Morte e Animismo


Na religiosidade popular portuguesa


RESUMO: Na sua expressão popular, a morte apresenta-se como uma realidade que desencadeia o medo e a dúvida perante a vida do quotidiano que  se transforma, nesta perspectiva, numa luta pela sobrevivência.

Na mentalidade e costumes de um povo simples, como o português, foram-se impregnando crenças e superstições, que fazem hoje parte das tradições populares portuguesas.

A busca do que nelas possamos encontrar, relacionado com o tema da morte e da sua relação com a crença numa existência póstuma, no animismo, é o trajecto que nos propomos efectuar, no presente estudo. Centrar-nos-emos nos estudos efectuados por alguns etnógrafos que recolheram elementos da tradição oral e escrita. E nessas fontes nos fundamentaremos e apoiaremos, para desenvolver o nosso raciocínio pessoal.


Palavras-chave: Morte; Animismo; Religiosidade Popular; Cultura Portuguesa.


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1. ENTRE A LUZ E AS TREVAS


No mundo para que haverá

Justiça, guerra, vingança?

O cementério além está,

Onde tudo em paz descansa.


Não te faças mais do que eu,

Que não és menos nem mais:

Debaixo da terra fria

Todos nós somos iguais.


O negro, tomado na sua expressão simbólica negativa, opõe-se à luz. É ausência da cor, da vida. Nas palavras de Kandinsky, é um “nada”  sem esperança de um porvir, um silêncio eterno. Quase espontaneamente, na mentalidade dos diversos povos, ele é associado ao mal, à desgraça, à perdição, à noite, que tanto pode ser física como psicológica.

Nas superstições populares, a ideia de morte é frequentemente acompanhada do medo perante a vida, do medo do desconhecido: da doença que não se conhece e não se controla, das bruxas, dos “lobisomens”, das feiticeiras, dos “rosemunhos”, do “homem das sete dentaduras”. Eis algumas passagens de um estudo sobre o “demónio meridiano” em Portugal:

“Referimo-nos a esse génio maléfico relacionado com a hora do «meio-dia», de feição não muito bem determinada, mas receado mais ou menos em todo o País, e mais ou menos aludido num certo número de superstições, crenças e orações de carácter esconjuratório.”

“É crença que no dia de S. Bartolomeu (24 de Agosto) ande o Demónio solto, do «meio-dia» para a uma hora”.[1]

“«Á hora do meio-dia» encontram pelas estradas, nas encruzilhadas, etc., umas coisas más, que se chamam «Rosemunhos» (redemoinhos). O «rosemunho» é como uma poeirada; leva paus, pedras e se apanha uma pessoa no meio leva-a também pelos ares, mas se a pessoa trouxer umas contas na algibeira, e as atirar à tal coisa má ou demónio, não lhe acontece mal nenhum.”[2]

“Em todo o Algarve acredita-se na existência de coisas más ao meio-dia. Em alguns sítios esta «cousa má» chama-se o «homem das sete dentaduras». Assim, no sítio conhecido pelo nome de Cerro Vermelho, próximo a Fuzeta, é crença que aparece ao meio-dia o homem das sete dentaduras [… ] é uma entidade maligna que […] devora quem encontra.”[3]

“Assim a «hora aberta» (ignoramos o motivo desta designação) é perigosa, porque então andam uns demónios pelo ar, que fazem mal às pessoas que encontram. […]

[…] Segundo umas versões, é apenas uma nova manifestação do Diabo, conforme outros é um génio diverso deste, quer se chame «rosemunho» (redemoinho), «entreaberta», «homem das sete dentaduras» ou simplesmente «cousa má».”[4]

A morte é factor de separação e, neste sentido, ela é também associada ao diabo, ao príncipe das trevas.

