Celibato e Completude


A ideologia subjacente à conceção da personagem Eurico


Resumo: O herói romântico Eurico, personagem concebida por Alexandre Herculano, apresenta-se ao leitor do romance histórico Eurico, o presbítero como o eixo à volta do qual circulam as linhas de força de uma ideologia gnóstica cristã. É sobre estas linhas de força, e a forma como a personagem Eurico foi concebida para as pôr em ação, que o presente estudo se propôe refletir um pouco.


Palavras-chave: Personagem de ficção; Alexandre Herculano; Eurico, o presbítero; Ideologia.


1. Eurico: ideia, idealização e ideologia. Uma ideia – uma simples ideia – começa por surgir espontaneamente na mente do artista, antes que a obra nasça. Esta é uma experiência confirmada por inúmeros artistas. Fernando Pessoa exprime-a desta forma: “aconteceu-me um poema”. E José Régio, explicando a génese do livro Chaga do Lado, confessa a seu irmão João Maria, numa carta datada de Portalegre, a 21 de Maio de 1954, que a inspiração poética lhe surge “de noite, na rua, nos intervalos das aulas”. Esta primeira ideia, que surge de forma espontânea, constitui o cerne da inspiração que, para florir, precisa de se sentir livremente acolhida na mente do artista. E talvez seja aqui, neste ponto, que se possa colocar a questão da criação literária. Ou seja, como se enformará essa ideia inicial, que a mente do artista acolhe, no texto literário? Numa entrevista, concedida há já vários anos, Eugénio de Andrade afirmava a certa altura que, na elaboração do texto literário, a ideia inicial, espontânea, sem a qual não há verdadeira criação literária, corresponderia apenas a uma mínima parte do trabalho do poeta, tudo o resto, dizia ele, é trabalho de artesão, que todo o escritor, sendo exigente, deverá pôr em prática. Mas em que consiste este trabalho de artesão? Reduzir-se-á simplesmente a uma procura incessante da palavra – da palavra exata –, no sentido de uma mera busca formal e estética? Ou será que essa procura pode ser subordinada, também (ou unicamente), a outras ideias já anteriormente formadas na mente do artista? Ideias essas que podem traduzir-se em Idealizações ou Ideologias.

Na Introdução da obra Eurico, o presbítero, Alexandre Herculano começa por esclarecer o leitor acerca das razões que presidiram à feitura deste seu romance histórico, afirmando que o mesmo nasceu da “ideia do celibato religioso” que, “à luz do sentimento”, é uma “espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existência na terra”; e “dos raros vestígios” que achou nas “tradições monásticas”. Com este esclarecimento, Herculano salienta três aspetos capitais deste seu romance:


  1. Que esta sua obra nasceu de uma ideia, ou seja, é fruto de uma inspiração – é arte;
  2. Que a esta mesma obra subjaz uma ideologia – aquela que Herculano exprime através dos juízos de valor que emite acerca do celibato religioso;
  3. Que este seu texto literário se pretende fundado numa tradição histórica, que é o mesmo que dizer, não é só idealização.

Estes três aspetos deste romance histórico de Herculano espelham-se, logicamente, na personagem Eurico, protagonista da ação. Assim sendo, Eurico apresenta-se como fruto de uma ideia, ou seja, é uma idealização; veicula uma ideologia, essa que Herculano professa; e pretende-se fundado em fontes históricas. Partindo desta base, passaremos agora a aprofundar um pouco mais o segundo dos aspetos mencionados – esse que se nos afigura mais relevante na economia narrativa, por se relacionar diretamente com a ideologia que a personagem Eurico veicula.


