“Mas ponde os olhos em António vosso pregador…”


Dia de Santo António | 13 de junho de 2023


RESUMO: Sem recorrer a especulações teológicas, meditar-se-á, neste estudo, a doutrina transmitida por Padre António Vieira em quatro sermões, dedicados a Santo António de Lisboa e pregados em São Luís do Maranhão: Sermão de santo António (pregado na cidade do Maranhão, em dia de Santíssima Trindade); Sermão de santo António (pregado na Dominga infra octavam de corpus Christi com o Santíssimo sacramento exposto em São Luís do Maranhão no ano de 1653); Sermão de santo António (Pregado na cidade de São Luís do Maranhão, no ano de 1654); Sermão de santo António (pregado na Dominga infra octavam do mesmo santo no Maranhão, no ano de 1657).
Partindo de alguns dados biográficos, que se afiguram relevantes para uma melhor compreensão dos sermões em análise, passar-se-á à reflexão dos textos, tentando seguir de perto o pensamento original do seu autor, já que o Padre António Vieira merece ser descoberto, também, como teólogo – e é o seu próprio pensamento teológico que se pretende trazer à luz.


Palavras-chave: Padre António Vieira; Colonização e Missionação; Homilética; Questões Teológicas e Doutrinárias; Santo António de Lisboa.


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Padre António Vieira no Maranhão : Sermões de Santo António


1. NOTAS BIOGRÁFICAS


Dos nove sermões que o padre António Vieira dedicou a santo António de Lisboa e de Pádua[1], quatro foram redigidos e pregados durante a sua estadia no Maranhão e Pará, no Brasil. Nesses sermões, sobre os quais neste estudo pretendemos reflectir, encontramos presente a situação de conflito, pré-existente à chegada de padre Vieira, entre os missionários jesuítas e os colonos que tinham vindo instalar-se naquela região com o intuito de fazer fortuna. Para tal necessitavam da mão-de-obra índia, o que os levava a fazer entradas no sertão, capturando todos os índios que lhes fosse possível encontrar. Os nativos passavam, dessa forma, de homens livres a escravos, quase sempre de forma brutal, sendo obrigados a passar por condições verdadeiramente desumanas. É contra esta injustiça que António Vieira se vai revoltar, e lutar[2], durante os nove anos em que permanece nesta terra brasileira, onde chega a 16 de Janeiro de 1653, como superior dos missionários Jesuítas, vindo a atingir o grau de Visitador, dentro da sua ordem, em 1658.

Os sermões a santo António, desta época, caracterizam-se por uma  crítica social que incide, principalmente, sobre os costumes e a moralidade, mais ausente que presente; mas também pelo fervor religioso, perante a negligência por parte dos missionários de outras ordens que igualmente se encontravam neste território, como os franciscanos, carmelitas e mercedários.

O extracto de uma carta escrita no Maranhão e dirigida a D. João IV, em 25 de Janeiro de 1653, que passamos a citar, é exemplificativo do estado de espírito de padre António Vieira,  quando, ainda recém-chegado,  depara com a situação que acima descrevemos:


Em fim, senhor, Deus quiz que com vontade ou sem ella, eu viesse ao Maranhão, onde já estou reconhecendo cada hora maiores effeitos desta providencia, e experimentando nella clarissimos indicios da minha predestinação, e da de muitas almas; e por este meio dispõe que ellas, e eu nos salvemos. Eu agora começo a ser religioso, e espero na bondade divina, que conforme os particularissimos auxilios com que me vejo assistido da sua poderosa e liberal mão, acertarei ao ser, e verdadeiro padre da companhia, que no conceito de vossa alteza ainda é mais: e sem duvida se experimenta assim nestas partes, onde posto que haja outras religiões, só a esta parece que deu Deus graça de aproveitar aos proximos. O desamparo e necessidade espiritual que aqui se padece é verdadeiramente extrema, porque os gentios e os christãos todos vivem quasi em igual cegueira por falta de cultura e doutrina, não havendo quem catequize, nem administre sacramentos; havendo porém quem captive, e quem tyrannize, e, o que é peior, quem o approve; com que os portuguezes, e indios, todos se vão ao inferno[3].


