Júlio Dinis em Ovar


Ovar no percurso literário dinisiano


Resumo: No presente estudo, é esboçada uma breve análise comparativa entre duas “Cartas literárias” de Júlio Dinis – intituladas “Acerca de várias coisas” e “Impressões do campo” – e as cartas particulares do autor, dirigidas de Ovar a familiares e amigos.

As duas referidas “Cartas literárias” – que foram primeiramente publicadas sob a forma de folhetins, no Jornal do Porto, e assinadas com o pseudónimo Diana de Aveleda – são particularmente relevantes no que diz respeito à forma como Ovar teria inspirado artisticamente o autor das três Crónicas da Aldeia: As Pupilas do Senhor Reitor, A Morgadinha dos Canaviais e Os Fidalgos da Casa Mourisca. Contudo, sob este aspeto, esses textos programáticos ainda não despertaram a devida atenção da crítica literária.


Palavras-chave: Literatura Portuguesa; Júlio Dinis (Diana de Aveleda); Cartas Literárias; Crónicas da Aldeia; Ovar. 


1. Diana de Aveleda e Gomes Coelho: impressões recolhidas na região de Ovar. Diana de Aveleda é o pseudónimo literário que foi adotado por Joaquim Guilherme Gomes Coelho (mais conhecido pelo pseudónimo Júlio Dinis) enquanto autor de oito “Cartas literárias”, que integram a obra Inéditos e Esparsos[1], de Júlio Dinis. Cinco dessas Cartas, todas elas de teor programático, foram primeiramente publicadas sob a forma de folhetins: três em O Jornal do Porto (“Coisas verdadeiras”, em 25 de fevereiro de 1863; “Acerca de várias coisas”, em 28 de maio de 1864; e “Impressões do campo”, parte I e II, em 1 e 21 de agosto de 1864, e parte III, em 11 de janeiro de 1865), uma no semanário “Mocidade” (“Amas, mestras e maridos”, em 10 de julho de 1867), e outra em Jornal do Porto (“A ciência a dar razão aos poetas”, parte I e II, em dezembro de 1879, embora tivesse sido escrita em 1864[2]).

As Cartas intituladas “Acerca de várias coisas” e “Impressões do campo” são particularmente relevantes no que diz respeito à forma como Ovar – onde Gomes Coelho permaneceu durante alguns meses, em 1863 – teria inspirado artisticamente o autor das três Crónicas da Aldeia: As Pupilas do Senhor Reitor, A Morgadinha dos Canaviais e Os Fidalgos da Casa Mourisca.Contudo, sob este aspeto, essas duas Cartas ainda não despertaram a devida atenção da crítica literária.

Na Carta intitulada “Acerca de várias coisas”, Diana de Aveleda – dirigindo-se ao redator do Jornal do Porto (nessa altura, Ramalho Ortigão) – exalta a vida do campo e defende que o contacto direto com a natureza pode até alterar as “predileções literárias” de uma citadina, como ela própria, habituada a ler as obras de autores que são muito apreciados nesse tempo (como Victor Hugo, Alfred de Vigny, François Ponsard, Alexandre Herculano, Lord Byron, ou mesmo Honoré de Balzac), mas não conseguem transmitir, através da sua escrita literária, nada que se assemelhe às vivas impressões que Diana de Aveleda diz ter recolhido numa estadia no campo, que se prolongou por alguns meses[3]. Atentemos no que escreve a esse respeito:  


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Ai o campo! o campo!

Há um ano fui eu lá passar alguns meses. Aconselharam-mo os facultativos […].

Era também em plena Primavera! O campo estava esplendidamente verde, o céu magnificamente azul.

Que madrugadas! Que crepúsculos! Como eu me sentia bem no meio de tantas maravilhas! Como se me inoculava a vida da natureza inteira! […]; aquelas criancinhas loiras e meias nuas que me surgiam de toda a parte, como espontâneas produções do campo, a rirem por entre os silvados em que colhiam amoras, do meio das searas onde pareciam flutuar em um oceano de verdura, a espreitarem-me da copa frondosa dos carvalhos e castanheiros, como estas cabeças de querubins que marchetam o pedestal de nuvens de Nossa Senhora da Conceição; a saudarem-me, batendo as palmas quando me viam passar pela margem dos pequenos rios, onde se banhavam nuas, tudo isto, meu caro redactor, me deliciava; tudo isto operou em mim uma metamorfose completa.[4] 


Recordemos que o texto desta Carta foi redigido em maio de 1864. Logo, esses meses que Diana de Aveleda diz ter passado no campo, “há um ano”, só podem ter sido passados em Ovar, onde Gomes Coelho (Júlio Dinis ou Diana de Aveleda) chega no dia 7 de maio de 1863, em plena primavera, como ele próprio testifica, na primeira carta particular que escreve, nesse mesmo dia, a sua sobrinha (e afilhada) Ana C. Gomes Coelho[5].