“A Tradição oral e a iconografia popular são concordes em representar o Diabo com cornos, quer sob a figura de um homem, de feições medonhas ou simplesmente grotescas, quer sob a forma de bode, incarnação favorita do génio do mal entre o nosso povo. Em qualquer dos casos parece ser também acessório indispensável uma longa cauda, coberta de pêlo. (mas…) […] As variantes são inúmeras e bastante distintas.”[5]

“Apenas nestas transformações não lhe é permitido mudar os pés, que, como se sabe, são de cabra (Lavadores). […] Também não lhe é concedido o dom de adivinhar (Lavadores).”[6]

“A morada do Diabo é o Inferno, conhecido na sinonímia popular pelo nome de «Caldeira de Pedro» ou «Pêro Botelho». O Inferno é representado como uma cova ou grande abertura, mas noutras lendas esta abertura, que pela imaginação popular aparece localizada em diversos sítios, (Daqui as denominações vulgares de «Boca do Inferno», «Vale de Inferno», «Cova do Inferno», etc.) representa apenas a entrada do Inferno que fica mais para o centro da Terra e onde perpetuamente arde um fogo abrasador.”[7]

“Numa superstição do Porto achamos: «sonhar com carne de porco, é sinal de morte» […]. O encontro do «porco feito» é o do Próprio Diabo.”[8]

“A alma dos indivíduos que morrem, aparece às vezes debaixo da forma de um cão preto.”[9]

Pode ser algo que nos transporta ao caos primitivo, à destruição. Por esta razão, o destino das almas ocupa na imaginação popular um lugar privilegiado.

“O motivo mais geralmente aduzido na Tradição popular para a presença na terra de «almas penadas» ou «almas do outro mundo», é a não satisfação de uma promessa que elas tivessem feito antes de morrer.”[10]

 “[…] a crença de que morre a pessoa que responder à «alma do outro mundo». Também, segundo outra versão, logo que aparece um espectro a alguém deve gritar-se-lhe:«Do forte de Deus te “requeiro” digas o que queres, porque far-se-á se «puder ser»”. Não se dizendo isto, principalmente as últimas palavras, é muito perigoso, pode a pessoa viva ficar com a alma do morto até se cumprirem as ordens do outro mundo.”[11]

“As vezes, porém, talvez o maior número, a «alma» ou o «espírito» do defunto «mete-se no corpo» dos vivos, e é no interior da pessoa escolhido para tal fim (cumprimento de promessa) que ele fala. E em primeiro lugar há espíritos bons e espíritos malignos; os primeiros consolam (Sic) a pessoa em que estão; os segundos dão cabo dela e matam-na.

Os espíritos, quando querem meter-se numa pessoa começam a «anunciar-se»; são sombras que passam por diante da pessoa. As sombras dos espíritos bons são esbranquiçadas; as dos espíritos maus são negras (idem)”[12]

“A alma de qualquer pessoa que faleceu volta do outro mundo para acompanhar o corpo, quando este é levado de casa para a Igreja. Foi assim que certa mulher viu uma alma a gritar de noite pelos ares, e perguntando-lhe o que tinha, ela respondeu que era porque ainda há pouco deixara o corpo e já lho queriam levar para a Igreja, não lhe dando tempo de ir a Sant’Iago e voltar para o acompanhar. Felizmente a mulher já tinha ido duas vezes a Sant’Iago, uma a pé (maior sacrifício), outra a cavalo e disse à alma que lhe dava uma das vezes, deixando-lhe, escolher. A alma escolheu a romaria a pé.”[13]

“O «balborinho» (redemoinho de vento) são as «almas perdidas» por não poderem entrar no Céu, por deverem restituições aos vivos. O povo foge de ser apanhado por ele (balborinho) mas vai-o seguindo e gritando sempre. O grito mais favorito é: «Vai-te para quem te comeu as leiras!» Quando o redemoinho se desfaz e começam a cair as folhas que ele sorveu para o alto, seguem-se com muita atenção estas folhas, e onde elas caem, sabe-se logo que uma das «almas perdidas» fez em vida roubo naquele campo.”[14]

“Há tempo era costume encomendar as almas de noite. Ia uma pessoa à meia-noite ao cemitério com uma campainha e começava a tocar, dizendo: «almas, acompanhai-me»! Depois ia-se por todas as ruas a tocar a campainha, pedindo “padres-nossos e ave-marias pelas almas.”[15]

Para que o morto não volte a este mundo, além da prática rigorosa de certos ritos propiciatórios, há também a cerimónia de “semear o morto”. Também denominada o “baptizado da cinza” que consiste em ir uma pessoa atrás do caixão até ao cemitério deixando cair escondidamente sal misturado com cevada.

Tal preocupação manifestar-se-á igualmente no culto prestado aos mortos, onde se adivinha também uma inquietação quanto ao seu próprio destino, por parte daquele que o pratica.

