Ginkgo Biloba (VIII)


EU SOU a árvore que Goethe cantou


VERÃO


Começou o verão.

As minhas folhas, que na primavera tinham brotado de um verde-claro e suave, revestiam-se agora, com a intensidade dos raios solares, de um verde vivo e brilhante. Aqui e ali, nesta ou naquela folha, um tom leve de amarelo se misturava, impregnando a minha folhagem de um ar alegre e quente, como se os raios de sol, penetrando-a, tivessem deixado nela a sua própria cor.

Para uma árvore Ginkgo, não há estação do ano mais bela do que esta, em que o Sol é intenso, os dias compridos e as noites românticas. E esse meu primeiro verão no parque foi um verão inesquecível.

Era meio-dia em ponto.

O Sol brilhava em todo o seu esplendor, e um pequeno raio de luz acabava de chegar até mim. Aproximando-se de uma das minhas folhas, cumprimentou-a, e perguntou-lhe admirado:

– És nova aqui no parque?!

– Não! – respondeu-lhe a folha. – Já nasci na primavera, como as minhas irmãs.

– Interessante! – exclamou o raio de luz. – Nunca te tinha visto antes…

– É natural que não! Afinal, há um número imenso de folhas neste parque… Porque havias de já ter dado pela minha presença?

– Claro que sim! – retorquiu o raio de luz. – Uma folha como tu é impossível passar despercebida.

A folha corou um pouco de timidez, perante esta afirmação. E perguntou, de seguida, como se não tivesse entendido:

– O que queres dizer com isso?

– Tu sabes o que quero dizer! – respondeu o raio de luz, que não gostava de jogos escondidos. – Porque perguntas?

A pequena folha corou de novo, mas, desta vez, de vergonha, porque tinha sido apanhada na sua vaidade.

O raio de luz, que a compreendeu e não queria fazê-la sofrer, disse então:

– Não leves a mal. Não quis provocar-te. Só que para um raio de luz, habituado a ver tudo claro, iluminado, não é fácil aceitar um diálogo que não seja totalmente aberto e sincero.

– Tens razão – acrescentou a folha.

Depois, ficaram os dois em silêncio, a admirar-se mutuamente.


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Assisti ao seu diálogo muito interessada.

“O que podem ter em comum, um raio de luz e uma folha minha, que os una assim em perfeita comunhão de sentimentos?”, perguntei-me, sem encontrar uma resposta plausível.

O Amor é um sentimento mesmo muito misterioso! Talvez porque ele seja em si mesmo uma procura…

Eu nunca tinha amado outro ser vivo. No entanto, podia compreender bem esse sentimento, que parecia encerrar um poder mágico que lhe originava uma natureza única.

As horas foram passando. O raio de luz continuava admirando a folha, e esta, não dando pelo tempo passar, vivia os momentos mais felizes da sua curta existência.

Veio o entardecer. Lentamente, os raios de sol iam-se retirando para o seu mundo, todos em conjunto. Só um não parecia ter intenções de se juntar a eles. Era o pequeno raio de luz que, depois de grandes promessas de amor eterno, resolvera não voltar para o Sol, mas, sim, permanecer na Terra, com a sua folha amada, até que a morte os separasse. E essa chegaria já no próximo inverno, para a pequena folha…


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– E quando chegar o outono? – perguntava a folha, desesperada. – Vou desprender-me do ramo que me sustenta e, levada pelo vento, cairei no solo enlameado pelas águas da chuva; e entre a lama deste parque permanecerei, esperando com tristeza que as neves frias do inverno venham dar um fim à minha existência…

O raio de sol, que não compreendia que a folha se preocupasse já com o fim da sua ligação feliz, que acabara de nascer, tentava acalmá-la com palavras de esperança e conforto.

– Eu hei de estar sempre contigo! – prometia-lhe ele então.

A folha acreditava e, por alguns momentos, esquecia o seu medo e deixava de se preocupar como o futuro.

Os dias passaram… e, com eles, as semanas e os meses…

O outono, aproximando-se, dava já os seus primeiros sinais, quando, um certo dia – ao meio-dia –, um ser humano, de aspeto muito simpático, se aproximou de mim.

