«Retrato de Mónica», de Sophia Andresen


Um espelho da identitade cultural portuguesa no tempo do Estado Novo


RESUMO: O conto «Retrato de Mónica», que integra os Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen, espelha caricaturalmente a estreita relação que preponderava nos anos 60 do século XX entre o Estado Novo e a Igreja Católica em Portugal. Em concordância de interesses, ambos tentavam impor, pelo exercício do poder instituído, os valores com que se identificavam. A par dessa cultura dita erudita, porém, prevalecia ainda, em Portugal, uma cultura popular religiosa, de substrato pagão.


Palavras-chave: Identidade Cultural Portuguesa; Contos Exemplares; Simbólica; Estado Novo; Religiosidade.


1. «Retrato de Mónica»: um conto exemplar. O conto «Retrato de Mónica», que integra os Contos Exemplares (compostos em 1962), de Sophia de Mello Breyner Andresen, é um espelho caricatural da estreita relação que preponderava nos anos 60 do século XX entre o Estado Novo e a Igreja Católica em Portugal. Esta relação, fundada na Concordata de 1940, é retratada metaforicamente por Sophia, neste seu conto exemplar, fazendo-a corresponder à relação de intimidade que mantem a personagem principal, «Mónica», com o «Príncipe deste Mundo» (cf. ANDRESEN, S. 2010: 113-114). Este último, é uma figura bíblica que personifica o mal, Διάβολος (literalmente, ‘o que separa’) – que representa o poder das trevas, o medo da morte e a separação de Deus –, e opõe-se aos desígnios de Deus sobre o mundo (cf. Jo 12,31; 14,30; 16,11). «Mónica», por sua vez, encarna a imagem da mulher perfeita, sob todas as formas de que a ‘aparência’ se pode revestir (cf. id.: 111). São formas sem conteúdo, que espelham estados alienatórios, próprios de uma nação que perdeu a sua identidade cultural e vive uma vida artificial, baseada no culto idolátrico de um falso deus: o Estado Novo. Uma perda de identidade que, nos mesmos Contos Exemplares, se expressa alegoricamente no conto «A Viagem», em que os protagonistas da narrativa – «homem» e «mulher» – são só caracterizados pelo género, sem serem apresentados ou identificados (cf. ANDRESEN, S., 2010: 91). «Homem» e «mulher» (o andrógino) correspondem simbolicamente ao ser humano português, que vive no tempo do Estado Novo. Por isso, com o desenrolar da ação, estes protagonistas, desprovidos de identidade, serão vítimas de um conjunto de circunstâncias adversas – que se revelam uma força opositora à realização da sua felicidade -, sem se mostrarem capazes de lutar contra essas mesmas adversidades ou, de qualquer outra forma, alterar o seu destino fatídico, que os irá encaminhar para um abismo final (cf. Id.: 106-108). Porquê? Porque eles espelham um atuar que corresponde ao agir coletivo de uma nação que perdeu valores referenciais e que se encaminha para um abismo, a uma velocidade vertiginosa, sem estar minimamente consciente da situação trágica em que se encontra. É um atuar alienado, porque quem perde a identidade, perde o seu rosto, perde o seu valor, como afirma Sophia numa carta, escrita de Lisboa a Jorge de Sena, em 18 de Novembro de 1969 (SOPHIA; SENA, 2006: 105):


Creio que o grande mal português será que sempre deixamos os gregos em paz. Por isso somos um país que não se reconhece. Um país que julga que a austera, apagada e vil tristeza é a condição do homem. Fomos um país de grandes navegadores – mas nunca tivemos em frente do mundo aquele sorriso de espanto que tinham as estátuas dos navegadores jónicos.


O Povo português está perdido num labirinto, sem possuir um ‘fio de Ariadne’ que o ajude a sair dele. Porque, ao contrário de Sophia no poema «Minotauro» (ANDRESEN, S., 2006: 117-119), não tem a coragem de afirmar que pertence “à raça daqueles que percorrem o labirinto/Sem jamais perderem o fio de linho da palavra“. Só quem tem essa coragem, também é capaz de penetrar “no interior do mar“, de mergulhar “de olhos abertos“, de reconhecer “o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flor”, para poder, por fim, executar “a dança do ser” com o Dionysos, que “não se vende em nenhum mercado negro/Mas cresce como flor daqueles cujo ser/Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne”. É urgente, por isso, o regresso à vida, ao cultivo de valores essenciais, que restituam a identidade cultural perdida. É urgente que a procura do Ser substitua a cultura estéril do ter. Logo, a passagem de um estado de consciência em que se vive da ‘aparência do ser’ (que é o mesmo que dizer, do possuir) para outro mais elevado, em que o Ser no ser humano se revela, é um motivo central nos Contos Exemplares de Sophia Breyner.