Numa segunda carta, também dirigida a Anitas, no dia 16 do mesmo mês, lê-se ainda o seguinte: “A manhã de hoje está excelente para passeio e eu vou ver se as minhas pernas se convencem a transplantar-me até qualquer parte que elas queiram. Coitadas! Ainda estão um pouco ressentidas de uma passeata que eu lhes obriguei a fazer a noite passada a um quarto de légua da vila [Ovar], de onde voltei à meia-noite para casa”[6]. Assim sendo, seria nesses passeios, realizados na região de Ovar, em 1863, que Gomes Coelho iria recolher as impressões que descreve no ano seguinte, sob o pseudónimo Diana de Aveleda, nas duas “Cartas literárias” acima referidas: “Acerca de várias coisas” e “Impressões do campo”. Na parte I desta última Carta – dirigida a uma amiga fictícia, de nome Cecília –, escreve Diana de Aveleda, a certa altura:


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Pobres crianças! Contava muitos amigos neste pequenino povo, não fazes ideia. Tinha entre eles uma popularidade! Basta que te diga que já me saudavam pelo nome quando me viam passar e todas as manhãs me vinham trazer raminhos de malmequeres, margaridas e violetas silvestres, ufanas com o presente e orgulhosas pelo prazer com que eu o recebia.[7]  

Esta descrição também se harmoniza com o que afirma Gomes Coelho numa carta particular, dirigida a D. Rita de Cássia Pinto Coelho (sua prima e madrinha), em 13 de julho de 1863, onde as flores do campo são símbolo das impressões que o poeta recolheu durante a sua estadia em Ovar:

[…], na última carta sua disse-me que voltasse breve para o Porto e que não levasse muitas saudades de Ovar. Essas, peço-lhe agora que mas deixe levar num cantinho da bagagem […]. Deixe-mas levar; é um pequeno ramo de flores silvestres que destino ao meu cofre de recordações; pouco lugar ocupam e o perfume que exalam é tão disfarçado e subtil que poucos o perceberão. Há flores assim que só os sentidos muito delicados lhes reconhecem o perfume e, se certos sentimentos se podem dizer flores da alma também nem todos os sentidos interiores estão indicados para os pressentir.[8]    


Permanecendo em Ovar, por falta de saúde e a conselho dos “facultativos” (o mesmo motivo que leva Diana de Aveleda a passar alguns meses no campo), Gomes Coelho regressa à sua cidade natal revigorado.  No entanto, a verdadeira transformação por que passa não é a nível físico, mas anímico. À semelhança do que acontece com Diana de Aveleda, é principalmente a presença dessas “criancinhas loiras e meias nuas”, que surgem “de toda a parte”, “como espontâneas produções do campo”, que vai operar em Gomes Coelho uma “metamorfose completa”, que viria a refletir-se na sua visão do mundo e, consequentemente, na sua produção literária.


2. Ovar e a carreira literária de Júlio Dinis. Quando Gomes Coelho chega a Ovar, pela primeira vez, tem vinte e três anos de idade, e a sua carreira literária já iniciara dois anos antes, mais concretamente, em 18 de março de 1861, com a publicação do poema intitulado “A J.”, que é assinado com o pseudónimo Júlio Dinis, num “periódico de poesias inéditas”, A Grinalda. É também com esse pseudónimo que o médico-poeta assina, de 11 de março de 1862 a 7 de fevereiro 1863, os três primeiros contos que publica sob a forma de folhetins no Jornal do Porto: “As apreensões de uma mãe”, “O espólio do senhor Cipriano” e “Os novelos da tia Filomela” (que, juntamente com o conto “Uma flor de entre o gelo”, viriam a integrar, em 1870, a primeira edição da antologia Serões da Província).

