia grega e romana. Lisboa: Edições 70, 2005, p. 204-205.

[5] ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner – Musa. Lisboa. Caminho, 2004, p. 26.

[6] «Toda a viagem é um acto sagrado, e todo o viajante é um herói inquieto. Quem viaja busca, mesmo sem o saber, o seu próprio self, a conexão com alguma forma de divindade. Por isso, tantas epopeias religiosas e espirituais estão ligadas à ideia de viagem. Os cavaleiros medievais em busca da Terra Santa ou do Santo Graal; os argonautas gregos à procura do velocino de ouro; o herói Ulisses na sua odisseia de retorno à ilha de Ítaca; os peregrinos de todos os tempos e lugares que a Roma, a Santiago de Compostela, a Jerusalém ou ao santuário de Aparecida do Norte; todos caminham em direcção ao seu centro espiritual, ao seu self. § “Os verdadeiros viajantes são aqueles que partem por partir”, disse o poeta Baudelaire, definindo de modo exemplar a figura do peregrino. Os peregrinos constituem um tipo especial de viajantes, que aparentemente viajam para atingir lugares que se encontram do outro lado: santuários, templos, cidades, montanhas sagradas. Mas o peregrino não vai a eles apenas por curiosidade, ou para se divertir e descansar. O que o atrai, na verdade, é a qualidade especial das experiências que lhe é possível viver no decorrer dessas viagens. Por isso, a viagem como experiência sagrada e iniciática acontece em todo o seu percurso, e não apenas no seu ponto de chegada»: PELLEGRINI, Luís – Viagens à procura do self: os pés alados de mercúrio. Lisboa: Pergaminho, 1999, p. 11-12.

[7] ANDRESEN – Musa, 2004, p. 38.

[8] ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner – Dual. Lisboa: Caminho, 2004, p. 29: «Homenagem a Ricardo Reis

Ausentes são os deuses mas presidem.

          Nós habitamos nessa

          Transparência ambígua.

Seu pensamento emerge quando tudo

          De súbito se torna

          Solenemente exacto.

O seu olhar ensina o nosso olhar:

          Nossa atenção ao mundo

          É o culto que pedem.»

[9]  Atente-se na ambiguidade semântica, originada pela ausência de pontuação, desta frase: «A isso chamaste Orpheu Eurydice». Nos textos de Sophia, encontramos, com frequência, este gosto pelo “jogo de palavras”, que nos lembra a linguagem dissimulada ou oculta da «Língua dos Pássaros». Segundo Fulcanelli, a língua é um instrumento do espírito e, para (re)encontrar esse espírito, é preciso saber «dissecar as palavras, quebrar a sua casca e libertar o espírito, divina luz que elas contêm». Cf. Anes, José Manuel – A linguagem dos pássaros e a Quinta da Regaleira: entra a Maçonaria Templária e a Alquimia Rosacruciana. In O ESOTERISMO da Quinta da Regaleira. Lisboa: Hugin, 1998, p. 93-94.


Sobre a temática acima exposta, cf. GRIEBEN, Fernanda Alves Afonso – Uma viagem sem princípio nem fim… com Sophia de Mello Breyner Andresen: entre esoterismo e cristianismo. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 2010. 126 p.

Pode ler AQUI o resumo e as primeiras páginas desta Dissertação de Mestrado Integrado em Teologia.


Fernanda Alves Afonso Grieben

[email protected]

Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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