1.1 O ter e o ser. Na sua obra La poétique de l’espace, Gaston Bachelard defende que todo o espaço que é “vraiment habité porte l’essence de la notion de maison” (1984: 24). Assim sendo, o país em que habitamos também pode corresponder simbolicamente a uma casa, onde uma enorme família se reúne sobre o mesmo solo, debaixo do mesmo firmamento. E sendo ainda o espaço a que chamamos ‘casa’ um conjunto organizado de imagens que nos transmitem uma sensação de estabilidade, seja ela real ou ilusória (cf. id.: 34); então, uma nação também se constituirá por meio de “universos simbólicos” que transmitem aos seus habitantes essa mesma sensação de estabilidade, real ou ilusória. Serão então estes mesmos sistemas de representações (valores) que irão formar a base identitária cultural de um povo, em torno de um país que, dessa forma, vai construindo a sua própria cultura nacional (cf. FERNANDES, A., 1997: 155).

Partindo destes pressupostos, podemos agora refletir sobre o simbolismo de dois tipos diferentes de casa (lar), que Sophia nos apresenta nos Contos Exemplares, retratando a Portugalidade.


1.1.1 A casa grande, branca e antiga. No conto «O jantar do Bispo», um narrador heterodiegético abre o relato com a descrição do aspeto exterior de uma casa, em que faz sobressair as suas características de grandeza e antiguidade, sem mácula, por contraste com o meio rural pobre – mas colorido e rico do ponto de vista natural – em que se encontra localizada (ANDRESEN, S., 2010: 45):


A casa era grande, branca e antiga. Em sua frente havia um pátio quadrado. À direita um laranjal onde noite e dia corria uma fonte. À esquerda era o jardim de buxo, húmido e sombrio, com suas camélias e seus bancos de azulejo.

A meio da fachada descia uma escada de granito coberta de musgo. Em frente dessa escada, do outro lado do pátio, ficava o grande portão que dava para a estrada.

A parte de trás de casa era virada ao poente e das suas janelas debruçadas sobre pomares e campos via-se o rio que atravessa a várzea verde e viam-se ao longe os montes azulados cujos cimos, em certas tardes, ficavam roxos.

Nas vertentes cavadas em socalco crescia a vinha. Era ali a terra pobre donde nasce o bom vinho. Quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho. […].


Esta é uma casa imponente e rica, que subsiste num meio simples e pobre (cf. ROCHA, C., 1980: 38) e a sua importância na representação da história está determinada desde o início da narrativa, através das informações preambulares que o narrador transmite ao possível leitor. É uma casa habitada e frequentada por várias pessoas, que nela convivem; e tem um proprietário, cuja identidade não é revelada, sendo apenas apresentado como “O Dono da Casa” (id.: 46):


O Dono da Casa estava de pé, encostado á lareira acesa na sala grande, rodeado de convidados, que eram primos, primas e alguns vizinhos. Estava calado, alheio à conversa: meditava, pesava as suas razões, defendia em frente de si próprio a sua casa e a sua justiça. Faltava o último convidado, que era o Bispo.

O Dono da Casa tinha um pedido a fazer ao Bispo. Fora mesmo por isso que o convidara para jantar.


A forma como esta personagem é caracterizada reveste-se de duplo sentido; já que, ao apresentar uma personagem sem identidade, mas com uma propriedade, o narrador está a destacar o valor da própria ‘Casa’, como se esta fosse um ser capaz de fornecer a identidade a outro. Não é relevante quem o ‘Dono da Casa’ é, só importa o que ele possui: uma casa grande e antiga que se pretende imaculada (branca), mas simboliza um poder corrupto, instituído num determinado território, há muito tempo: “O abade de Varzim tinha sido vendido por um tecto” (id.: 64).


1.1.2 A casa entre pinhais. No conto «A Viagem» surge uma descrição pormenorizada de uma casa que fica entre pinhais, e na qual se realiza, simbolicamente, um ágape (ANDRESEN, S., 2010: 96-97):


Ao longe, entre pinhais, surgiu uma casa.