“É muito perigoso tratar com menos respeito um defunto, ou simplesmente uma caveira que se encontre insepulta, ou até um objecto que pertença ao morto. A vingança da «alma» não se fará neste caso esperar muito.”[16]

“Logo que morrer alguém coloca-se sobre a grade ou sobre o arado «para ser bem aceite de Deus o pão que ele comeu na Terra».”[17]

“Quando um defunto que é levado para a Igreja, passa por uma encruzilhada de três caminhos, deve parar-se ai, abrir o caixão e rezar um responso.”[18]

“Quando se leva um defunto para a igreja e tem de se atravessar água, os que levam a tumba hão-de tratá-lo como se ele fosse uma cavalgadura, senão não passam.”[19]

“Santórios são bolos de pão podre de um certo feitio especial. Vendem-se pelo tempo dos «fiéis defuntos» e metem-se debaixo do travesseiro das crianças, para os defuntos não virem ter com elas e comer-lhes as orelhas.”[20]

“Em Basto há uma ponte cujo centro é o limite de duas freguesias (a pessoa que contou não soube dizer o nome das freguesias). Se qualquer morre numa delas e tem de ser enterrado na outra, o padre da primeira freguesia acompanha o defunto até ao meio da ponte e entrega-o ao padre da freguesia onde ele vai enterrar-se, o qual leva o defunto à igreja. Mas no meio da ponte pousa-se o caixão mortuário e, entre os parentes e amigos do defunto (só do sexo masculino), que se têm já munido de um punhado de areia, atiram-na ao rio, dizendo:

«Fulano ou Fulana (o nome do morto), tantos anjos te acompanhem para o Céu como de areias caem na água». E largam a correr pela ponte e pela margem do rio, até chegarem a uma outra ponte, que fica logo abaixo «antes que lá chegue a água turvada pela areia e pó que eles atirarem na primeira ponte». Isto é condição indispensável, assim como o é também, mal atirarem a areia, fechar os ouvidos, de sorte que não ouçam a bulha que faz a areia caindo na água.”[21]

“Segundo algumas pessoas, quando um defunto vai para a igreja, sem ser acompanhado por um padre, a alma do falecido fica pelo caminho, e anda errante pelos sítios onde se perdeu.”

“O fel nos defuntos rebenta ao Sétimo dia. Se antes de deixar passar este dia, alguém se ajoelha na campa do morto, apanha infalivelmente icterícia. Por isso é uso marcar tais campas com um raminho de oliveira ou de murta.”[22]

Mas se o negro, em seu sentido negativo, encerra a ideia de morte, no seu sentido positivo ele poderá também representar a terra fértil. Desta forma, em cada morte há também a esperança da ressurreição, da luz que se vislumbra para lá da noite, das trevas. É talvez aqui que assenta uma ligação ainda existente entre o culto dos mortos e o casamento. Como escreve Teófilo Braga, “A mulher que passava ‘in manu mariti’, que casava, tinha por uma cerimónia de abjurar do culto dos seus antepassados, para ser admitida sem profanação aos actos cultuais da família do seu marido.”[23]

E há uma tradição que diz, que não se deve fazer casamento quando há cova aberta na igreja.

O casamento, simbolizado pelo branco do vestido da noiva, salienta a união de duas vidas, a esperança, a purificação, a ascensão, a eternidade, num amor para o qual nos remete essa luz de que o próprio branco está carregado.

Seria útil, neste sentido, um estudo comparado, mais pormenorizado, do simbolismo dos ritos funerários e dos do casamento. Na impossibilidade de o realizar no contexto deste trabalho, limitar-nos-emos a referir alguns desses símbolos:

As pedras

“A pedra funerária tem um sentido mítico a que se liga a esperança da ressurreição do morto, ou pelo menos a guia para achar no mundo subterrâneo o caminho para a luz e bem-aventurança.”[24]

“Quando um aldeão passa por pé de uma cruz, que indica o sítio onde se cometeu um assassínio, «apanha uma pedra», e depois de rezar pelo descanso eterno do morto, «atira-a para o montão de pedras que se vai formando em volta da cruz».” (Segundo informações recebidas por Teixeira de Bastos em Cabeceiras de Basto).[25]

“Hoje já se não atiram «pedras» à sepultura do morto, mas nos costumes provinciais os indivíduos que acompanham o saimento consideram como um dever religioso o atirar com um punhado de terra para dentro da cova. Gubernatis alia estes dois factos, dizendo que a palavra indiana «adri» significa «pedra» e «monte».”[26]