É também importante referir as razões que levaram o padre Vieira a deixar Lisboa, e a corte, onde tinha a protecção do rei, seu amigo íntimo, para embarcar rumo ao brasil em 22 de Novembro de 1652, com intenção de se dedicar à missionação.

Entre 1646 e 1648, António Vieira é legado diplomático de D. João IV no Norte da Europa, com a missão de ajudar politicamente a sua pátria que, poucos anos antes, tinha recuperado, de novo, a independência. Tinha sido incumbido de realizar duas tarefas: em primeiro lugar, deveria adquirir navios e munições, e contratar mercenários para servirem em Portugal contra as tropas de Filipe IV; em segundo lugar, deveria tentar estabelecer negociações de ordem diplomática, no sentido de promover a causa de Portugal restaurado.

No entanto, não era fácil de assumir esta missão de legado do rei. Surgiam problemas a vários níveis:

  1. Nem em todos os lugares o estatuto de legado era reconhecido.
  2. Havia problemas devido ao diferendo religioso entre católicos e protestantes (o que levou padre António Vieira, por exemplo, a despir o seu hábito de jesuíta, ao passar as Províncias Unidas).
  3. Os legados sofriam de constante falta de dinheiro.
  4. Os contactos com Portugal eram raros e a correspondência muito demorada, o que implicava uma certa autonomia nas acções dos legados.

É neste período que Vieira entra frequentemente em contacto com a comunidade judaica, de origem portuguesa, estabelecida em Amesterdão. Torna-se, então, porta-voz dos “Homens da Nação”[4] e apresenta a D. João IV, em 1647, um relatório descrevendo as condições dos judeus portugueses emigrados, para regressarem a Portugal e ajudarem financeiramente o país que tinha os cofres vazios. São as seguintes:

  1. Mudança dos processos inquisitoriais (os nomes de testemunhas de acusação  não deviam continuar a ser secretos).
  2. Isenção dos bens dos mercadores da confiscação inquisitorial.
  3. Abolição de qualquer discriminação entre ‘cristãos-novos’ e ‘cristãos-velhos’.
  4. Vieira chega mesmo a pedir que a todos os mercadores (que nessa época eram confundidos com os cristãos-novos) fossem concedidos títulos de nobreza.

Em 1649, numa altura em que António Vieira parecia ter atingido o ponto máximo da sua influência no campo da política portuguesa, levantam-se contra ele várias vozes, requerendo a sua deposição a nível político e religioso. Por todos é considerado um traidor: pelos seus adversários políticos na corte; pelo tribunal da Inquisição, que não lhe perdoa o facto de ele ter tomado a defesa dos marranos; e, finalmente, pelos seus superiores na Companhia de Jesus, chegando ao ponto do superior da ordem, em Roma, decidir exclui-lo da companhia. As razões, residiam, principalmente, em dois factos: o de António Vieira ter pensado em criar, com o apoio do rei e sem o consentimento dos seus superiores, uma província jesuíta no Alentejo, quebrando, com o seu proceder, o voto de Obediência; e o da sua forma de vida, enquanto legado do rei, se ter assemelhado mais à de um cortesão do que à de um padre jesuíta.

Para o  ajudar, o rei oferece-lhe uma mitra de bispo. Padre António Vieira recusa-a, argumentando que preferiria ocupar o grau mais baixo da hierarquia jesuita (o de Coadjutor Temporal) a deixar a companhia.