Bateram à porta da casa. Ninguém respondeu. Escutaram e pareceu-lhes ouvir vozes. […]

Era uma pequena casa de camponeses. Uma casa nua, onde só estavam escritos os gestos da vida. Havia uma cozinha e dois quartos. Num rebordo da parede de cal estava colocada uma imagem; em frente da imagem ardia uma lamparina de azeite; ao lado, alguém poisara um ramo de flores bentas na Páscoa.

Não havia ninguém na cozinha. Não havia ninguém nos quartos. Não havia ninguém nas traseiras, onde as roupas secavam, dependuradas no arame, gesticulando na brisa.

No forno a cinza ainda estava quente e em cima de uma mesa havia vinho e pão.


Esta é uma casa nua, situada no meio da Natureza, num lugar onde uma ligeira brisa – o vento de Deus (cf. GIRARD, M., 1997: 242) – se faz sentir. É uma casa de camponeses (pagani). Na descrição que Sophia faz do interior desta casa, as referências à «imagem», à «lamparina de azeite» e às «flores bentas na Páscoa», no «rebordo da parede de cal», podem reenviar para o sincretismo que caracteriza a religiosidade popular portuguesa, na qual os elementos cristãos se misturam, frequentemente, com os dos cultos naturalistas, pagãos. É de salientar, também, que, neste mesmo conto, a imagem da casa será substituída, num tempo diegético posterior, pela da clareira (“Mas no lugar onde tinha sido a casa agora havia só uma pequena clareira e pedras espalhadas”, p. 97), onde a «mulher» chorará, então, amarguradamente o desaparecimento da casa, e as suas lágrimas misturar-se-ão com a terra, no seu rosto. Esta clareira pode corresponder simbolicamente a um antigo local sagrado dos druidas, remetendo, assim, para um passado religioso pagão (CARR-GOMM, Ph., 2008: 26), do qual ainda restam vestígios na cultura portuguesa[1].

Do interior da casa parece que chegam vozes, no entanto, está vazia. Serão ecos de um passado que está presente, ainda que de forma oculta? Dos possíveis moradores desta casa, só restam os sinais de uma vida simples e natural. De uma vida que se mantém ‘viva’ – como o calor da cinza no forno – e que se renova e fortifica na comunhão, simbolizada pelo pão e pelo vinho, colocados em gesto de oferta em cima de uma mesa. Esta comunhão implica a partilha dos frutos da Terra, num meio simples e natural – no interior de uma casa entre pinhais.


[1] Acrescenta ainda Carr-Gomm: “Embora a Igreja tenha tentado varrer quaisquer vestígios do culto druídico (destruindo círculos de pedra, construindo igrejas em locais sagrados para os druidas, etc.) nem tudo se perdeu […]” (id.: 53).


1.2 Vida artificial e vida natural.


Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse.

Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram.

– Devemos estar a chegar – disse o homem.

E continuaram.

Árvores, campos, serras, rios, fugiam para trás, escorregavam para longe.


Neste trecho do conto «A Viagem» (ANDRESEN, S., 2010: 91), a imagem da «encruzilhada» corresponde simbolicamente a uma força capaz de separar dois mundos que se opõem diametralmente: um, marcado pela ação humana sobre o meio ambiente, onde existem «casas», «pontes» e «aldeias»; e outro, marcado pela ausência dessa mesma ação, onde um novo elemento, «os campos», vem substituí-la. Estes dois mundos, que a «encruzilhada» separa, e simultaneamente une, representam basicamente duas formas diferentes de viver, duas maneiras opostas de encarar a vida humana sobre a Terra. Uma, em que o ser humano tem a ilusão de poder controlar a Natureza e determinar a sua vida – formando sociedades, decretando as leis que as regem, impondo a sua vontade própria pelo exercício do poder instituído –, outra, em que o ser humano é obrigado a reconhecer que também ele é parte integrante dessa Natureza, a cujas leis a sua vida está subordinada. A vida natural nos ‘campos’, pela sua maior simplicidade, pode proporcionar ao ser humano uma melhor perceção destas leis naturais que regem a vida. A vida social, artificialmente reconstruída, mais facilmente o desviará da sua essência, obrigando-o a optar – de forma mais radical – entre o viver na verdade ou viver na mentira; entre o bem viver e o mal viver; entre Deus e o Diabo. E a tentação de subordinar a opção a “uma vontade sem amor”, como a que une «Mónica» e o «Príncipe deste Mundo» (cf. ANDRESEN, S., 2010: 114), estará mais vezes presente.