“As superstições das pedras apresentam um pronunciado carácter fálico; próximo da Póvoa de Lanhoso há o «Penedo dos Casamentos», para o qual se vira as costas atirando-lhe pedras; quantas se atiram até acertar outros tantos são os anos a que dista o casamento.”[27]

O banquete

“Quanto ao «banquete comemorativo» ligado ao culto dos mortos, ainda hoje no Minho se usa este ofertório nos enterros, levando-se ao abade da freguesia um açafate com um bacalhau com o rabo de fora; a família do morto dá um jantar aos convidados que assistem ao enterro, e que pagam a leitura de um responso a que se dá o nome de «clamores». Distribui-se pão «molete» por todos os que estão presentes, e o jantar é em geral composto por feijões, favas ou outros legumes.”[28]

“Em Ois da Ribeira, junto de Águeda, a família do morto paga ao pároco um «carneiro» se o falecido é homem, e uma «galinha» se é mulher.”[29]

As flores

“Nos costumes de Cadaval, chama-se «ramo matrimonial» ao ramo das flores secas que a noiva recebe da última rapariga que se casou, que nesse dia deixou de estar de noivado; é entregue à recém casada no fim do baile das bodas.”[30]

“Os presentes oferecidos pelas donzelas, à esposa constam, além de flores, […] no oferecimento há versos deste gosto:

Aqui tens menina este ramol Que da minha mão se oferece;/ Não é como eu desejava,/ Nem como a senhora merece.”[31]

Os cantos

Os cantos fúnebres revestem-se de forma pesarosa, como nas «carpideiras», nos «voceros», nos «clamores». As cantigas dos noivados, persistem em Portugal e ligadas a certos actos simbólicos. Em Moura, no Alentejo, canta-se:

“Quem quiser comprar eu vendo / Um ramo que estou guardando; / O estado de solteira / Para mim está se acabando.”[32]


[1] PEDROSO, Consiglieri – Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa e outros Escritos Etnográficos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988. Portugal de Perto, nº 16, p. 229.

[2] Ibidem, p. 231.

[3] Ibidem, p. 232.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem, p. 241.

[6] Ibidem, p. 242.

[7] Ibidem, p. 243.

[8] BRAGA, Teófilo – O Povo Português: Nos seus Costumes, Crenças e Tradições. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986, II. Portugal de Perto; nº 11, p. 204.

[9] Pedroso – Contribuições, p. 204.

[10] Ibidem, p. 275.

[11] Ibidem, p. 277.

[12] Ibidem, p. 278.

[13] Ibidem, p. 280.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem, p. 285.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem, p. 283.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem, p. 284.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem, p. 286.

[22] Ibidem, p. 267.

[23] BRAGA, Teófilo – O Povo Português: Nos seus costumes, Crenças e Tradições. 2ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994, I. Portugal de Perto; nº 10, p. 149.

[24] Ibidem, p. 154.

[25] Ibidem, p. 155.

[26] Ibidem, p. 156.

[27]Braga – O Povo, II, p. 49.

[28] Braga – O Povo, I, p. 167.

[29] Ibidem, p. 169.

[30] Ibidem, p. 193.

[31] Ibidem, p. 192.

[32] Ibidem, p. 193.


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2. NA HORA FINAL


Ai, Jesus! Que estou morrendo,

Deus tenha de mim piedade,

Quem há-de poder negar

Ao Senhor que tudo sabe?


Homem que vais passando,

Volta atrás e vem-me ver

Eu já fui o que tu és,

O que eu sou tu hás-de ser.


É interessante verificar como o negro, o vermelho e o branco se conjugam nos ritos funerários. Na verdade, eles encontram-se em estreita relação. Não é casual, uma vez que  tanto o negro como o branco se relacionam directamente nos seus pólos opostos e o vermelho pode ser visto como uma libertação  espiritual  quando nos remete para o  sentido  sacrificial  do sangue, transmissor de vida.

“Em Basto há duas freguesias limítrofes. Nos limites delas está um pau, onde pode içar-se uma bandeira. Quando numa das ditas freguesias morre alguém, na outra iça-se uma bandeira; preta, se o defunto é homem; branca se é mulher; vermelha se é anjinho. A primeira pessoa que conseguir nesta freguesia tocar o sino, ou a defunto ou a anjinho, salva-se necessariamente. Isto dá lugar a diferentes conflitos. Se o falecimento é na segunda freguesia, na primeira repetem-se as mesmas cenas.”[1]

O sangue também aparece no pacto com o diabo.