São estes, em breves palavras, os antecedentes da história pessoal de Padre Vieira que também vão, por certo, influenciar a sua forma de sentir e viver a situação com que é obrigado a confrontar-se no Maranhão. Também nele está viva a necessidade de uma conversão pessoal, como as sua próprias palavras, dirigidas a um amigo através de uma carta datada de 6 de Maio de 1653,  o testemunham:


Sabei amigo, que a minha vida é esta. Ando vestido de um  panno grosseiro cá da terra, mais pardo que preto; como farinha de pau; durmo pouco; trabalho de pela manhã até à noite; gasto parte della em me encomendar a Deus; não trato com viva creatura; não saio fóra, senão a remédio de alguma alma; choro meus peccados; faço que os outros chorem os seus; e o tempo que sobeja destas occupações, levam-no os livros da madre Santa Theresa e outros de similhante leitura. […] amemos a Deus, amigo; e para o amarmos só a elle, consideremos que pouco merecem nosso coração todas as cousas deste mundo. Todas acabam, nenhuma tem firmeza: nesta vida ha morte, na outra ha inferno, e ainda é peior que um e outro o esquecimento de ambos. […] Salvação amigo, salvação, que tudo o mais é loucura[5].


2. O TEXTO LITERÁRIO


As vozes do pregador hão-de ser como as caixas e trombetas da guerra, que espertam, animam, e tocam à arma, como eram as de santo António; por isso todos o ouviam com uma atenção tão vigilante e tão viva, que nem pestanejar podiam, quanto mais dormir[6].


Com estas palavras, padre António Vieira revela-nos a sua concepção de pregação. O pregador é aquele que tem por missão despertar as consciências adormecidas dos seus ouvintes. Deverá fazê-lo por palavras e por obras, seguindo o Evangelho: “Vos estis sal terrae”. No entanto, nem sempre o sal se revela capaz de salgar, assim como, frequentemente, os ouvintes não se deixam salgar. Logo, é muito importante que haja coerência entre o discurso e as ações do pregador. Só então o seu comportamento poderá servir de exemplo, e as suas palavras, ditas com autoridade moral, poderão ser um apelo vivo à conversão, como eram as de santo António.


O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a Terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a Terra se não deixa salgar. […] Ou é porque o sal não salga e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a Terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem; ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si, e não a Cristo; ou porque a Terra se não deixa salgar, e os ouvintes em vez de servir a Cristo servem os seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal[7].


É importante compreendermos como, para Vieira, é fundamental o papel do pregador, se quisermos entender o seu discurso, enquanto texto escrito. Todos os sermões, por ele redigidos, destinavam-se a ser pregados, ainda que nem todos o tenham sido. É por esta razão que no discurso de Vieira não se encontra uma preocupação de rigor linguístico, tal como, de uma forma geral, ele é concebido num discurso clássico, no qual um símbolo sensível corresponde a um ‘significante’, e um conceito a um ‘significado’, constituindo estes dois elementos, indissociáveis, o ‘signo linguístico’. No discurso engenhoso, usado por Vieira nos sermões, a palavra é usada  sucessivamente pelo lado do significado e pelo do significante. Logo, a imagem, que é um significante no discurso clássico, pode tornar-se no seu discurso um significado; e o conceito, por sua vez, um significante. A este processo, o próprio Vieira denomina de “troca” e é, talvez, a fonte principal dos seus paradoxos. Numerosos sermões são iniciados por esta operação.


Aparentando rigor e disciplina “lógica”, o desenvolvimento do discurso pelo encadeamento das proporções presta-se aos mais audaciosos rasgos da imaginação. Pela potencialidade da palavra, tudo pode ser posto em proporção com tudo, tudo pode metamorfosear-se em tudo. […]

Se não é um raciocínio, qual, pois, o princípio a que o discurso obedece?[8].


Como esclarece António José saraiva, Vieira não tem a preocupação de subordinar o seu discurso a um raciocínio lógico tradicional. Ele pretende convencer o seu público ouvinte de uma Verdade à qual se deverá aderir pela fé. Como bom orador que é, padre Vieira está consciente que será mais eficaz o seu discurso se ele apelar a uma imaginação sensorial do que a uma capacidade de raciocínio, que nem todos possuem no mesmo grau. Recorre pois a imagens, que mais facilmente são apreendidas e interiorizadas  pelo espírito humano.