2. Eurico: eixo de uma ideologia gnóstica cristã. Uma leitura menos atenta da Introdução do romance pode levar o seu leitor a pensar que Herculano ao compor o texto de Eurico, o presbítero teve como principal preocupação o tema do celibato religioso. No entanto, se pararmos um pouco no que o autor logo de seguida afirma acerca do mesmo, considerando-o “à luz do sentimento” uma “espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existência na terra”, então, poder-se-á concluir que o que Alexandre Herculano realmente pretende é fazer o seu leitor refletir sobre o seguinte conjunto de dicotomias:


  1. Razão / sentimento
  2. Amputação espiritual / espiritualidade
  3. Morte / esperança
  4. Imperfeição / existência terrena

No centro destas forças antagónicas, está o “sacerdote”, a quem a Igreja impõe a solidão do celibato. No romance, o sacerdote é Eurico. Logo, esta personagem concentra em si mesma forças adversas que se irão espelhar num destino também adverso à sua felicidade. E a questão que aqui se levanta apresenta-se-nos complexa: será Eurico infeliz porque é sacerdote e forçosamente celibatário?, ou será Eurico sacerdote e celibatário porque é infeliz? Sem pretendermos estabelecer qualquer analogia entre a infelicidade de Eurico e a ‘história da galinha e do ovo’, parece-nos, no entanto, que esta é uma questão pertinente, porque mostra que o importante é que Eurico é infeliz. É infeliz, e não poderia ser feliz, porque é sacerdote – ministro de uma Igreja que


  1. Valoriza a razão – o dogmatismo religioso –, em detrimento do sentimento – o mandamento do Amor, ou seja, a Lei Nova, que Jesus Cristo ensinou;
  2. Amputa espiritualmente o sacerdote, em vez de fomentar nele a espiritualidade.
  3. Baseia a sua doutrina numa teologia da morte, que assenta na crucificação, quando deveria baseá-la na esperança escatológica: “E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos” (Mt 28,20);
  4. Desvaloriza a existência terrena, que afirma ser imperfeita – baseando-se no dogma do pecado original, introduzido por Santo Agostinho, no século V –, quando deveria entender que a existência terrena é uma possibilidade oferecida ao ser humano para se completar através da junção amorosa do par de opostos – o feminino e o masculino: o princípio da Criação, do ponto de vista do gnosticismo cristão.

A personagem Eurico é, assim, o eixo à volta do qual circulam as linhas de força de uma ideologia gnóstica cristã, que Alexandre Herculano – anticlerical, mas profundamente religioso, porque, como ele próprio diria, profundamente poeta – professava.

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3. O herói romântico: Eurico, o sacerdote-soldado.


Examina bem a consciência, e dize-me qual é para os corações puros e nobres o motivo imenso, irresistível das ambições de poder, de opulência, de renome? É um só – a mulher: é esse o termo final de todos os nossos sonhos, de todas as nossas esperanças, de todos os nossos desejos. Para o que encontrou na terra aquela que deve amar para sempre, aquela que é a realidade do tipo ideal que desde o berço trouxe estampado na alma, a mira das mais exaltadas paixões é a auréola celestial que cinge a fronte da virgem, ídolo das suas adorações (HERCULANO, A., [s. d.]: 93).


Na Introdução a Eurico, o presbítero, Alexandre Herculano revela-nos que esta sua “crónica-poema, lenda ou o que quer que seja do presbítero godo” (id: 9) nasceu da “ideia do celibato religioso, das suas consequências forçosas, e dos raros vestígios” que destas achou nas “tradições monásticas” (cf. id: 8). Segundo o autor de Eurico (como já vimos no capítulo anterior), o celibato, “à luz do sentimento”, é uma “espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existência na terra”; já que, sem “a mulher”, o mundo nada mais seria do que “um ermo melancólico” (cf. id: 6). Também assim sente Eurico, o protagonista deste romance histórico de Herculano.