“O Pauto (pacto) é com efeito o acto mais solene em que intervém o Diabo.”[2]

“Mas existem ainda outros modos para selar a aliança com o Diabo.”[3]

 “As pessoas que fazem malefícios vão à meia-noite a um cemitério e aparece-lhes o Diabo em forma de cão preto, a quem eles chamam «o seu protector». O Diabo pergunta-lhes: «Que queres?» Eles então pedem-lhe o que desejam que ele lhes faça. Em compensação o Diabo diz-lhes: «e o que me dás?». Deve então dizer-se-lhe: «dou-te uma coisa» mas não dizer-se o que é, porque o Diabo quer a alma.”[4]

Neste caso, a cor vermelha será encarada numa perspectiva negativa, de negação da própria vida, no acto de venda da alma ao diabo em troca de poderes e conhecimentos. Poderes esses, aliás, que estarão sempre sujeitos à vontade Divina, como se pode ver nesta história de S. Cipriano, da tradição popular:

“Cipriano vendeu a alma ao diabo para este lhe ensinar tudo. Mas, um dia, quis casar com uma «beata»: o diabo confessou a «beata», prometeu-lhe que ia para o Céu, «mas não arranjou nada». Foi dizer a Cipriano que ainda havia quem tivesse mais poder. Então este «caiu nas contas» e nunca mais andou com o diabo, entrando em vida nova, que lhe permitiu tornar-se santo.”[5]

O mesmo pode acontecer com o branco que vê manifestada a sua vertente negativa, simbolizando a morte de mulher, nos fantasmas brancos; ou nas vestes das bruxas “vestidas de branco” que aparecem nos caminhos e fazem mal aos viajantes.

“As almas do outro mundo vêm à Terra cumprirem o fadário por terem cometido algum crime, que lhes não perdoaram. São fantasmas brancos que andam pelos cemitérios, ou nos lugares do crime, sempre de noite. São outras vezes vultos que se vêem ao longe com uma luz, que andam em torno das ermidas, ou que entram de noite pelas casas arrastando grossas cadeias, e dando argoladas nas portas.”[6]

A ‘partida’ deste mundo nem sempre é fácil e como ajuda surge o costume do “assassinato voluntário dos moribundos” . Como diz Teófilo Braga:

“O uso geral primitivo foi-se particularizando às pessoas que tinham pacto com o diabo, cujos paroxismos eram demorados. Na ilha de S. Miguel, o que tem pacto não pode morrer, à espera de que alguém queira aceitar os seus poderes ; no estertor julgam que essa pessoa diz: – «Quem pega que eu largo?» É preciso que alguém diga: – «Pega aquela tranca da porta!» para que ela possa morrer.”[7]

Esta luta que no moribundo se trava, entre a vida e a morte, é de todo significativa. Morrer, na linguagem erudita e popular, apresenta uma quantidade considerável de sinónimos, como se poderá verificar num trabalho de recolha efectuado por Pires de Lima.[8] Citaremos somente alguns deles: “findar os seus dias”, “finar-se”, “expirar”, “desamparar a vida”, “passar desta vida para melhor”, “ir para os anjinhos”, “deixar o mundo”, “ir fazer tijolo para o senhor abade”, “esticar o pernil”, “arrefecer”, “ir olhar os pitinhos ao vigário”, “ser promovido a defunto”, “levar o diabo a alguém”. Enfim, muito uso de imaginação para não se dizer simplesmente: ’morrer’.

Na hora final, a morte que se aproxima, faz pensar sobre a vida que se viveu ou que se deveria ter vivido de outra forma.