Paralelamente, é publicada nesse mesmo jornal portuense, em 25 de fevereiro de 1863, a primeira “Carta literária” dinisiana (intitulada “Coisas verdadeiras”), que Gomes Coelho assina então com o pseudónimo Diana de Aveleda. Este pseudónimo é escolhido por razões meramente estratégicas: sendo essa primeira Carta dirigida ao redator do Jornal do Porto (Ramalho Ortigão) com o intuito de criticar o conteúdo de um folhetim (intitulado “Coisas inocentes”) por ele anteriormente publicado, onde o papel da mulher na sociedade é apresentado de uma perspetiva com a qual Gomes Coelho não concorda, decide este assinar a sua carta com um pseudónimo feminino, assegurando, assim, uma posição que lhe permite defender o que considera ser a verdadeira imagem da Mulher, de uma forma insuspeita. E esta é uma postura que Gomes Coelho vai manter nas restantes sete cartas que continua a assinar com esse nome falso.

Saliente-se, porém, que nas duas Cartas seguintes (intituladas “Acerca de várias coisa” e “Impressões do campo”), que são publicadas de 28 de maio de 1864 a 11 de janeiro de 1865, outra temática se sobrepõe. Agora, são a paisagem campesina e a vida dos camponeses, com os seus costumes e tradições – especificamente, as impressões recolhidas durante a sua primeira estadia em Ovar[9] –, o que principalmente move o médico-poeta a escrever.


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A imagem da Mulher que Diana de Aveleda anteriormente defendera também se apresenta agora enriquecida por essas impressões recolhidas por Gomes Coelho na região de Ovar. E, neste sentido, é significativo que a Carta intitulada “Impressões do campo” já não é dirigida ao redator do jornal, como as duas anteriores, mas a sua primeira destinatária é uma figura fictícia, de nome Cecília, que Diana de Aveleda apresenta como sendo uma mulher citadina, sua amiga, que representa – por contraste com as camponesas, nomeadamente as lavadeiras e cantadeiras – a seguidora da “moda”, a quem “o espartilho comprime”. Efetivamente, é esse mesmo espartilho que, influindo muito “no carácter moral das mulheres”, as impede de “dar largas” à sua bondade natural. Por isso, Diana de Aveleda aconselha Cecília a “ir ao campo”, não só para que os “ares do campo” a curem dos hábitos doentios da cidade, mas também para sentir “a grandeza” das “inspirações” “que se recebem no campo”. Este conselho, aliás, é estendido a todos os “artistas” – “poetas, pintores e músicos” –, que se encontram nas “praças do Porto”, estacionam nas “lojas mais concorridas” ou nos “teatros” e frequentam os “cafés”, mas que “só por uma casualidade de que eles próprios se admiram” se encontram “no campo, na presença desses magníficos espectáculos da natureza que os inspirariam, a escutarem as lições desta grande mestra da arte…”[10].

Ainda nessa mesma Carta, Diana de Aveleda descreve alguns desses magníficos espetáculos, em que natureza e ser humano formam um todo harmonioso. Um desses “espectáculos”, onde se espelha a “simplicidade do viver campesino”, e a “natureza humana” revela de forma espontânea a sua predisposição para a alegria (que contrasta com “o sentimentalismo e vaporosa melancolia das cidades”, inventado e propagado por “romancistas e poetas” românticos) é o das “lavadeiras”[11], que é descrito nos seguintes termos:


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No caminho que eu frequentemente seguia nestes meus passeios matutinos há uma pequena ponte de pedra de dois arcos, por baixo da qual corre mansamente o rio da aldeia. Rio sem nome! Por isso mesmo eu lhe queria. Não compreendes isto? Um rio sem nome, um rio que não vem nas cartas geográficas, virgem das explorações e estudos dos engenheiros hidráulicos, conservando toda a poesia dos primeiros tempos!… É quase um tesouro oculto e tem não sei quê de misterioso que, por isso mesmo, me atraía.

As margens elevam-se, de um e outro lado, em suavíssimos declives, orlam-nas renques de álamos aos quais as vides se abraçam estreitamente, debruçando-se depois em viçosos festões a tocarem quase na água. Pequenas ilhas, todas floridas e ramosas, agrupam-se na mais graciosa miniatura de arquipélago, que se pode conceber.