Num tempo (fim do século VII) em que a monarquia visigótica procura “imitar o luxo do império [romano] que morrera e que ela substituíra”, e a corrupção dos costumes se instala nas Espanhas, atingindo o “próprio clero” (cf. id: 13), o presbítero da pobre Carteia – Eurico – é um desses Godos que ainda conservam “a têmpera robusta dos antigos homens da Germânia” (id: 14). E, no entanto, fora um sentimento de profundo amor por uma mulher de celestial formosura – Hermengarda –, e a impossibilidade de o realizar (cf. id.: 75-76), que, nove anos antes, revolucionara o espírito do jovem Eurico, “naturalmente religioso porque poeta” (cf. id: 21), levando-o à “existência tranquila do sacerdócio pela desesperança” (id: 30). Doravante, Eurico procurará voluntariamente as “solidões marinhas do promontório” (id: 41), devorado pela melancolia que o assola, porque “a inteligência do poeta precisa de viver num mundo mais amplo do que esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites” (id: 25). Precisa de um mundo noturno, de sonho, alumiado pelo “planeta da saudade” (id: 24): a Lua. Porque é pela “escuridão da noite” que “a fantasia do homem é mais ardente e robusta”. E somente “nos lugares ermos e às horas mortas do alto silêncio” (cf. id.: 52), o atribulado espírito do sacerdote-poeta – que sublimou o amor do homem-poeta [“imenso, como o ideal que ele compreende; eterno como o seu nome, que nunca perece (id.: 60)] – encontrará alento para a sua dor, abraçando a natureza (cf. id.: 56-58). Esta “vida de excepção” (id: 25), a que Eurico se entrega enquanto os espíritos mesquinhos dormem tranquilos, esquecidos dos mortos (cf. id: 35-36), inspira-o a escrever os mais sublimes hinos ao Criador, que o tornam “ainda mais respeitável” aos olhos do rude e supersticioso povo da paróquia de Carteia, para quem os hábitos de vida do seu presbítero constituíam um “mistério” (cf. id: 27). Para Eurico, porém, cada “hino pio, harmonioso”, que ele compõe à noite no presbitério, é como um grito lançado por sua alma: “o Getsémani do poeta” (cf. id: 29). Este grito é um som místico, eco de um lugar de iniciação – o ermo –, onde o poeta desperta, “vivo ainda”, do “sonho febril chamado vida”, e do qual, naquele tempo, ninguém acorda, “senão depois de morrer” (cf. id.: 42). E é esta tomada de consciência que leva o poeta a perguntar: “Mas em que coração resta hoje virtude e esforço, no vasto império de Espanha?” (id: 39). Talvez só existisse naquele cujo espírito se atirava “para as trevas do passado” (id: 43) e que irá encarnar a figura heroica e misteriosa do cavaleiro negro, o único que é, verdadeiramente, “cristão e godo” (id: 49): o visionário Eurico, que “despirá a estringe inocente do sacerdócio e vestirá as armas” para defender a “liberdade da pátria” e a “crença do Evangelho” (cf. id.: 88), perante a ameaça dos invasores muçulmanos, que, “em nome de uma crença nova”, pretendiam “apagar na terra os vestígios da Cruz” (cf. id.: 71) – como ele próprio, Eurico, “em sonhos” antevira (cf. id.: 77). Assim, o cavaleiro negro combaterá no campo de batalha a lado de Teodemiro, que, por pura amizade, o salvara outrora “da morte do corpo”, sem ter podido, contudo, salvá-lo “da morte da alma”, que reduzirá a existência de Eurico à sua própria “sombra” (cf. id.: 76). O cavaleiro negro é a encarnação desta sombra; que, “pelejando pela Cruz, dir-se-ia que era o arcanjo das batalhas mandado por Deus para salvar Teodemiro e, com ele, os esquadrões da Bética” (cf. id.: 127); e que, cessando a batalha, desaparecia do campo, “sem que ninguém soubesse dizer como ou onde se escondera” (cf. id.: 135). Como um fantasma negro, como imagem da própria morte, ele propaga, por onde passa, um “terror supersticioso” (id.: 142), entre os Árabes. E depois da derrota dos Godos, com a morte de seu último rei – Roderico –, no campo de batalha, é ele, Eurico, a “última e tenuíssima esperança” (id.: 146) do Império Godo.