A crença na “psychostasia”, ou pesagem das almas pelos seus actos, efectuada pelo arcanjo S. Miguel, é vulgar no povo português, como se pode ver nesta oração tradicional do Porto: “S. Miguel «pesai as almas», / Ponde pesos na balança./ Os pecados eram tantos! / Foram com eles ao chão! / Pôs Nossa Senhora o manto, / Ficaram pesos suspensos: / Com a Graça de Maria / Ficou a alminha contente.”[9]

Segundo o imaginário popular, muitas almas ficam presas à terra, por diversas razões. Analisando a tradição oral transmitida de pais para filhos, em diferentes regiões do país, podemos concluir que este ‘retorno’ dos mortos (as almas do outro mundo) está especialmente ligado, numa perspectiva simbólica, à água e à ceia. Verificamos então, que existe uma estreita relação entre a concepção existencial do estado de morto com o de vivo. Tal como este último, o morto terá necessidade de vida, de purificação, de amor partilhado.[10]

“Na noite de Natal é costume rezar pelas almas dos antepassados, «para elas não virem comer as migalhas que ficaram na mesa». No Alto Minho nessa mesma noite põe-se sempre um talher a mais para a pessoa de família que ultimamente faltou e não se levanta a mesa, que fica posta toda a noite.”[11]

“Quando morre alguém numa casa, deitam-se todas as águas fora, para que o defunto não venha purificar-se nelas.”[12]

“Depois que toca às ave-marias, não se deve deitar água à rua, para não empecer nada nela. Se é de necessidade deitá-la é preciso dizer: fugi finados! que aí vai água dos pés lavados.”[13]                                                                

No entanto, a presença de uma “alma penada”, não é, de forma alguma, algo que se deseje. Pois, “Quando se fala nalguma pessoa morta deve dizer-se: Deus te chama lá, que ninguém te chama cá.”

 


[1] Pedroso- Contribuições, p. 263.

[2] Ibidem, p. 244.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem, p. 243.

[5] LIMA, Augusto César Pires de – Estudos etnográficos, filológicos e históricos. Porto: Junta da província do Douro-Litoral, 1948, III, p. 33.

[6] Pedroso – Contribuições, p. 286.

[7] Braga – O povo, I, p. 179.

[8] LIMA, Augusto César pires de – Estudos Etnográficos, Filológicos e Históricos. Porto: Junta de Província do Douro-Litoral, 1947, I, p. 197.

[9] Braga – O Povo, I, p. 166.

[10] VASCONCELOS, J. Leite de – Religiões da Lusitânia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, I, p. 279.

[11] Pedroso – Contribuições, p. 283.

[12] Ibidem, p. 287.

[13] Ibidem, p. 134.


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3. NA ESPERANÇA DE SALVAÇÃO


Amar e servir a Deus                   

Não há coisa mais bonita:            

Quem morre em graça de Deus,  

Não morre, que ressuscita.          


Devo a minha vida à morte,

Alma a Deus que me criou,

O meu corpo à terra forte,

Ai, Jesus! Que nada sou.


Já pedi a morte a Deus,

Ele disse que ma não dava;

Que pedisse a salvação,

Que a morte certa me estava.


Mesmo temendo as trevas, o negro da morte, a esperança de salvação é algo que continua presente nas manifestações supersticiosas populares. A luz, que tudo penetra, encontra o seu correlativo, no ser humano, na expressão do seu olhar. Os olhos são o “espelho da alma”. O olhar é algo de poderoso que pode “encantar” ou fazer mal. O primeiro caso, pode ser ilustrado pela crença comum nas mouras encantadas e no seu poder sedutor enquanto mantêm a forma de cobras. No seu aspecto maléfico, o olhar, pode apresentar-se como força destrutiva provocada por sentimentos negativos em relação ao próximo: é o “mau-olhado”.

Esta força misteriosa do olhar parece até poder persistir para além das fronteiras da morte: “Quando uma pessoa, ao expirar, fica com os olhos abertos, é sinal que está chamando por alguém de família.”[1]

Aparecem diferentes fórmulas esconjuratórias,

“Um dos esconjuros mais eficazes é a «Oração do Anjo Custódio» espécie de Diálogo entre o Diabo e a pessoa que está disposta a resistir-lhe. […]

Diabo –  Custódio amigo, tu queres ser santo?

Pessoa – Custódio sim, amigo não!

