«A peregrinação a Kevlaar», ou «A intercessão da Virgem»


Júlio Dinis e Heinrich Heine em diálogo


Em abril de 1864, o poeta português Júlio Dinis (1839-1871) adapta à língua portuguesa um poema de Heinrich Heine (1797-1856) – intitulado «Die Wallfahrt nach Kevlaar» – que integra, no original, a obra Buch der Lieder.

Nessa adaptação, porém, também estão visíveis os traços próprios de Júlio Dinis, já que “a tradução consegue proporcionar” – como afirma João Barreto – “formas de entendimento e diálogo desimpedidos”. Assim sendo, o poeta português é livre de alterar, por exemplo, o título original do poema – «Die Wallfahrt nach Kevlaar», (literalmente: «A peregrinação a Kevlaar») –, intitulando-o, na sua versão, «A intercessão da Virgem». Destacando, com este novo título, a mediação da Virgem Maria, Júlio Dinis faz passar para segundo plano o principal tema que Heinrich Heine pretende realçar: o da peregrinação.


Com efeito, no poema acima referido, Heinrich Heine descreve uma peregrinação muito popular a Kevelaer[1] – local de culto mariano na Alemanha, desde os meados do século XVII –, à qual se irão juntar mais dois peregrinos, na esperança de que a Virgem interceda para que se realize um milagre nas suas vidas: uma mãe, que sofre com a doença de seu filho; e o próprio filho, cuja doença consiste num ‘coração dolorido’, devido ao pesar que sente pela morte da sua amada. É um poema que se encontra dividido em três partes, do qual transcrevemos, para já, a primeira e a terceira:


               I

Jazia o filho no leito,

A mãe olhava o balcão.

– «Não te levantas, meu filho,

Para ver a procissão?»


– «Ai, mãe! Se estou tão doente,

Que não posso ouvir nem ver!

Penso nela… a pobre morta…

Como não hei-de eu sofrer!»


– «Ergue-te, filho, e à romagem

Iremos juntos a orar,

Que aos corações doloridos

Sabe a Virgem consolar.»


Já se ouvem os sacros hinos,

Da cruz flutua o pendão;

Em Colónia sobre o Reno

Vai passando a procissão.


E a mãe e o filho acompanham

 A turba que segue o andor,

Dizendo em coro com ela:

– «Glória a ti, Mãe do Senhor!»


                 III

Alta noite, adormecidos

Jaziam o filho e a mãe,

E a Virgem mui de mansinho

Entrando no quarto vem.


Pendida sobre o doente

No peito a mão lhe pousou,

E com gesto suavíssimo

Sorrindo se retirou.


Como se através dum sonho,

Tudo isto a mãe percebeu

E acordando alvoroçada,

Junto do filho correu.


Estendido sobre o leito,

Morto, a triste o foi achar;

Andava-lhe a luz da aurora

Pelas faces a brincar.


Vendo-o assim, a mãe piedosa

Juntou as mãos com fervor

E em voz baixa disse, orando:

– «Glória a ti, Mãe do Senhor!»


A cura milagrosa – tão desejada por mãe e filho – foi realizada, por fim, quando a ‘noite’ já ia alta, e a ‘luz da aurora’ andava a brincar pelas faces do defunto. A Virgem transforma-se, assim, em anjo da morte. Mas a Virgem não é só mensageira celeste. Enquanto ‘Mãe do Senhor’, também ela conhece a dor de uma mãe que assiste, impotente, ao sofrimento e morte de um filho. E essa é uma dor humana que redime – tanto a humanidade, no seu conjunto, como cada ser humano, individualmente –, trazendo a luz de uma nova aurora, que só pode despontar depois de uma noite simbólica ter findado. Esta transmutação milagrosa é algo que, neste poema, a ‘mãe’ perceciona ‘Como se através dum sonho’. Um sonho premonitório do milagre da redenção de seu ‘filho’.

A esse milagre redentor, porém, Heinrich Heine contrapõe radical e sarcasticamente, na segunda parte desse mesmo poema, as espetaculares curas miraculosas de que são testemunhas os participantes, em elevadíssimo número, na peregrinação a esse célebre local de culto mariano, no Ocidente cristão:


                    II

Como a Senhora está linda

Com o seu mais rico vestir!

Correm-lhe em chusma os doentes,

Muito tem ela que ouvir!