A maior parte, talvez, das imagens de Vieira são tiradas da Escritura e desenvolvem ou uma narração tomada como tal […], ou uma “figura”, isto é, uma narrativa à qual o ensinamento da Igreja atribuía um sentido “alegórico”. Quero apenas indicar como o nosso autor tira partido do texto sagrado e da exegese tradicional para formular explicitamente a identidade da imagem e do conceito[9].


Baseando-se na Sagrada Escritura, Vieira irá então desenvolver a arte da palavra no estilo ‘conceptista’. Mas fá-lo com fins práticos, porque para ele a palavra era um instrumento de acção. Essa composição “em Xadrez”, acerca da qual ele próprio fala no sermão da sexagésima, quando se refere ao estilo dos pregadores do seu tempo, reprovando-os, não é de excluir do seu próprio discurso. No entanto, Vieira não se serve de tal processo literário com o intuito de cultivar o belo, independentemente do verdadeiro. Pelo contrário[10]. Como já anteriormente referimos, a sua intenção é a de converter almas, sempre apoiado na Sagrada Escritura. Além do mais, Padre António Vieira é fruto de uma tradição escolástica, herdeira de uma exegese  assente no  sentido ‘alegórico’ das escrituras. Como esclarece António José saraiva:


O processo empregado por Vieira é herança dos pregadores da Idade Média e tinha um nome técnico: “claves”. As “claves”, ou palavras-chave, encontravam-se no texto escolhido para o sermão e a sua análise permitia compreender o sentido do texto explicado, retirar dele ensinamentos e estabelecer ligações entre as diferentes passagens da Escritura[11].


3. a) A DOUTRINA NOS QUATRO SERMÕES EM ANÁLISE


“Todo o homem tem obrigação de ser semelhante à Santíssima Trindade”. S. VII, 218.


É a vocação à santidade a principal característica do ser humano que, embora pecador, pode e deve ascender à condição de filho de Deus. Pois o género humano foi redimido por Jesus Cristo. António Vieira deixa isto claro, apontando um caminho ao qual todos temos acesso através dos sacramentos, a comunhão com Deus no seio da Igreja e a ascese pessoal. Dos sacramentos ele salienta o da comunhão e o da penitência.


“[…] porque todos os que hão-de comungar, têm obrigação de ser amigos: e por isso antes do Sacramento da comunhão precede o da penitência  em que nos reconciliamos com Deus, e nos fazemos seus amigos”.[12]


Tendo esta vida terrena carácter puramente transitório, o fim do ser humano caminhante é o juízo final, ao qual todos estarão sujeitos, esperando nele a ressurreição. A comunhão desempenha, entretanto, um papel primordial nesta esperança futura.


“Outra grande maravilha do Santíssimo Sacramento é, que no dia do Juízo todos havemos de ressuscitar em virtude sua. No dia do Juízo hão-de resuscitar todos os nossos corpos tão perfeitos e inteiros, como hoje vivem. E quem há-de dar esta virtude de ressuscitar a tantos corpos depois de feitos ou desfeitos em cinza? O corpo de Cristo Sacramentado, que comungamos”.[13]


No entanto, neste ‘Santíssimo Sacramento’, tanto será possível encontrarmos a vida como a morte. Tudo depende se nos aproximamos dele em estado de Graça ou em pecado.