Quero sim pela graça de Deus,

E do divino Espírito Santo. (etc.)(citado da tradição oral: De uma velha da Terra da Feira que o autor encontrou em Lavadores (Porto).”[2]

“Se a criança espirra, diz-se para esconjurar o mal: Para bem cresça / e appareça! / Bons olhos a vejam, / E os máos cégos sejam.”[3]

ladainhas,

“Para nos livrarmos do «ar» do excomungado e de outras coisas más, é bom rezar três vezes(fazendo três cruzes da testa ao ventre e de ombro a ombro) esta oração que termina com uma «Salva-Rainha»: Jesus Cristo nasceu / Jesus Cristo morreu /

Jesus Cristo ressuscitou: / E assim como é verdade / O Senhor me tire esta dor, / Este mau-olhado / De vivo, de morto / Ou de «excomungado»: / Pelo Poder de Deus/ E do Senhor Santiago.”[4]

e determinadas regras de comportamento para que uma pessoa se possa “limpar”(purificar) dum mal que sofra,

“Quem tem uma ferida, livra-se dela facilmente, quando alguém morre. Para isso limpa a ferida a um pano, mete o pano por baixo da cabeça do defunto, dizendo-lhe: «O Fulano (pelo nome), leva-me isto para o outro mundo!»”[5]

do mal que lhe fizeram ou desejaram com o olhar,

“«O dedo polegar», tem a virtude de talhar a «má olhadura», fazendo três cruzes na testa, dizendo em três noites sucessivas: «Dois t’o escanta / Trez te tiram / Que são Padre, Filho Espírito Santo».”[6]

Então surgem as mulheres de “virtude”, as fadas boas, que desempenham o seu papel “desatando” as “coisas ruins” que a determinada pessoa foram “atadas”. Muitas vezes usam “água benta”. Assim, aparece de novo a água como o elemento purificador, simbolizando a vida e a regeneração.

Quanto à salvação eterna, o caso parece mais complicado, uma vez que para lá da vida terrena ninguém sabe ao certo o que acontece: é o “outro mundo”. Apesar de tudo, aparecem algumas indicações como estas:

“Em Basto, quando alguém morre, queima-se-lhe a folha do enxergel. Se o fumo sobe em coluna direita para o ar, a alma do falecido foi para o Céu, se o fumo toma para o lado direito, para o Purgatório; se para a esquerda, para o Inferno.”[7]

“A criança que morre depois de baptizada, sem ter mamado leite de mãe ou de outra mulher, vai direita para o Céu, mas se tiver já mamado leite de pecadora tem de passar pela nuvem de fumo (sic) do Purgatório, para se limpar daquele pecado venial.”[8]

“«A nuvem que passe muito carregada, leva excomungados.»

Acredita-se que o excomungado não vai nem para o Céu, nem para o Inferno, mas vai viver numa nuvem, tolhendo todo o mundo.

Muita gente, ao ver uma nuvem, sente de repente uma dor de cabeça: é o «ar ruim» do excomungado.”[9]

Especial atenção parece requerer a situação daqueles que se encontram no Purgatório:

“No Concelho de Santarém: Durante a quaresma de todos os anos andam nove homens do campo a cantar, de noite, pelas portas, pedindo esmola para as almas. Finda a quaresma o dinheiro junto é entregue ao Prior para dizer missas pelas almas do Purgatório. O Prior tem de dar, no dia da recepção do dinheiro, um jantar aos cantores, cujo preço sai daquele dinheiro e o remanescente é dado às missas.”[10]

Uma figura lendária do maior interesse, que se insere neste contexto de destino ‘post mortem’, é a do “secular das nuvens”:

“Quando está eminente alguma tempestade vê-se na névoa mais escura e na nuvem mais carregada um aspecto de horror e medo. E nesta nuvem que está oculto o diabólico «Secular das nuvens».”[11]

“O secular das nuvens tem de existência cem anos, batalhando sempre nos ares, com o que produz o trovão, o raio e o relâmpago.

O secular das nuvens leva a tormenta que ele produz para onde ele quiser.”[12]

“Quando se corta um homem para se formar o «Secular das nuvens» este homem tem de ser vivo, espetifando-o lentamente dos pés até à cabeça, sem o matar de repente. Deita-se depois esta carne dentro de uma tina conservando-a aí um ano certo. No fim deste tempo sai a cumprir o seu fado o «Secular das nuvens» que vai errante pelos ares.”[13]

“O maior insulto que se pode dirigir a uma pessoa, é o chamar-lhe «Secular   das Nuvens».

Nalguns pontos do distrito de Bragança o «Secular das Nuvens» é conhecido pelo nome de «Demónio» ou «Diabo visível»”[14].

É provável que exista alguma relação, na mentalidade popular, entre a ‘nuvem’ e a ‘sombra’ humana. Esta também pode ser encarada como uma expressão do que de ‘diabólico’ possa existir no ser humano. Provavelmente porque de certa forma se assemelham: ambas são visíveis mas inatingíveis e a sua forma é instável. Nas tradições populares, também estas três particularidades são características especiais do diabo, como já anteriormente vimos.