Nas tradições populares portuguesas, a imagem da «encruzilhada» também simboliza um perigo diabólico. Talvez porque a experiência de vida tenha mostrado ao povo português o que significa uma opção fundamental, uma escolha determinante para o futuro do indivíduo. No imaginário popular, esta opção alia-se, espontaneamente, ao «Diabo», ao «rosemunho» e ao «meio-dia» (a «hora aberta»). Segundo os estudos realizados por Consglieri Pedroso, há diferentes versões populares quanto à identidade do «rosemunho», que torna as encruzilhadas tão perigosas para quem as encontra no seu caminho (“[…] numas versões, é apenas uma nova manifestação do Diabo, conforme outros é um génio diverso deste, quer se chame ‘rosemunho’ (redemoinho), ‘entreaberta’, ‘homem das sete dentaduras’ ou simplesmente ‘cousa má’”, 1988: 232). Mas, independentemente do nome que lhe possa ser atribuído, o «rosemunho» é sempre uma força maléfica e tentadora que aparece à hora do meio-dia, nas encruzilhadas (“[…] é como uma poeirada; leva paus, pedras e se apanha uma pessoa no meio leva-a também pelos ares, mas se a pessoa trouxer umas contas na algibeira, e as atirar à tal coisa má ou demónio, não lhe acontece mal nenhum”, id.: 231). Contra esta força demoníaca existem, por todo o país, orações de carácter esconjuratório. E é tão temida, que até se acredita que o poder dela possa prolongar-se para lá da vida terrena (“Quando um defunto que é levado para a Igreja, se passa por uma encruzilhada de três caminhos, deve parar-se ai, abrir o caixão e rezar um responso”, id.: 283). No Algarve, onde esta «cousa má» é conhecida como «homem das sete dentaduras» conta-se que este demónio aparece ao meio-dia num sítio conhecido pelo nome de Cerro Vermelho, próximo de Fuzeta, devorando então quem encontra (cf. id.: 232). Também é crença comum que no dia de S. Bartolomeu (24 de Agosto) ande o Demónio solto, entre o ‘meio-dia’ e as 13 horas (id.: 229).

A opção fundamental que o ser humano é obrigado a tomar – sempre que no seu caminho (na sua vida) surge uma encruzilhada – é tão receada, porque se acredita que “do lado direito de cada um de nós anda sempre o Anjo da Guarda a proteger-nos e a aconselhar-nos em bem, e do lado esquerdo anda o Diabo a desfazer-nos o que o Anjo da Guarda faz e a tentar-nos para o mal” (id.: 249); sendo este um medo que se associa igualmente ao possível destino dos defuntos: “Em Basto, quando alguém morre, queima-se-lhe a folha do enxergel. Se o fumo sobe em coluna direita para o ar, a alma do falecido foi para o Céu, se o fumo toma para o lado direito, para o Purgatório; se para a esquerda, para o Inferno” (id.: 286). Donde se depreende que a linha vertical – Terra-Céu – é a única capaz de libertar o ser humano desta tensão mundana – direita-esquerda – em que vive repartido entre o Purgatório e o Inferno. Enquanto é obrigado a optar, como no conto «A Viagem», de Sophia – ‘homem’ ou ‘mulher’ – estará sempre dependente do que lhe diz o ‘Anjo da Guarda’ ou o ‘Diabo’: a boa ou a má consciência. Saliente-se, contudo, que neste conto de Sophia, na encruzilhada, a opção recai sobre a direita. Logo, ao dirigirem-se em direção aos ‘campos’, «homem» e «mulher» estão a tomar a direção do Purgatório, onde os pecados terão de ser limpos. Num país onde não há liberdade, só existe opção entre ‘Purgatório’ ou ‘Inferno’.


1.2.1 Caridade e santidade. No Conto «Retrato de Mónica», deparamos com as seguintes afirmações (ANDRESEN, S., 2010: 111-112):


A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.