“Amanhece a branca flor, cheia de orvalho doce que destilou nela a aurora; chega a beber a abelha, e leva mel; chega a beber a aranha e leva veneno. Mas donde nasce este veneno, e este mel? O mel não nasceu da abelha, senão da flor; o veneno não nasceu da flor senão  da aranha. Nem mais nem menos: está aquele Sacramento feito um favo de vida e de doçura. Chega o justo, e chega o pecador àquele manjar divino; o justo leva vida: “Vita bonis”; o pecador leva a morte: “Mors est malis”. Mas donde nasceu esta morte, e esta vida? A vida não nasceu do justo, senão do Sacramento; e a morte não nasceu do Sacramento, senão do pecador. De sorte que o Santíssimo Sacramento sempre para todos é vida, e nunca morte”.[14]


Ainda assim, todos os homens ressuscitarão…


“[…] porque basta que o merecimento do benefício esteja em alguns, para que Cristo Sacramentado o comunique a muitos […]”.[15]


O pecado afasta o homem de Deus. E caminhando só, sem a Graça divina, o homem pecador, terá tendência a perder-se… Surgem então os vícios, dos quais ele terá sérias dificuldades em separar-se, depois de estes estarem enraízados no seu ser.


“Como em todos os pecados se perde a Deus, em todos os vícios se perdem também as almas: […]”.[16]


A sua condição de pecador, herdou-a o homem de Adão e Eva, os primeiros seres humanos criados e desobedientes. É o pecado original, que caracteriza o género humano. Ele deu origem a dois vícios, aos quais Padre Vieira chama de ‘raízes universais donde nascem todos os outros’ que são a sensualidade e a cobiça.


“Se o alheio botou a perder Adão, quando todas as cousas eram suas; que será a quem tem pouco de seu? Se a mulher botou a perder Adão, quando não havia no mundo outra mulher, que será quando há tantas e tais! Este é o triste património que herdaram os homens do primeiro homem: perdê-los a mulher, e o alheio: perdê-los a sensualidade e a cobiça”.[17}


Qualquer pecador pode voltar a encontrar a sua alma perdida. Mas terá, no entanto, de possuir uma forte força de vontade, para não voltar a cair nas mesmas situações que o levaram a pecar. Para tal, será necessário que nele se opere uma mudança de 180 graus.


“É a alma como o Sol, que se não pode achar no lugar onde se perdeu, senão no oposto. Perde-se o Sol no ocaso, e se o quiserdes buscar e achar, há-de ser no oriente. Quando assim se acha a alma, então está segura de se tornar a perder, onde se perdia”.[18]


Para ajudar o pecador a converter-se, existe a Igreja como comunidade de crentes que partilham a mesma fé e a mesma memória (a Tradição) das maravilhas que Deus opera na história da vida dos homens. À celebração deste memorial é chamado o pecador arrependido. E a comunhão surge como o acto principal da manifestação da reconciliação com Deus. Contudo, é necessária a perseverança, pois a tentação estará sempre presente na vida humana.


“O mistério altíssimo do Santíssimo Sacramento do altar é a memória das maravilhas de Deus: “Memoriam fecit mirabilium suorum”. E uma das principais maravilhas daquele sagrado mistério é fazer os homens castos: “frumentum electorum, et vinum germinans virgines” . E de que sorte nos faz castos o santíssimo sacramento? Faz-nos castos de maneira, que resistamos ao vício; mas não nos faz castos de tal modo, que nos isente das tentações. Depois de comungarem muitas vezes, os mais santos e os mais castos, ainda são tentados na sensualidade”.[19]


A consciência humana está muitas vezes adormecida e entorpecida. A perspectiva da morte, que um dia virá, é algo que a pode despertar (“o maior pregador que há no mundo, que é a morte”.[20]). Por isso, é importante que a morte se mantenha no horizonte da vida do homem, para que ele compreenda a importância da conversão através de Jesus Cristo, que deve ser acolhido no silêncio da oração e interiorizado, ao aproximarmo-nos dessa “Hóstia de amor” com sentimentos puros e verdadeiros.