Será nas montanhas das Astúrias, na caverna de Covadonga, que Pelágio transformara no “verdadeiro e único refúgio da independência goda” (cf. id.: 186), que, um ano mais tarde, um “gardingo desconhecido” (id.: 202), tomando conhecimento de que Hermengarda (irmã de Plágio) jazia “cativa em poder dos infiéis” (id.: 200), e pretendendo conduzir os esforços para a salvar, revela ser ele o misterioso cavaleiro negro. E como cavaleiro negro partirá para a resgatar, seguido de doze guerreiros que escolhera (id.: 207- 208). O número doze é, por certo, simbólico. Tanto mais que, quando este “ente extraordinário” (id.: 208), se revela – de forma misteriosamente solene –, fá-lo “atravessando o círculo dos guerreiros que rodeavam o duque de Cantábria” (id.: 204). A ação de resgate de Hermengarda transforma-se, assim, numa demanda que lembra, ao leitor, a do Santo Graal, símbolo central do esoterismo europeu. Na realidade, é o amor ideal que o cavaleiro negro pretende salvar, ao resgatar a mulher, nesta empresa em que ele se distingue dos outros doze guerreiros pela “virtude” e pelo “esforço”. É ele o verdadeiro herói da ação; por isso, será nos seus braços que Hermengarda penetrará a caverna de Covadonga, essa que só era atingível por uma “subida ingreme” (cf. id.: 193), depois de ambos terem passado pela prova do abismo – que se apresentava “como fascinação irresistível, como conjuro diabólico” (id.: 270) –, ao atravessarem (Hermengarda nos braços de Eurico) o rio Sália: “a linha traçada pela feiticeira com a verbena mágica, além da qual não passará jamais aquele ante cujos pés ela a riscou” (id.: 273). E será nesta caverna iniciática, situada numa montanha que se torna sagrada [por ser refúgio do resto, pobre e humilde, de um povo que, rico e poderoso, se desviara do caminho de Deus (cf., p. ex., Gn 45,7)], que o misterioso cavaleiro negro de novo se revelará: desta vez, para deixar cair todas as máscaras e confessar quem ele, verdadeiramente, é – Eurico (cf. id.: 313-315). O mesmo que dez anos antes mentira a si próprio, em consciência, ao dizer-se morto para o mundo (cf. id.: 76), quando, na realidade, nunca conseguira esquecer o seu amor por Hermengarda. E também será nesta caverna iniciática que Eurico reconhecerá que o seu amor é correspondido (cf. id.: 310-312), e por alguns momentos irá esquecer a sua condição de sacerdote, o “celibato religioso” e as “suas consequências forçosas”. Mas a consciência despertá-lo-á do sonho, da fantasia tornada realidade nesses momentos mágicos (cf. id.: 316), e Eurico, o presbítero, reprime o “sentimento” (cf. id.: 317), pratica uma “espécie de amputação espiritual”, pois “para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existência na terra” – como esclarece Alexandre Herculano, na Introdução do romance. Por consequência, na Conclusão do mesmo, a morte do corpo de “Eurico, o sacerdote-soldado” (cf. id.: 305), provocada pelo próprio, numa luta travada com um inimigo da sua fé e da sua pátria (cf. id.: 329-330), é redentora, porque liberta a sua alma – que agora vive!


BIBLIOGRAFIA


Fonte

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Estudos

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WEHR, Gerhard – Gnosis, Gral und Rosenkreuz: Esoterisches Christentum von der Antike bis heute. Köln: Anaconda, 2007.


O estudo aqui apresentado foi elaborado em 2012, no âmbito do Curso de Doutoramento em Estudos Portugueses (UAb), para a disciplina Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, ministrada pela Prof. Doutora Maria do Rosário Cunha.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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