Todos lhe trazem promessas

Com ferventes devoções:

Membros, pés e mãos de cera,

Jazem no altar aos montões;


Quem lhe der um pé de cera,

Logo do pé sarará;

Quem mãos de cera lhe ofereça,

A mão curada verá.


Mancos, que à romagem foram,

Vêem-se na corda saltar;

Outros de mãos aleijadas,

Destros agora a tocar.


Da alva cera duma vela

Fez a mãe um coração.

– «Leva isto à Virgem Maria,

Que te cure essa paixão.»


Gemendo, o filho a recebe,

Gemendo a vai ofertar;

Dos olhos lhe brota o pranto,

Do coração este orar:


– «Ó Maria gloriosa!

Serva pura e mãe de Deus:

Virgem, dos Céus soberana,

Escuta os lamentos meus


«Em Colónia, onde as igrejas

Se podem contar às cem,

Os meus dias descuidado

Passava com minha mãe.


«E junto de nós vivia

Margarida… a que morreu…

Dou-te um coração de cera,

Cura as feridas do meu!


«Cura minh’alma dorida,

Que eu com devoto fervor

Direi de dia e de noite:

– «Glória a ti, Mãe do Senhor!»


A ‘mudança intempestiva’, que se opera nesta segunda parte acima transcrita do poema de Heinrich Heine em análise, constituiria – segundo Teófilo Braga – uma marca característica da poesia desse autor alemão, que cultivou a “poesia da eschola satanica de Byron” :


Henri Heine, caracteriza melhor a influência byroniana; dotado de genio descriptivo, a fidelidade com que copia o natural é-lhe alterada pela travessura que o obriga a escarnecer de tudo; dá ás cousas proporções grotescas depois de mostrar que as sabe vêr bem; fez a alliança entre a poesia lyrica com a graça espirituosa; ala-se na mais ardente inspiração e de repente mostra-se mofador, sarcástico, e recama tudo de uma irrisão insultuosa. A sua musa parece uma egypan que desvaira em uma campina attica, fazendo esgares ao som da frauta harmoniosa; as mudanças intempestivas, o vêr o mundo através de um prisma tenebroso, deixam uma perturbação na alma de quem lê.


Com efeito, nas estrofes que formam a segunda parte do poema de Heinrich Heine está bem patente uma crítica mordaz ao culto mariano – assim como ele é praticado em tais locais de peregrinação, como Kevelaer, onde ao dogma católico[2] se alia uma devoção popular que revela claramente as suas origens pagãs. Mas o comércio religioso também é sarcasticamente denunciado nas estrofes que acima transcrevemos, quando o poeta menciona os ‘Membros, pés e mãos de cera’ que jazem ‘no altar aos montões’. Este é o dízimo excedente que os crentes têm de pagar, nas suas aflições, mesmo que vivam numa cidade como a de Colónia, onde as igrejas ‘Se podem contar às cem’.

Saliente-se, porém – com Lothar Kahn e Donald Hook – que a crítica religiosa que Heine pratica através da sua escrita literária não se dirige somente, nem preferentemente, no sentido da denúncia do que o poeta não aprova na religiosidade católica. O judaísmo é igualmente alvo das suas críticas, a que reagiram alguns escritores judeus-alemães, como, por exemplo, Berthold Auerbach. Heine, de origem judaica – Harry Heine, nome de nascimento –, conhece bem o judaísmo; assim como conhece o catolicismo, pelos anos em que frequentou um liceu católico, em Düsseldorf; ou como conhece, numa perspetiva mais geral, o cristianismo, enquanto convertido[3], em idade já adulta (1825), ao protestantismo – Christian Johann Heinrich Heine, nome de batismo. Um percurso religioso um tanto invulgar, que talvez esteja na origem daquilo a que Jochanan Trilse-Finkelstein designou por “conflito central de Heine” (“Heines zentralen Konflikt”), ou seja, “o conflito do judeu entre a emancipação e a assimilação” (“den Konflikt des Juden zwischen Emanzipation und Assimilation”). Um conflito que se espelharia nas posições contraditórias que – segundo este seu biógrafo – Heine, frequentemente, teria assumido na sua vida.

Uma das facetas do conflito religioso acima referido manifesta-se no poema em análise, onde Heinrich Heine contrapõe à religiosidade popular, de raízes pagãs, que tem o seu fundamento num culto exterior e artificial – do qual se espera milagres espetaculares e fantásticos –, a devoção a Maria, que deve ter o seu fundamento num culto interior e natural – do qual só se pode esperar milagres tão naturais como o de uma morte redentora, percecionada por um amor de mãe ‘Como se através dum sonho’.