“Os olhos, onde está o sentido de ver; a língua, onde está o sentido do gostar; que é o que fazem na presença do Santíssimo Sacramento? Que é o que falam aquelas línguas sacrílegas, quando deveram venerar aquele Sacramento com a oração e com o silêncio? Que é  o que olham, e para onde, aqueles olhos inquietos, e loucos, quando deveram estar enlevados naquela Hóstia de amor, ou pregados na terra, de modéstia e de confusão? Que fazeis, ó divino sal, e divina luz do Sacramento? Saboreai como sal estas línguas; alumiai como luz estes depravados olhos. Sarai estas línguas como sal; posto que línguas tão sacrílegas, mais mereciam salmouradas; alumiai estes olhos como luz; posto que olhos tão descompostos mais mereciam ser cegos”.[21]


Daqui surge a necessidade da confissão, para que o pecador se arrependa dos pecados cometidos e, reconciliado com Deus, se encontre, novamente, em estado de Graça.


“Morto santo António, e concorrendo todos os enfermos ao seu sepulcro, nele experimentavam tal diferença, que os que iam confessados, e em graça de Deus, todos de qualquer enfermidade ficavam de repente sãos com inteira e perfeita saúde; mas os que não levavam esta disposição da Graça, tornavam tão enfermos como vieram”.[22]


A prática dos sacramentos requer veracidade e honestidade. Eles só poderão ser eficazes, como instrumentos de salvação, se estas condições se verificarem.


“Restitui, e se não tiverdes mais, não mandeis dizer uma missa por vossa alma, porque a missa sem restituição não vos há-de salvar, e restituição sem missa sim. Mas para o que é pompa e vaidade, fazem-se novos empenhos, e novas dívidas, acrescentando nova circunstância ao pecado irremissível de não pagar as contraídas”.[23]


Deus, uno-trino, em toda a sua omnipotência, sabedoria e bondade, conhece o coração dos homens melhor do que eles próprios. Por isso, a esta Luz que tudo penetra, nada pode ser ocultado. Todo o mundo, por ele criado e conservado, está nas suas mãos.


“[…] da Santíssima Trindade, criadora e conservadora do mundo, o qual, como pendente de três dedos sustenta a omnipotência do Padre, a sabedoria do Filho, a bondade do Espírito Santo […]”.[24]


3. b) A DOUTRINA NOS QUATRO SERMÕES EM ANÁLISE


“Olhai peixes, lá do mar para terra”. S. VII, 261.


Meditemos agora sobre os erros que os seres humanos podem cometer, ‘Infernizando’ a sua vida, e a dos outros.


“Os homens com as suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros”.[25]


A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses do ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes: e assim como pão se come com tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: “Qui devorant plebem meam, ut cibum panis”. Parece-vos bem isto, peixes?”.[26]


A cobiça do alheio, que pode levar à exploração de seres humanos, é, nos olhos de Padre Vieira, uma perversão. Quando o homem, criado livre, não é capaz de respeitar a liberdade dos seus irmãos, torna-se pecador; assim como também se torna pecador, quando não é capaz de fazer uso responsável da sua liberdade. Nessas circunstâncias, o homem comete pecados, suscetíveis de se transformarem em algo que domina a sua personalidade, condicionando-o.


“O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, […]. Quantos correndo fortuna na nau Soberba, com as velas inchadas de vento, e da mesma soberba (que também é vento) […]. Quantos, embarcados na nau Vingança, com a artilharia abocada, e os bota-fogos acessos, corriam infunados a dar batalha, […]. Quantos navegando na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas, e aberta com o peso por todas as costuras, […]. Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estratos de noite, enganados no canto das sereias, e deixando-se levar da corrente, […]”.[27]


O livre arbítrio deve ser orientado pela fé e pela razão humana. Só assim o homem será capaz de tomar consciência dos seus limites, enquanto ser criado e dependente.


“[…] se tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo: para cima considerando que há Céu, e para baixo considerando que há Inferno”.[28]


Ao mesmo tempo que, numa atitude interior de humildade e obediência, reconhece o poder do ‘Padre’, que sobrepõe a misericórdia à justiça.


