Sonho e Alquimia Espiritual


Júlio Dinis e Heinrich Heine em diálogo


Em abril de 1864, Júlio Dinis (1839-1871) adapta à língua portuguesa um dos poemas (o «LV») que enformam «Lyrisches Intermezzo»: uma longa composição poética que pode ser lida como um romance, no qual o seu autor – Heinrich Heine (1797-1856) – apresenta, sob a forma de fragmentos, alegrias e sofrimentos amorosos. Esse «Lyrisches Intermezzo» – que integra, no original, a obra Buch der Lieder – obteve um grande sucesso junto dos jovens poetas contemporâneos de Heine, vindo também a chamar a atenção do poeta português.


Nesse poema que Júlio Dinis adapta à língua portuguesa, é cantada, em três quadras apenas, a forma como, por vezes,  na vida do ser humano, o sonho – reino do inconsciente –  se mistura com a realidade consciente, dando origem a uma nova realidade[1], onde essas duas forças da psique humana – a inconsciente e a consciente – podem estabelecer entre si uma relação harmoniosa ou conflituosa:


Sonhando, chorei. Sonhava

Que morta te estava a ver.

Acordei: ardentes lágrimas

Senti nas faces correr.


Sonhando, chorei. Sonhava

Que tu me querias deixar.

Acordei: amargamente

Fiquei depois a chorar.


Sonhando, chorei. Sonhava

Que esse amor ainda era meu.

Acordei: corre o meu pranto

Como ainda assim não correu.


Júlio Dinis intitula este poema de Heine, quando o adapta à língua portuguesa, de «Sonho». Este título atribuído ao poema remete, desde logo, para a importância do papel desempenhado pela dimensão inconsciente da psique humana nas relações afetivas[2]. Uma dimensão que o devaneio onírico desperta, concedendo ao ser humano a possibilidade de tomar consciência da sua sombra e, integrando-a, de alcançar o Selbst (Si-mesmo) – que não corresponde só ao Eu consciente, mas integra, igualmente, a parte inconsciente da psique, com a qual o Eu consciente forma uma totalidade. Neste sentido, e ainda segundo a psicologia analítica desenvolvida por Carl Gustav Jung (1875-1961), os símbolos que nos sonhos assinalam este processo de individuação correspondem a imagens de natureza arquetípica, que descrevem o processo de reconstrução de um novo centro da personalidade. É este novo centro que Jung designa por Selbst (Si-mesmo), esclarecendo que ele não corresponde unicamente a um ponto central, mas também a tudo o que esse ponto central abrange. Incluindo, portanto, o consciente e o inconsciente, o Selbst (Si-mesmo) é o centro dessa totalidade, da mesma forma que o Eu é o centro da consciência.


No poema em análise, não está claro se esse sonhar que o poeta canta acontece durante um estado de sono ou de vigília. Ambas as situações são possíveis, porque ambas correspondem, nas palavras de Luiz Piva, a uma “katábase – a que se ligam, como elementos genetrizes ou escatológicos, a noite, o espelho e o sonho” –, proporcionadora do autoconhecimento. No entanto, se esse sonhar que o poema descreve acontece durante um estado de vigília, então ele pode corresponder – ainda segundo Jung – a uma ilusão cármica, ou seja, a “uma convicção ou uma imagem do mundo, de cunho extremamente irracional e que em tempo algum e em parte alguma corresponde ao julgamento do intelecto ou dele precede, mas é produzida exclusivamente pela faculdade imaginativa”. Nesse caso, tratar-se-ia, pois, de uma fantasia que seria difícil de distinguir da “quimera produzida pelo cérebro de um demente”, sendo que, muitas vezes, é suficiente que se dê “um ligeiro ‘abaissement du niveau mental’, para desencadear este mundo de ilusões”. Um mundo que é uma projeção do inconsciente, não em sentido alegórico ou metafórico, mas no sentido de uma realidade psíquica, que se manifesta como uma espécie de “aparição fantasmagórica”, que é como um sonho que se transforma temporariamente em realidade. Estes fenómenos da Anima surgem, segundo Jung, em situações psíquicas marcadas por uma forte rutura. Nessas situações, não só caem todas as pontes que ligam o presente ao passado como também se apagam as perspetivas de um futuro.