É este culto interior e natural – que Heine canta, na última parte da composição poética em análise – o que Júlio Dinis intenta essencialmente exaltar, através da sua adaptação do poema à língua portuguesa, fazendo passar para segundo plano a crítica sarcástica ao culto mariano, assim como ele é praticado nos locais de peregrinação, no Ocidente cristão. Uma intenção que o poeta expressa desde o título que atribui, em português, ao poema adaptado. Mas a forma como a Virgem é evocada, na adaptação de Júlio Dinis, também diverge, significativamente, da da composição poética original. Assim, enquanto Heinrich Heine, no verso final da última estrofe de cada uma das três partes do poema, que constitui uma espécie de refrão, permite que ‘mãe’ e ‘filho’ evoquem a Virgem pelo seu nome próprio, “Maria” (“Gelobt sey’st du, Marie!”, literalmente: “Louvada sejas, Maria!”), Júlio Dinis coloca na boca de ambos a aclamação: ‘– «Glória a ti, Mãe do Senhor!»’. É esta alteração, operada propositadamente pelo poeta – já que as traduções que possivelmente seguiu, a francesa e a inglesa, ficam fiéis ao texto original –, que nos permite interpretar a última parte do poema da forma anteriormente apresentada. Reforçando o papel de Maria,enquanto ‘Mãe do Senhor’, Júlio Dinis apresenta-a como medianeira. No entanto, esta apresentação – que se fundamenta apenas na alteração que o poeta português opera – não coincide com as convicções de Heinrich Heine, para quem a imaculada conceição de Jesus Cristo se reduz a uma ‘bela lenda’, e, consequentemente, “Maria” (“Marie”) não pode ser a «Mãe do Senhor» – como se pode aferir pela leitura do seguinte trecho, transcrito da versão portuguesa de um ensaio de Heine que, no original, integra a obra Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland (1834):


Para o deísta, que admite, portanto, um Deus extramundano ou supramundano, apenas o espírito é sagrado, porque o considera, por assim dizer, o sopro divino que o Criador do mundo insuflou no corpo humano, essa obra de barro feita por suas próprias mãos. Assim, os judeus reputavam o corpo como algo de pouco valor, como um mísero invólucro do Ruach hakodasch, o sopro divino, o espírito, e apenas a este consagravam seu cuidado, seu respeito, seu culto. Com toda a propriedade, são chamados, por isso, de o povo do espírito, de castos, moderados, sérios, abstratos, perseverantes, aptos para o martírio: seu descendente mais sublime é Jesus Cristo. Este é, no verdadeiro sentido da palavra, o espírito encarnado, e é profundamente significativa a bela lenda [sublinhado nosso] segundo a qual uma virgem fisicamente incólume, imaculada, deu-o à luz numa concepção espiritual.


Além do mais, nesse mesmo ensaio, Heinrich Heine também revela claramente a sua simpatia pelo panteísmo de Espinosa – que não se coaduna com a visão ‘deísta’[4] acima apresentada –, esclarecendo, contudo, a forma como entende, e em que medida aprova, esse panteísmo, nos seguintes termos:


Com o nome de panteísmo designarei, no que se segue, menos o sistema que o modo de intuir de Espinosa. Nele, tanto quanto no deísmo, admite-se a unidade de Deus. O Deus dos panteístas, porém, está no próprio mundo, não na medida que o invade com a sua divindade, tal como Santo Agostinho tentou mostrar certa vez, quando comparou Deus a um grande lago e o mundo a uma grande esponja que se situava no centro e sugava a divindade; o mundo não está apenas embebido, impregnado por Deus, mas é idêntico a Deus. ‘Deus’, que é chamado de substância única por Espinosa e de Absoluto pelos filósofos alemães, ‘é tudo aquilo que existe’; sendo tanto matéria quanto espírito, ambos são igualmente divinos, e quem ofende a sagrada matéria é tão pecador quanto aquele que peca contra o Espírito Santo.