Nesta parte do rio e àquela hora da manhã era certo encontrarem-se, a lavar e a cantar, as mais bonitas raparigas do sítio e tão desafogada e jovialmente o faziam que comunicavam alegria aos mais hipocondríacos.[12]


É um belíssimo quadro realista, este que nos pinta Diana de Aveleda (Júlio Dinis). E é esta beleza real (privilegiada pelo Realismo Poético alemão[13]) que nos permite distinguir a posterior produção literária dinisiana (contos, romances ou poesia) da anterior à sua primeira estadia em Ovar, em 1863. A partir daqui, Júlio Dinis assume uma posição estético-literária que o próprio irá teorizar, mais tarde, nalguns escritos. Vejamos, a título de exemplo, o que regista numa nota redigida por seu próprio punho, no Funchal, em novembro de 1869: “Concebe [um autor] uma ideia que quer desenvolver por um romance. Cria as personagens entre quem se deve passar a acção, dota cada qual com o seu carácter próprio e individual, carácter escolhido e estudado na vida real. Coloca-as num mundo de todos conhecido; dá-lhes para meio de acção os meios ordinários; ilumina o quadro com a esclarecedora luz da realidade, que dissipa os mistérios” [14]. E eis “o escritor consciencioso que vos comove com os recursos naturais que lhe fornece a observação do homem […]”[15].


3. Ovar e o poema intitulado “O bom reitor”. Um facto que também confirma que o conteúdo da Carta “Impressões do campo”, assinada por Diana de Aveleda, tem por base as impressões recolhidas por Gomes Coelho durante a sua estadia em Ovar, em 1863, é a inserção do poema intitulado “O bom reitor” no final da primeira parte dessa mesma “Carta literária”.

Com efeito, o referido poema já se encontra esboçado (pouco diferindo da sua versão final) num manuscrito de Júlio Dinis, que não apresenta uma data, mas que tem, logicamente, de ter sido redigido antes de 1 de agosto de 1864 (data da primeira publicação da Carta, sob a forma de folhetim).

Uma análise comparativa entre esse manuscrito e as três Crónicas da Aldeia, de Júlio Dinis, faculta-nos uma melhor compreensão da forma como o escritor teria construído as suas narrativas literárias (construção essa que, assentando em apontamentos da observação do real, se vai efetuando por fases, em que o estilo é depurado, o enredo alterado e até o nome das personagens é repensado), ao mesmo tempo que nos permite colocar a hipótese de A Morgadinha dos Canaviais e os Fidalgos da Casa Mourisca[16] terem sido, numa primeira fase, concebidos como uma única Crónica da Aldeia.

No que diz respeito às Pupilas, por outro lado, não chegou até nós nenhum manuscrito que nos elucide acerca do processo que teria presidido à sua composição. No entanto, é o próprio autor quem nos assegura (numa nota não datada, colhida de um livro manuscrito), que as principiou a escrever “em Ovar (1863) durante os meses de Julho e Agosto”, tendo, mais tarde, alterado bastante o romance, ampliando-o e “introduzindo-lhe personagens e capítulos novos”, para o publicar de março a julho de 1866, em folhetins, no Jornal do Porto.

Assim sendo, para compor as suas três Crónicas da Aldeia, Júlio Dinis ter-se-ia inspirado em Ovar e em figuras vareiras, com quem teria convivido de perto. O propósito de situar a ação dessa projetada Crónica da Aldeia em Ovar está bem claro no manuscrito, já que o nome da antiga vila é mencionado, por duas vezes, no capítulo I – intitulado “D. Doroteia” –, nas seguintes passagens:


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[…] O solar da septuagenária, representante de tantos nomes ilustres, ficava situado nos subúrbios da vila de Ovar, pátria da nobre fidalga, e onde seu pai foi capitão-mor em tempos cuja memória arrancava, a cada passo, do peito de D. Doroteia um suspiro de saudosa significação.[17]


Logo ao princípio da noite, às horas em que, quando o vento não era contrário, chegavam à solidão do solar da morgada os sons das ave-marias da igreja de Ovar, a mesa puxava-se para junto do canapé, os habituais convivas acercavam-se dela e a criada trazia os preparativos do chá.[18]


O nome Doroteia, que figura no título do primeiro capítulo dessa projetada Crónica da Aldeia (da qual só existem seis capítulos), tê-lo-ia Júlio Dinis, posteriormente, atribuído a uma personagem diferente: a que desempenha o papel de tia de Henrique de Souselas, na Morgadinha. Contudo, se, lendo esse primeiro capítulo na íntegra, se substituir “D. Doroteia” por “D. Luís”, o velho fidalgo da Casa Mourisca, facilmente se poderá reconhecer que se encontra aqui o gérmen dessa terceira Crónica da Aldeia dinisiana. Os restantes cinco capítulos, porém, teriam sido principalmente aproveitados para compor a Morgadinha. Num deles, o IV, intitulado “Valentim”, surge, então, o poema “O bom reitor”, que inicia com os seguintes versos: “Sabem a história triste / Do bom reitor? / Mísero! toda a vida / Levou com dor”[19].