Renunciar à santidade dia a dia é viver desligado do que é essencial, no sentido literal do termo, ou seja, é viver exteriormente para a existência, ignorando por total a sua essência. É um viver vazio e infundado – é um viver alienado. Este tipo de alienação tanto serve «Mónica» como o «Príncipe deste Mundo», no Portugal colonialista dos anos 60. Por isso, ambos o cultivam, educando o povo português nesse sentido. Estado Novo e Igreja Católica em Portugal estabelecem então uma aliança que – opondo-se a essa Aliança Santa que Deus estabeleceu com o seu Povo no Sinai, e da qual o Cristianismo é herdeiro – se materializa numa Concordata de mútuos interesses mundanos, de sórdidos desejos de poder. Para manter as aparências, porém, ambos se dedicam com dinamismo a obras de caridade, depois de terem renunciado à santidade (cf. ANDRESEN, S., 2010: 113).


Conclusão. Nascida em 1919, Sophia de Mello Breyner Andresen viveu grande parte da sua vida sob ditadura e opressão, quando Fascismo e Catolicismo se entreajudavam em Portugal, ao abrigo da Concordata de 1940. Da produção literária de Sophia, dos anos 60, destacamos neste estudo o conto «Retrato de Mónica», que integra os Contos Exemplares, porque o consideramos um espelho caricatural da identidade cultural portuguesa desse tempo, assim como a autora a percecionou, deixando dela um testemunho crítico. Subjacente a este testemunho, encontra-se, como é natural, a sua própria visão da vida. E mesmo que esta visão não constitua, no todo da sua Obra, uma estrutura relevante de ideias organizadas, que nos permita falar de um pensamento filosófico em Sophia de Mello Breyner Andresen – ela representa, contudo, uma perspetiva do vivenciado que não é simplesmente datada, mas poética. Uma perspetiva que visa a coincidência do “nosso ser com os seres” (SOPHIA; SENA, 2006: 106-107):


E se assim não acontece é por erro nosso porque não estávamos suficientemente atentos, e algumas vezes porque, por falta de fé dum momento, não ousamos acreditar no que reconhecíamos. […]. Tomámos há muitos séculos um caminho errado e não creio que levar o erro mais longe seja uma forma de progresso. A questão está na forma como entendemos o Evangelho.


Um desafio que, no nosso tempo, se associa a outros, já que como escreve A. Teixeira Fernandes (1998: 260):


O Estado-nação aparece actualmente como incapaz de assegurar a integração social e cultural. Os desafios da transnacionalização agudizam mais ainda essa incapacidade.

[…] Uma vez que a capacidade estatal de integração entra em crise, difícil se torna a produção, entre os cidadãos, de uma entidade cultural assente na partilha de valores e de normas comuns.


BIBLIOGRAFIA


Fontes

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (2006) – Antologia: Mar, 6 a ed., Lisboa, Caminho.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (2010) – Contos Exemplares, 37 a ed., Porto, Figueirinhas.

Estudos

BACHELARD, Gaston (1984) – La poétique de l’espace, 12 e éd., Paris, Presses Universitaires de France.

CARR-GOMM, Philip (2008) – Os mistérios dos druidas: sabedoria antiga para o século XXI, Sintra, Zéfiro.

FERNANDES, Teixeira António (1997) – A sociedade e o Estado: sociologia das formações políticas, Porto, Afrontamento.

FERNANDES, Teixeira António (1998) – O Estado democrático e a cidadania, Porto, Afrontamento.

GIRARD, Marc (1997) – Os símbolos na Bíblia: ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência humana universal, São Paulo, Paulus.

GRIEBEN, Fernanda Alves Afonso – Uma viagem sem princípio nem fim… com Sophia de Mello Breyner Andresen: entre esoterismo e cristianismo. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 2010. 126 p.

PEDROSO, Consiglieri (1986) – Contribuições para uma mitologia popular portuguesa e outros escritos etnográficos, Lisboa, Publicações Dom Quixote, [Portugal de Perto, nº 16].

ROCHA, Clara Crabbé (1980) – “Os Contos Exemplares” de Sophia de Mello Breyner, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica.

SOPHIA de Mello Breyner; SENA, de Jorge (2006) – Correspondência 1959-1978, 2 a ed., [Com três cartas inéditas], Lisboa, Guerra e Paz.


O estudo aqui apresentado foi elaborado em 2012, no âmbito do Curso de Doutoramento em Estudos Portugueses (UAb), para a disciplina Temas de Cultura Portuguesa II, ministrada pelo Prof. Doutor Carlos Castilho Pais.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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