Como se pode aferir pela leitura da passagem acima citada, é o ‘modo de intuir’ panteísta de Espinosa que Heinrich Heine aprova, e não tanto o seu ‘sistema’[5]. Também seria partindo dessa intuição de Espinosa – a da identidade entre Deus e o mundo – que os ‘filósofos alemães’ atingiriam a noção de ‘Absoluto’. Entre esses filósofos destaca-se “o grande Hegel”, que foi “o maior filósofo que a Alemanha já produziu desde Leibniz” e que “era um homem de caráter”, não sendo, por isso mesmo – na opinião de Heine –, comparável ao “senhor Schelling”, Já que, no tempo em que Heine redige este seu ensaio, Schelling, “como bom católico, prega um Deus pessoal extramundano, ‘que cometeu a tolice de criar o mundo’» – apesar de, outrora, ter sido ele mesmo quem “mais ousadamente exprimiu a religião do panteísmo na Alemanha, que mais sonoramente anunciou a santificação da natureza e a reinserção do homem em seus direitos divinos”- Tendo regressado, numa idade mais avançada, à sua fé original (a fé católica), Schelling renega, dessa forma, a sua própria doutrina, deixando “o altar que ele mesmo consagrou”, quando era mais jovem. 

Na opinião de Teófilo Braga, a poesia da “eschola satanica” de Byron – que Heinrich Heine cultivou – não floresceu em “Portugal, paiz essencialmente catholico”[6], onde “a melancholia lamartiniana pendeu mais para o hymno religioso do que para a imprecação da dúvida e do desespero”. No entanto, quando Júlio Dinis adapta o poema de Heinrich Heine em análise à língua portuguesa, também demonstra a sua simpatia por essa poesia da escola de Byron, ainda que, até certo ponto, intente moderar, na sua adaptação, os elementos que permitem caracterizá-la como satânica. Contudo, na nossa opinião, essa intenção moderadora revela mais acerca do temperamento do nosso autor[7] do que acerca de possíveis convicções religiosas. Se meditarmos, por exemplo, o poema «Profissão de fé» (composto em 22 de abril de 1860), onde Júlio Dinis menciona a “luta” travada no seu “coração” que “em vão se defende da ignota prisão” – uma luta que se espelha imageticamente nas “chamas ocultas”, que, sepultadas na “alma” do poeta, ardem numa “ara sem Deus” –, poderemos aferir que não teriam sido as convicções religiosas de Júlio Dinis que o teriam levado a moderar, na sua adaptação, os elementos que permitem caracterizar essa composição poética de Heinrich Heine como satânica. Na nossa visão, essa alteração teria sido efetuada, principalmente, porque o poeta português demonstra sempre grande respeito pela “tradição popular em Portugal[8] e, consequentemente, pela religiosidade popular portuguesa[9] – como se pode aferir pela leitura da seguinte passagem extraída do conto (ou novela) «Uma flor de entre o gelo», que integra Serões da Província:


As romarias! as romarias! gratas recordações, únicas talvez, daquela pobre gente da serra! As horas rápidas de gozo, que um só desses dias de festa lhe dá, compensam-lhe de sobra as continuadas fadigas da vida tão trabalhada e penosa. Em torno à pequena ermida, onde cada ano afluem de tão longe essas piedosas peregrinações de devotos, parece esvoaçar de contínuo uma turba de espíritos alados que nos segredam histórias de tantos amores, nascidos ali e ali santificados, junto ao altar onde as dádivas votivas dos menos esperançados se amontoam, a velar pelo seu destino e propiciar-lhes o Céu.


[1] Na grafia atual.

[2] A definição dogmática da “doutrina da Imaculada Conceição da Mãe de Deus”, que estabelece que Maria foi concebida sem mancha de pecado original, foi promulgada pelo Papa Pio IX, na Bula Ineffabilis Deus, em 8 de dezembro de 1854. Quatro anos mais tarde, em 1858, aconteceram as aparições de Lourdes. A Igreja encarou então esses acontecimentos como sendo uma confirmação do dogma.