“Já, ainda que não quiséssemos, estamos vendo, que a pessoa do Padre é a que deu a santo António o “fecerit”; e que em todos os poderes desta sua omnipotência delegada, foi perfeitíssimo imitador do mesmo Padre, usando dela só para fazer o bem, e de nenhum modo mal, e para obras sempre de misericórdia, e nenhuma, posto que lícita de justiça”.[29]


Bem contrária a esta misericórdia divina é a vaidade humana, própria de quem não é capaz de viver a grandeza da humildade e da sabedoria. Padre Vieira diz-nos que: “A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto, e que mais fácilmente engana os homens. E que faz a vaidade?”[30] A vaidade é vento, não tem consistência, e leva o ser humano a perder-se, perdendo a sua vida.


“Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal: e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam nem os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai ou despende toda a vida? No triste farrapo com que saiem à rua, e para isso se matam todo o ano”.[31]


E contudo, “neste mundo tudo é vaidade”. E é a mesma vaidade do ‘saber’ e do ‘poder’ que faz crescer a soberba humana e a arrogância de quem quer medir forças com o criador.


“Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar, e imitar a santo António. Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder”.[32]


E quem não se sente com força suficiente para se engrandecer por si só, junta-se,  por costume, aos fortes e poderosos deste mundo. São os ‘pegadores’.


“Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tão maneira pegados, que vos mateis por eles; nem morrais com eles.

Considerai, pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância, que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se possa imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original! Nós os homens fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o mar”.[33]


Melhor seria se se ‘pegassem’ os seres humanos a Deus como fez Santo António: “Mas António também se fez menor, para se pegar mais a Deus”[34]. Poucos o fazem, porque não estão dispostos a crescer em humildade, seguindo a verdadeira sabedoria.


“Porque há asas para subir e asas para descer. […] Deram-se à alma de santo António duas asas de águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural, e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas, que sendo a Arca do Testamento, era reputado, como já vos disse, por leigo e sem ciência”.[35]


Por vezes, não só não seguem a sabedoria como ainda cultivam a hipocrisia e a falsidade traiçoeira de quem aparenta ser o que não é.


“O polvo com aquele seu capelo parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência  tão modesta, ou desta hipócrisia tão santa, […] o polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir, ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores, a que está pegado”.[36]


Este pecado é ainda mais grave, quando através da  falsidade de uma vida, outras se perdem…


“O polvo escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição, e roubo, que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor”.[37]


4. CONCLUSÃO


António Vieira exerceu uma intensa actividade político-religiosa. Viveu a sua vida assim como ele era: um homem de temperamento apaixonado. Foi uma figura que se salientou no seu tempo, principalmente por ser um grande orador, e que ficou na história como um marco polémico e controverso. É difícil atingi-lo, ficamos com a sensação de que algo nos escapa. Mas, como ele próprio confessou um dia: “Porque tenho conhecido tantos homens, sei que ha mister muito tempo para se conhecer um homem”[38].

O tempo é algo que nos separa. Ficaram-nos os seus escritos. E desses, nove sermões dedicados a Santo António de Lisboa, que nos unem, pelo mesmo interesse com que nos dedicamos ao estudo da vida e obra desse santo português.

Pela análise que fizemos dos quatro sermões, pregados em são Luís do Maranhão, podemos concluir que Padre António Vieira conhecia bem a vida de Santo António.  Também na doutrina, que ambos desenvolvem, se aproximam.

Assim como padre Vieira, também Santo António foi um martelo de hereges, um despertador de consciências adormecidas, e alguém para quem a verdadeira sabedoria consistia no cultivo da humildade e da obediência. Ambos se fundamentam, principalmente, na Sagrada Escritura, sobretudo no Antigo Testamento, e são bons conhecedores da Patrística, com principal incidência em Santo Agostinho.

Gostávamos de terminar, citando, mais uma vez, Padre António Vieira. Pensamos que estas suas palavras nos revelam algo de profundo a seu respeito. Algo que marcou a sua vida e a sua obra:

“Mas ponde os olhos em António vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade, e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento, ou engano. E sabei também, que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo”[39].