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No manuscrito, o poema é recitado por Valentim, um jovem em preparação para o sacerdócio – que o apresenta como “uma elegia sobre o túmulo de um padre” –, a pedido de uma jovem, de nome Laura, que o indaga acerca das suas “predilecções literárias”. Valentim diz ignorar o autor das “singelas quadras”, mas, na realidade, elas “lhe haviam sido ditadas pelo coração junto ao túmulo onde tantas vezes parou, a meditar no seu destino”[20], e são a expressão poética de um conflito interior, vivido por quem as compõe, e se interroga sobre o sentido de uma vida de abnegação, inteiramente dedicada ao sacerdócio ( – “Quem sabe se o pobre reitor, se existiu, como creio, se julgava a si mesmo infeliz! O poeta imaginava-o assim, porque o imaginou por si” [21], diz Laura a Valentim, comentando o poema que escutara).


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Na Carta “Impressões do campo”, Diana de Aveleda, por sua vez, afirma que os “versos” que transcreve (que formam o poema “O bom reitor”) foram copiados da sua “carteira”, onde os escrevera “com mão trémula e em sobressalto”, depois de os ter descoberto, gravados a lápis, numa das paredes de uma “casa arruinada”, que teria sido, noutros tempos, uma residência paroquial[22]. E numa atitude idêntica à de Valentim, diz ignorar o autor dos versos, acrescentando, contudo, que deve ter sido alguém que, passando por aquelas ruínas, “se sentiu”, como ela, “arrebatar pela mesma série de pensamentos, dominar pela mesma ordem de impressões”. Este acrescento não só traduz uma opinião semelhante à exteriorizada por Laura no manuscrito, como também confirma que a poesia – a que anda “ligada uma das mais profundas e indeléveis impressões” que Diana de Aveleda diz ter trazido do campo[23] – exprime somente o sentir do poeta, nada dizendo sobre os sentimentos ou ambições do “bom reitor”, em cuja vida se inspira (ou, mais propriamente, no que acerca dela se conta). O que está em questão para o poeta, ou para Diana de Aveleda, são “os destinos do padre, não do padre vulgar e prosaico que vemos todos os dias; mas do padre ideal[24], irrealizável talvez como a gente concebe e como quase acredito que já não existe”[25].


Para terminar, e no que diz ainda respeito à forma como Ovar inspirou artisticamente o autor das três Crónicas da Aldeia, há um aspeto que convém mencionar, por ser o próprio Gomes Coelho quem o realça, numa carta dirigida a seu amigo Custódio de Passos, em 3 de junho de 1863. A carta inicia com as seguintes declarações:

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Recebi a tua carta ainda na vila de Ovar, o que deve causar estranheza a quem saiba, como tu, que as primeiras impressões que recebi, chegando a esta terra, estavam muito longe de serem convidativas de tão longa demora.

Mas é que, felizmente, as impressões não são as mesmas hoje do que eram então. Ovar é uma vila e é uma aldeia. Pode-se aqui viver segundo as predilecções de cada um, uma vida de cidade pequena, ou uma vida de aldeia. No primeiro caso frequentam-se os salões da localidade, discute-se o que faz a Câmara, o que disse o administrador […]; no segundo assiste-se às lavouras, às ceifas, às regas; conversa-se com os jornaleiros sobre as novidades agrícolas, escuta-se o estalar das cascas nas fogueiras […].

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Nos primeiros dias que passei aqui tive de viver do primeiro modo, aborreci-me; agora felizmente que me deixaram viver do segundo, […].

Tu […] que tantas vezes fizeste diante de mim a apologia da aldeia, não estranharás por certo estes gostos campesinos, que me têm conservado por aqui esquecido dos tempos da cidade […].

Pelo menos, se os estranhas em mim, deves compreendê-los por ti.[26]


Como se pode verificar, pela leitura das passagens acima transcritas, é a “vida de aldeia”, em Ovar, que desperta em Gomes Coelho os “gostos campesinos”, que até aí lhe eram estranhos (mesmo que já tivesse conhecido, anteriormente, a vida de aldeia  noutras localidades), mas que viriam a marcar, de forma decisiva, a sua posterior produção literária.