Eis alguns exemplos:

“A «Sombra» do indivíduo é também objecto de agoiros; quem brinca com a «sombra» na parede; brinca com o diabo; não se deve pisar a «sombra» de uma pessoa. Nas crenças populares, temos «duas sombras» uma do Anjo da Guarda, e a outra do Diabo que nos tenta. Na oração de Marta, diz-se, que das três irmãs: huma é a «sombra»  / outra a «sosombra» / e outra «Martha a não Dina».”[15]

“Na madrugada de S. João quem não vê a sua «sombra» ao chegar à borda de um poço ou fonte, não vive até ao ano seguinte. O Tio Massarelos «cortava sombras», espalhando cinza peneirada no ar, dizendo: «Eu te degrado, sombra; pela graça de Deus e de São Pedro e de S. Paulo.» E «degradava sombras» fazendo cruzes e lançando água benta por toda a casa.”[16]

Mas uma perspectiva mais positiva se apresenta, entre todas estas crenças, abrindo ao ser humano a possibilidade de tomar o destino nas suas próprias mãos, podendo escolher entre o bem e o mal:

“Do lado direito de cada um de nós anda sempre o anjo da Guarda a proteger-nos e a aconselhar-nos em bem, e do lado esquerdo anda o Diabo a desfazer-nos o que o anjo da guarda faz e a tentar-nos para o mal.”[17]


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E a ‘esperança’ permanece, essa que deixa acreditar, para além de toda a superstição, que “quando aparece o arco-da-velha (arco-íris), é sinal  que Deus está bem connosco. Enquanto ele aparecer, o mundo não acaba.”[18]


[1] Ibidem, p. 133.

[2] Ibidem, p. 245.

[3] Braga – O Povo, II, p. 80.

[4] Pedroso – Contribuições, p. 297.

[5] Ibidem.             

[6] Braga – O Povo, p. 72.

[7] Pedroso – Contribuições, p. 286.

[8] Ibidem, p. 216.

[9] Ibidem, p. 297.

[10] Ibidem, p. 291.

[11] Ibidem, p. 296.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Braga – O Povo, II, p. 173.

[16] Ibidem.

[17] Pedroso – Contribuições, p. 249.

[18] Ibidem, p. 33.


4. CONCLUSÃO


Gostaríamos de terminar sem grandes comentários ao que aqui ficou escrito. As citações foram abundantes. Com o texto que a elas acrescentamos, tentamos apenas realçá-las: elas falam por si, de forma directa, simples e espontânea. Não era de esperar outra coisa, pela índole popular de que se revestem. No entanto, gostaríamos de concluir, citando este pensamento de Dalila Pereira da Costa, que partilhamos:

“Será esta abertura e expansão dos limites de consciência portuguesa, concedida pelo conhecimento do simbolismo religioso português, o que marcará, tal outra segunda Descoberta nos seus tempos futuros: ela ainda, fazendo-se numa base empírica e de intuição, de pragmatismo e sonho sobre o real apresentado. Como possibilidade de compreensão e possessão plena do homem português, de sua essência anímica, situação no mundo e destino: ou melhor, sua missão nele a cumprir.”


BIBLIOGRAFIA


COSTA, Dalila L. Pereira da Corografia Sagrada: Temas Portugueses. Porto:   Lello e Irmão, 1993.

PEDROSO, Consiglieri Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa e outros Escritos Etnográficos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988, Portugal de Perto; nº16.

BRAGA, Teófilo O Povo Português: Nos seus Costumes, Crenças e Tradições. I. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, 1994, Portugal de Perto; nº 10.

BRAGA, Teófilo O Povo Português: Nos seus Costumes, Crenças e Tradições. II. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986, Portugal de Perto; nº 11.

LIMA, Augusto César Pires de Estudos Etnográficos, Filológicos e Históricos. I; III; V. Porto: Junta de Província do Douro-Litoral, 1947-1950.

VASCONCELOS, J. Leite de Religiões da Lusitânia.I.Lisboa: Imprensa Nacional,1988.


O estudo aqui apresentado foi elaborado em 1997, no âmbito da antiga licenciatura em Teologia (UCP), para a disciplina História da Igreja em Portugal, ministrada pelo Professor Raimundo de Castro Meireles.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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