1«Santo António de Pádua, porque só Pádua lhe acertou com o nome próprio […] Santo, e mais nada, porque é mais que tudo: “Sanctum sine additamento”». VIEIRA, António – Sermões in Obras completas. VII. Porto: Lello & Irmão, 1959, p. 210. Todas as citações,  referentes aos sermões, que se seguirem até ao final deste estudo, serão futuramente abreviadas deste modo: S. seguido do volume e número de página.

2 cf. VIEIRA, António – Cartas. I. Lisboa: Editores J. M. Seabra & T. Q. Antunes,1855, p. 17-97. Obras inéditas. III. Lisboa: Editores J. M. Seabra & T. Q. Antunes, 1856, p. 101-113. Obras várias. I. Lisboa:Editores J. M. Seabra & T. Q. Antunes, 1856, p. 137-147; 183-190; 211-222.

3 VIEIRA, António – Cartas. I. p. 18.

4 cf. VIEIRA, António – Obras inéditas. II. p. 21-103.

5 Apud  BARROS, André – Vida do padre António Vieira. Lisboa: Editores J. M. Seabra & T. Q. Antunes, 1858, p. 318.

6 S. VII, 196.

7 S. VII, 245-246.

8 SARAIVA, António José – O discurso engenhoso: Ensaios sobre Vieira. Lisboa: Gradiva. 1996,  p. 89.

9 SARAIVA – O discurso,  p. 55.

10 “Parece que não há coisa sem um texto correspondente e que são, de certa maneira, os textos que revestem as coisas de dignidade indispensável para que elas se apresentem perante o público”: Ibidem,  p. 106.

11 Ibidem,  p. 146.

12 S. VII, 230.

13 S. VII, 231.

14 S. VII, 238.

15 S. VII, 236.

16 S. VII, 285.

17 S. VII, 287.

18 S. VII, 298.

19 S. VII, 294.

20 S. VII, 302

21 S. VII, 227.

22 S. VII, 190.

23 S. VII, 311.

24 S. VII, 172.

25 S. VII, 261.

26 S. VII, 263.

27 S. VII, 255-256.

28 S. VII, 258.

29 S. VII, 187.

30 S. VII, 266.

31 S. VII, 267.

32 S. VII, 269.

33 S. VII, 272.

34 S. VII, 271.

35 S. VII, 275.

36 S. VII, 275.

37 S. VII, 276.

38 VIEIRA – Cartas. I, p. 59.

39 S. VII, 277.


BIBLIOGRAFIA


Fontes

VIEIRA, António – Sermões in Obras completas. VII. Porto: Lello & Irmão, 1959.

VIEIRA, António – Obras várias. I. Lisboa: Editores J. M. Seabra & T. Q. Antunes, 1856.

VIEIRA, António – Obras inéditas. II. III. Lisboa: Editores J. M. Seabra & T. Q. Antunes, 1856.

VIEIRA, António – Cartas. I. Lisboa: Editores J. M. Seabra & T. Q. Antunes, 1855.

Estudos

BARROS,  André de – Vida do padre António Vieira. Lisboa: Editores J. M. C. Seabra & T. Q. Antunes, 1858.

BROTÉRIA 145 vol.4-5 (1997).

CIDADE, Hernani – Padre António Vieira: Estudo biográfico e crítico. I . Lisboa: Agência geral das colónias,1940.

OCEANOS 30 –31 (Abril-Setembro 1997).

SARAIVA, António José – O discurso engenhoso: Ensaios sobre Vieira.  Lisboa: Gradiva, 1996.

SARAIVA, António José – História e utopia: Estudos sobre Vieira. Lisboa: Instituto de cultura e língua portuguesa, 1992.


O estudo aqui apresentado foi originalmente publicado na revista Signum: cf. GRIEBEN, Fernanda – Padre António Vieira no Maranhão : Sermões de Santo António. in SIGNUM. Porto. 2 (Jul.-Dez. 1998), p. 229-244.


https://catalogo.bibliotecas.ucp.pt/cgi-bin/koha/opac-detail.pl?biblionumber=266355


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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