Ficou durante algum tempo a contemplar-me com deleite. Depois, aproximando-se, tocou de leve parte da minha folhagem, que se tinha tornado levemente dourada com a aproximação do outono.

Eu parecia fasciná-lo, e essa sensação agradou-me. Finalmente, tinha de concluir que também existiam seres humanos sensíveis e inteligentes.


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Nisto, pude sentir como os seus olhos se fixaram na minha pequena folha apaixonada. O seu brilho, motivado pela permanência do raio de luz em si, encantou o meu admirador, que não resistiu e teve de a colher.

Mantendo-a entre os seus dedos delicados, acariciava-a com ternura, e eu pude ver como duas pequenas lágrimas, brotando de seus olhos doces, os tornavam ainda maiores e mais brilhantes do que já eram.

Um pouco mais tarde, sentou-se junto do meu tronco. Tirando uma folha de papel do interior de uma pequena pasta de couro, que trazia debaixo do seu braço esquerdo, envolveu nela a minha folha e o pequeno raio de luz, cuidadosamente. De seguida, colocou-a dentro de um envelope, juntamente com a seguinte mensagem:


Para a minha muito querida e estimada Amiga, Marianne von Willemer,

como símbolo da minha Amizade,

           Johann Wolfgang von Goethe

(15 de setembro de 1815)


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Impressionou-me, verdadeiramente, a sensibilidade deste homem que conseguiu, com este gesto que acabava de ter, tornar eterna a união da minha pequena folha e do seu raio de luz, mesmo no início do outono, quando já ambos pensavam que teriam de se separar, dentro em breve, para sempre.

O seu destino, eu não conheço. Mas um sentimento, vindo do mais profundo do meu ser, me diz que, em qualquer lugar, talvez dentro de um livro, eles ainda estão hoje unidos e são tão felizes como no primeiro dia em que se encontraram. E a alegria imensa, que este pensamento me proporciona, permite-me acreditar que, se na minha vida nada mais tivesse feito sentido, só por isto, já valia a pena ter vivido! 

Alguns dias depois, vi ao longe o mesmo homem que, vindo de novo visitar-me, se aproximava de mim. Mas desta vez não vinha só. Ao seu lado, caminhava uma jovem senhora de feições elegantes e finas.

“É por certo Marianne”, pensei. E eu pude compreender que o homem tivesse decidido enviar-lhe a minha folha. Pois me parecia, observando-os, que os dois formavam um par harmonioso e feliz.

Sentando-se junto de mim, o homem começou a escrever um poema numa folha de papel, enquanto a sua Amiga o observava em silêncio.

Segui-o em pensamento, com muita atenção e um tanto perplexa. O poema enaltecia a forma rara das minhas folhas, que o tinham impressionado pela sua beleza…


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Gingo biloba


Dieses Baum‘s Blatt, der von Osten

Meinem Garten anvertraut,

Gibt geheimen Sinn zu kosten,

Wie’s den Wissenden erbaut.


Ist es Ein lebendig Wesen?

Das sich in sich selbst getrennt,

Sind es Zwei? die sich erlesen,

Daß man sie als Eines kennt.     

                                   


Solche Frage zu erwiedern

Fand ich wohl den rechten Sinn;

Fühlst du nicht an meinen Liedern

Daß ich Eins und doppelt bin?[1] 

                (27. September 1815)


[1] GOETHE, Johan Wolfgang von – West-östlichen Divan. Original Ausgabe. Wien ; Stuttgart : Carl Urmbruster ; Gotha’schen Buchhandlung, 1820, p. 125.


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Gingo biloba


A folha desta árvore,

Que do Oriente chegou,

O segredo que encobre,

Foi ao sábio que o revelou.


Será ela um ser único

Que em dois se dividiu?

Serão dois que, por último,

O Amor para sempre uniu?


Escrevendo estes versos,

O seu sentido desvelei:

Não sentes tu, nos meus cantos,

Que sempre uno e duplo serei? [1]

      (27 de setembro de1815)


[1] A adaptação do poema de Goethe à língua portuguesa, acima apresentada, é da minha responsabilidade.


Fernanda Alves Afonso Grieben

[email protected]

Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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