«O Missal do Poente», de Alberto de Oliveira
Missal do Poente! Abro-te as folhas, uma a uma:
Páginas de oiro, de morango, cor de espuma,
Páginas cor de mar, páginas cor de auroras!
Abro-te como leio os códices antigos.
És um Santo dos meus, é um dos meus Amigos,
Meu único Evangelho, único Livro de Horas!
És um Diário do Azul, o Jornal de algum Astro,
Que escreva, pelo Céu, com pena de alabastro,
Sua “História-do-Dia” em farrapos de cor.
Oiros e púrpuras, tons verdes, tons de rosa!
Compreendo que exprimis doença, crise nervosa,
Quase partilho a vossa Mágoa e a vossa Dor!
Invernos fora, quando as plantas fiquem viúvas,
Quando o Sol oxidar, à chegada das chuvas,
E o doente Pôr-do-sol não me visite mais:
Então fabricarei, num sonho de alquimista,
Tintas de alucinar, que embriaguem a vista,
Pedrarias de cor, poentes artificiais!
E que ao adormecer no derradeiro sono,
Poente! que seja com as folhas, pelo Outono,
Quando os pâmpanos têm as tintas de oiro-velho:
Quando o Sol, morto, lembra a iluminura intensa
De algum hierático missal da Renascença
De algum medieval e precioso Evangelho!
Alberto de Oliveira, Poesias
Contemporâneo do pintor inglês J. W. Waterhouse, o poeta português, Alberto de Oliveira (1873-1940), expressa-se artisticamente num tempo histórico em que o Homem europeu vive uma profunda crise de identidade. Esta crise finissecular, que começa por ser ideológica, enquanto crise do realismo e do naturalismo científico, leva o artista europeu a procurar novas formas de expressão. É neste contexto que emergem conceções estéticas decadentes, que vão ao encontro dos valores do simbolismo.
Na produção literária portuguesa do fim de século, tais conceções assumem então configurações específicas, que espelham a nossa própria cultura (rica em heróis e mitos nacionais). Neste sentido, destacam-se o Neogarrettismo e o Saudosismo, tendo sido o primeiro destes movimentos inaugurado por Alberto de Oliveira, que em 1894:
[…] dá ao púbico as Palavras Loucas, com que preconiza o retorno à tradição folclórica e nacionalista que, encontrando na ação e na obra de Garrett seu modelo maior, acaba inaugurando o chamado neogarrettismo da geração de 90 (MOISÉS, M., 2006: 214).
Integrando o grupo Boémia Nova (1889), será num ambiente cultural decadente, de forte insegurança política (originada pelo Ultimatum de 1890) e animado por um misticismo nacionalista (em que o patriotismo se alia à Utopia), que Alberto de Oliveira irá compor a obra Poesias (1891). Perpassa-a o pessimismo nacional deste fim de século, que ele virá três anos depois a descrever em Palavras loucas: “Na minha voz fala um povo a morrer […]. Todos agonizamos em inércia desesperada e temos quase terror de vir a ter filhos por não sabermos que destino lhes traçar na terra” (OLIVEIRA, A., 1894: 2-5).
No entanto, no belo poema acima citado, “O Missal do Poente”, também podemos antever uma esperança que se ergue fundada na transmutação que se pode efetuar através de um “sonho de alquimista”. E que sonho é este? É um sonho que se vive dentro de um Círculo Mágico – assim como o representou plasticamente o pintor J. W. Waterhouse.
Enquanto eixo do mundo, o próprio ser humano, corresponde à concentração das forças ambivalentes do círculo: a paz do que se fecha em si mesmo, e a dinâmica de um movimento que se vira para o exterior.
Em todas as narrativas sobre a formação do Cosmo, a Criação parte de um centro, de um ponto de origem. Na simbólica genesíaca, este centro corresponde ao paraíso terrestre. Os quatro afluentes que partem do Éden indicam as quatro direções do mundo que começa, assim, por ser representado segundo uma conceção quaternária, que encontrará mais tarde expressão na imagem do círculo, simbolizando o princípio central. Na simbologia alquímica, a passagem evolutiva do quadrado ao círculo, como símbolo da totalidade, surgirá na sequência desta conceção.
O quadrado com os seus quatro lados representa os quatro elementos, as quatro estações do ano, as quatro direções da bússola, os quatro braços da cruz terrena e o mundo material mutável, percetível pelos cinco sentidos. O círculo (ou a esfera) representa, então, a perfeição infinita do amor divino, o reino unificado, espiritual, de Deus. É neste sentido que Mercúrio é simbolizado pelo Ouroboros, que forma um círculo.