[3] Lefevere justifica as razões que teriam levado Heine a esta conversão ao protestantismo – que, na sua opinião, não conseguiu atingir os seus fins –, inserindo-a numa brevíssima biografia, nos seguintes termos: “Born Harry Heine in Düsseldorf, probably 13 December 1797, of Jewish parents. He went to various schools, including one Hebrew and some Catholic, and from 1814-15 to a business school. After he had been an apprentice banker, then an apprentice grocer, in Frankfurt (1815), Heine worked in his uncle Salomon’s bank in Hamburg, and in 1818 was set in a cloth business that went bankrupt in 1819. From then until 1825 he studies law at the universities of Bonn, Berlin and Göttingen, emerging from this last as a doctor of law. In 1825, thinking to facilitate an establishment career, he was baptized a Protestant with the name Christian Johann Heinrich Heine, but his revolutionary opinions hindered professional progress in Germany. From 1825 he travelled and wrote – literary works as well as journalism – in Germany, England and Italy, settling definitively in Paris in 1831 and marrying a Frenchwoman in 1841. In Paris he was bed-ridden after 1848 with paralysis resulting from spinal tuberculosis, but continued writing poetry and political and other essays. He died 17 February 1856 in Paris”.

[4] Em conformidade com o afirmado – imprecisamente – por Heinrich Heine, na passagem supracitada. Teísta seria, naturalmente, o termo correto.

[5] Como salienta Martin Bollacher, Heinrich Heine – na obra Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland (1834), que integra o ensaio em análise – defende ser o espinosismo “‘a religião oculta da Alemanha’” (“‘die verborgene Religion Deutschlands’”). A discussão em torno do espinosismo, enquanto filosofia do hen kai pan, ou doutrina panteísta – como foi encarada a doutrina de Espinosa pela maior parte dos seus adeptos, nos séculos XVIII e XIX –, na Alemanha, envolveu nomes como o de Lessing, Jacobi, Mendelssohn, Herder ou Goethe.  

[6] Diferentemente de Teófilo Braga – que, como vimos acima, considerava Portugal, em 1869, um ‘paiz essencialmente catholico’ –, Ramalho Ortigão (1836-1915), em As farpas, descreve as tendências religiosas dos portugueses do seu tempo, nos seguintes termos: “Em religião os cidadãos portuguezes dividem-se em uma infinidade de categorias diversas […] os livres pensadores […] os indiferentes […] os deístas […] os christãos, e por último os catholicos. Estes separam-se uns dos outros por tantas differenças de opiniões quantos são os indivíduos agremiados na Igreja […] Devemos mencionar ainda os philosophos espiritualistas, que em religião cultivam a duvida […]”.

[7] Essa característica temperamental de Júlio Dinis é confirmada, por exemplo, nas seguintes asserções, extraídas da rubrica «Noticiario» do Jornal do Porto [12 de setembro de 1871 (terça-feira)]: “Joaquim Guilherme Gomes Coelho expirou esta madrugada á 1 hora […] Como Soares de Passos, de quem foi amigo, Gomes Coelho deixa uma lacuna difficil de preencher na nossa literatura […] Observador profundo, enamorava-se do que havia de bello na alma popular [sublinhado nosso] e deixava no escuro as miserias que ennegrecem a vida. Comprehendia que a litteratura tinha uma sacrosanta missão e nunca manchou a sua penna nas torpezas da comedia humana”. Segundo Alberto Pimentel, que em 1871 já dirigia o Jornal do Porto (tendo sucedido a Ramalho Ortigão), as palavras acima transcritas são de Sousa Viterbo, então “colaborador effectivo do mesmo jornal”. No original, porém, não se encontra qualquer referência ao autor desta notícia do falecimento de Júlio Dinis.

[8] Veja-se, por exemplo, o que Júlio Dinis escreve sobre a “tradição popular em Portugal”, logo no início do capítulo I de uma das suas Crónicas da AldeiaOs Fidalgos da Casa Mourisca.

[9] No capítulo XXV da Crónica da Aldeia referida na nota anterior, por exemplo, Júlio Dinis associa a religiosidade popular portuguesa aos ‘instintos poéticos’ do povo, quando escreve: “A capelinha, erigida sob a invocação de Santa Luzia, um dos nomes de mais devoção entre os do florilégio cristão, pousava sobre a colina em uma dessas situações que o povo, com seus instintos poéticos, costuma escolher para assentar esses modestos monumentos da sua fé e piedade”. Nessa associação, pode, eventualmente, encontrar-se a principal razão por que o nosso autor demonstra sempre grande respeito pelas festas religiosas.


Sobre a temática acima exposta, cf. GRIEBEN, Fernanda – Júlio Dinis, apologista da Kunstreligion:  influência de uma corrente de pensamento europeu no percurso literário dinisiano. Lisboa : Universidade Aberta, 2016. Tese de doutoramento.  Disponível em https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/5717


Fernanda Alves Afonso Grieben

[email protected]

Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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