[1] DINIS, Júlio (pseud.) – Inéditos e Esparsos. In Obras de Júlio Dinis. Porto :  Lello & Irmão, [1977], vol. 2, pp. 521-1333.

[2] Júlio Dinis faleceu em 1871. Nessa altura, assim como em 1879, o redator de Jornal do Porto já era Alberto Pimentel, que sucedeu a Ramalho Ortigão, que recebeu as duas partes da referida Carta em 1864, mas resolveu não as publicar.

[3] Cf. Ibidem, pp. 706-708.

[4] Ibidem, pp. 707-708.

[5] Cf. Ibidem, p. 781.

[6] Ibidem, p. 782.

[7] Ibidem, p. 717.

[8] Ibidem, p. 806.

[9] Em conformidade com uma nota manuscrita, de Júlio Dinis, intitulada “Ausências”, a segunda passagem por Ovar ter-se-ia dado em 1864 (Felgueiras, Amarante, Leiria, Alcobaça, Batalha, Nazaré, Aveiro, Ovar), e a terceira e última passagem, em 1867 (Aveiro, Ovar, Vila do Conde, Póvoa), encontrando-se o ano de 1866 em branco: cf. Ibidem, p. 529. Note-se, porém, que existe uma carta particular escrita por Gomes Coelho, em Ovar, em 22 de setembro de 1866. Também existe uma outra carta redigida em Aveiro, em 17-09-66. Ambas são dirigidas a Anitas, sobrinha e afilhada do autor: cf. Ibidem, pp. 789-790. No dia 10 de outubro de 1866, contudo, Gomes Coelho já se encontra em sua casa, no Porto, e doente. É o que se pode concluir do que escreve a seu amigo Custódio de Passos, nesse mesmo dia: cf. Ibidem, p. 862.

[10] Cf. Ibidem, pp. 718-719.

[11] Cf. Ibidem, p. 717.

[12] Ibidem, pp. 717-718.

[13] Sobre este assunto, cf. GRIEBEN, Fernanda – Júlio Dinis, apologista da Kunstreligion:  influência de uma corrente de pensamento europeu no percurso literário dinisiano. Lisboa : Universidade Aberta, 2016. Tese de doutoramento.  Disponível em https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/5717

[14] DINIS – Obras, vol. 2, p. 545.

[15] Ibidem, p. 546.

[16] Na esteira de Egas Moniz, é por vezes apontado, por alguns investigadores, que o manuscrito acima referido teria estado na origem de As Pupilas do Senhor Reitor e de A Morgadinha dos Canaviais. Uma análise comparativa entre o manuscrito e as três Crónicas da Aldeia de Júlio Dinis revelou-nos, contudo, os resultados que só muito sinteticamente aqui podemos apresentar, por não ser esse o objetivo primeiro da presente investigação.  

[17] Ibidem, p. 643.

[18] Ibidem, p. 644.

[19] Cf. Ibidem, pp. 662-663.

[20] Cf. Ibidem.

[21] Ibidem, p. 664.

[22] Cf. Ibidem, p. 722.

[23] Cf. Ibidem, p. 724.

[24] Na nossa visão, essa imagem do Padre ideal desempenha um papel de enorme relevo no universo diegético do romance A Morgadinha dos Canaviais. É através dela que melhor podemos compreender a posição crítica que Júlio Dinis assume em relação aos missionários, nessa sua Crónica da aldeia, ou a forma como Augusto (personagem a quem Valentim, do manuscrito, serviu de base) assume a sua falta de vocação para o sacerdócio.

[25] Ibidem, p. 721.     

[26] Ibidem, p. 848.


O estudo aqui apresentado foi originalmente publicado no jornal “João Semana” com um título diferente, em três partes (que correspondem ao corpo do texto dos três itens em que o presente estudo se divide), em 15 de fevereiro, 15 de março e 15 de abril de 2018: cf. GRIEBEN, Fernanda – Gomes Coelho e Diana de Aveleda (Júlio Dinis) falam da mesma Ovar. In “JOÃO SEMANA”. QUINZENÁRIO OVARENSE. 104:4 (2018), p. 8 ; 104:6 (2018), p. 8 ; 104:8 (2018), p. 8.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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