No final do conto (ou novela) «Uma flor de entre o gelo», que integra Serões da Província, Júlio Dinis apresenta uma dessas situações psíquicas marcadas por uma forte rutura – trata-se do caso clínico do doutor Jacob Granada. Um caso que o nosso autor analisa nessa breve narrativa, onde, no capítulo I, um narrador homodiegético – intentando transmitir ao leitor as informações preliminares necessárias para a compreensão da história – comenta uma situação por ele próprio vivenciada, durante um espetáculo teatral, em que a sua sensibilidade colide com o humor grotesco exteriorizado por um público que se compraz num tema que, nesse tempo, era consecutivamente glosado: o “do velho iludido, tipo predilecto da veia cómica de então”. O “público iludido” ri à gargalhada, assistindo ao “drama psicológico” que se desenrolava no palco. No narrador-personagem, porém, essa “história de uma paixão sem futuro”[3] – também ela fundada numa ilusão: a de um homem velho que espera que o seu amor por uma mulher jovem seja correspondido – desperta sentimentos de compaixão, que refletem o olhar de “tristeza” que a “máscara” do comediante oculta. Uma empatia que é observada sob um prisma irónico: “Que querem? Mau é que se façam dessas abstrações; o efeito é depois inevitável”. Este tipo de ironia socrática – que caracteriza o estilo literário do poeta Júlio Dinis, e que está bem patente na última asserção transcrita, onde a maiêutica chega à sua meta final, a autorreflexão – só atinge verdadeiramente o seu alcance (nessa narrativa breve onde Júlio Dinis, perseguindo os seus próprios fins, também glosa “o eterno e inesgotável tema glosado”) na “Conclusão” do conto (ou novela) em análise, com o relato do desaparecimento do doutor Jacob Granada. Acostumados a aceitar a atitude paternalista assumida pelo facultativo – atitude que, nessa época, também seria um meio de ocultação da própria ignorância científica –, os pacientes do doutor Jacob Granada encaram o seu desaparecimento como um facto “extraordinário”, “misterioso” e obscuro. Na verdade, é algo que não podem compreender, porque não se coaduna com a imagem sólida que tinham formado do velho médico, a quem obedeciam cegamente, precisamente porque o doutor Jacob Granada tinha a capacidade de exercer sobre eles um “poder magnético”. Quando o velho médico, porém, se apaixona por Valentina – uma mulher jovem, sua paciente, que não se subordina ao paternalismo médico, sendo a primeira que põe os seus conhecimentos científicos em questão: “Creia-me, doutor, se quiser ser médico eminente, estude menos a anatomia do coração ou espiritualize-a. Olhe que nem todos os padecimentos dele são aneurismas ou lesões semelhantes” –, abandona a sua postura tradicional de facultativo positivista de aldeia para dar expansão aos desejos irracionais do seu coração. Dessa forma, acaba vagueando pelas ruas da capital do seu país e proferindo fórmulas que permanecem ininteligíveis aos ouvidos do facultativo citadino que o observa e, por isso mesmo, o julga tresloucado – mesmo que o doutor Jacob tenha a preocupação de o esclarecer, afirmando que as suas palavras correspondem a sentenças extraídas da “Tábua Smaragdina de Hermes” – cujo discurso, como esclarece Pierre Laszlo, tem uma apresentação que interfere com a lógica, inverte a perspetiva, de cima para baixo.


[1] Como esclarece Carl Gustav Jung, a noção de realidade pode variar consoante a cultura e as convicções religiosas de um povo: “A realidade, como se vê pela palavra alemã (Wirklichkeit), é algo que atua realmente (wirkt). Para nós [europeus], o conceito real por excelência se acha ligado ao mundo dos fenómenos, do que aparece exteriormente. Para o hindu, porém, este conceito está ligado à alma. Para ele, o mundo é aparência, e a sua realidade se aproxima daquilo que nós chamaríamos de sonho”.

[2] Saliente-se que já o primeiro poema dinisiano (composto em 1857) – onde o poeta canta o seguinte: “Que, enquanto o corpo dorme e a mente livre / Vagueia em regiões desconhecidas, / Eu vejo ao lado meu… possa encontrá-la / Em breve nesta vida […]” – se intitula «Sonho ou realidade?».   

[3] Um drama psicológico idêntico a esse que se desenrola no palco é cantado por Júlio Dinis no poema «Culto secreto» (sem ano de composição), do qual transcrevemos de seguida a primeira e a última estrofe: “Ouve, lânguida virgem das cidades, / A paixão que me inspiraste, / Curvada, como a flor em vaso d’ouro, / Tu, bela, me encantastes.” […] “Tu sim, podes amar; mas eu… se ao ver-te / Interrogo o futuro, / Uma voz me murmura: ‘Adora, mártir, / Adora, e morre obscuro’.”


Sobre a temática acima exposta, cf. GRIEBEN, Fernanda – Júlio Dinis, apologista da Kunstreligion:  influência de uma corrente de pensamento europeu no percurso literário dinisiano. Lisboa : Universidade Aberta, 2016. Tese de doutoramento.  Disponível em https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/5717


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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