A perfeição do círculo, da forma redonda, torna-o no símbolo da totalidade, por excelência. Vejamos o que escreve Jung a este respeito, apoiando-se na Psicologia Analítica, que fundou:
Dada a coincidência notável dos resultados da pesquisa psicológica com os conhecimentos do ioga, escolhi o termo sânscrito “mandala”, que significa “círculo”, para designar este símbolo central. […]
A um determinado estágio do tratamento psíquico, os pacientes desenham às vezes, espontaneamente, essas mandalas, seja porque sonharam com elas, seja porque sentem de súbito a necessidade de compensar sua desordem psíquica com a representação de um conjunto ordenado (JUNG, K. G., 1980: 97-98).
Na natureza, a forma redonda do Sol, ou da Lua, permitem-nos reconhecer nelas uma forma cósmica, que participa da perfeição do Cosmo. Por isso, no poema de Alberto de Oliveira (“O Missal do Poente”, acima citado), quando, no “Inverno”, “o Sol oxidar” e “o doente Pôr-do-sol” não visitar mais o poeta, este fabricará, “num sonho de alquimista”, “poentes artificiais”, feitos de “tintas de alucinar”.
O gosto pela artificialidade está bem de acordo com a estética simbolista; cores que “embriaguem a vista”, também. E o “Poente”, que na alquimia, como neste poema, também corresponde ao “Outono” e ao “oiro-velho” é, precisamente, o ponto em que é possível a renovação das forças cósmicas, a “Renascença”. É por esta razão que a entrada principal do Templo maçónico se localiza no Ocidente (Poente). É por ela que deverá entrar o postulante, depois de ter Visitado o Interior da Terra, que corresponde ao Norte, ao “Inverno”, à morte (ao “derradeiro sono”). Pois o “profano deve morrer para renascer na vida superior que confere a iniciação” (BERNARD, R., 2005: 134).
Este “Missal do Poente” (substituto do Missal Romano) torna-se, assim, imagem de um culto litúrgico que celebra o amor à Pátria (o “Sol”) e às suas raízes medievais e preciosas (“medieval e precioso Evangelho”), através do amor à Natureza. Neste culto de amor à Pátria (que poderá morrer), o poeta português participa na “subtil fusão que se opera entre os elementos” (MARKALE, J., 2000: 86). É um culto panteísta, naturalista, que busca a identidade portuguesa “recortada nas paisagens, nas gentes e nos costumes essencialmente rurais” (ROSMANINHO, N., 2010: 524); e que encontra em António Nobre e no seu Só “uma espécie de exemplum e de modelo a seguir”, porque “em Nobre está a tradição, o povo simples, o Portugal autêntico, a raça, etc., tudo aquilo que nutre o Neogarrettismo de Alberto de Oliveira” (FEIJÓ, E. J., 2007: 349).
OBRAS CITADAS:
BERNARD, Raymond (2005) – As mansões secretas da Rosa-Cruz, Corroios, Zéfiro.
FEIJÓ, Elias J. Torres (2007) – Para uma cartografia da traduçom literária entre 1900 e 1930, in DIOS, Ángel Marcos de (Ed.) – Aula Ibérica, Salamanca, Universidad de Salamanca.
JUNG, Karl Gustav (1980) – Psicologia e religião oriental, Petrópolis, Vozes.
MARKALE, Jean (2000) – As três espirais: meditação sobre a espiritualidade céltica, Lisboa, Pergaminho.
MOISÉS, Massaud (2006) – A literatura portuguesa, 34a ed. [1ª ed. 1960], São Paulo, Cultrix.
OLIVEIRA, Alberto de (1894) – Palavras loucas, Coimbra, França Amado.
ROSMANINHO, Nuno (2010) – Arte nacional: conceito e funcionalidade, in RIBEIRO, Maria Manuela Tavares (cord.) – Outros combates pela História, Coimbra, Universidade de Coimbra.
Sobre alquimia e literatura, cf. GRIEBEN, Fernanda Alves Afonso – Uma viagem sem princípio nem fim… com Sophia de Mello Breyner Andresen: entre esoterismo e cristianismo. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 2010. 126 p.
Pode ler AQUI o RESUMO desta Dissertação de Mestrado Integrado em Teologia.
John William Waterhouse (The Missal, 1902)
https://www.johnwilliamwaterhouse.com/pictures/missal-1902
John William Waterhouse (The Magic Circle, 1886)
https://www.johnwilliamwaterhouse.com/pictures/magic-circle-1886
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