Júlio Dinis, o grande defensor da floresta portuguesa


Se o valor de Júlio Dinis – enquanto escritor de romances e contos (ou novelas) – tem vindo a ser, cada vez mais, justamente reconhecido, a sua produção poética tem sido, imerecidamente, quase ignorada. Identificado como poeta menor, o autor das Pupilas cedo começou a ser negligenciado pela crítica literária. Opondo-se a esse posicionamento crítico, contudo, ergue-se a voz do próprio poeta em composições tão sublimes como, por exemplo, «O carvalho da floresta» – um belíssimo poema, composto em 1867, que narra a história de um velho roble e inicia com os seguintes versos: 


Havia na floresta um roble cheio de anos,

Vestido de era anciã, decano entre os decanos

Dos bosques do arredor. Raízes colossais

Prendiam-no à terra; ao ar descomunais

Os braços elevava, e ao vê-lo assim dir-se-ia

Que aos outros vegetais as bênçãos estendia.


Neste hino à floresta portuguesa – que constitui um excelente exemplo de apelo à defesa do meio ambiente –, o velho roble é apresentado como uma figura que encarna o papel do ancião sábio, daquele que estende as suas bênçãos aos outros vegetais, num gesto solene que assume uma dimensão ético-religiosa. Herói secular e majestoso, o roble vai, porém, cair ao braço do homem, cujo poder destrutivo se revela superior às ameaças do vulcão:

© Maria Brzostowska – stock.adobe.com

Em que tempo nascera esta árvore gigante?

Que época viu crescer o arbusto vacilante,

Curvando-se por terra a cada viração,

Esse que já nem teme ameaças do vulcão?

Quem o pode dizer? Nas trevas se envolvia

A infância do colosso. E quando acabaria?

Que audaz raio do céu, que convulsão fatal

Por terra lançará o enorme vegetal?

Mas, ai, o que a tormenta e o tempo não consomem,

Muitas vezes destrói a ousada mão do homem;

O golpe do machado um dia o derrubou,

E ao braço do homem cai, dos homens o amigo.

Ouvi a narração do caso, que eu prossigo.


E Júlio Dinis prossegue a longa narração, terminando, por fim, com os seguintes versos:


E a vida secular numa hora se extinguiu,

E os obreiros do mal saem dali cantando.

Chega logo depois um turbulento bando

De crianças, que a rir, o tronco sem vigor

Calcam, brincando. E após em práticas d’amor,

Voa rápido o tempo a amantes e esposos

Que ali falando vêm. Depois, velhos, saudosos,

Do tempo que passou por eles em comum,

Sentam-se a conversar. Mas deles, ai, nenhum

Uma lágrima tem para desgraças destas.

Homens, que mal vos fez o velho das florestas?

© smallredgirl – stock.adobe.com

Um final que nos obriga a refletir sobre a grande questão que levanta: que mal nos fez a nós – homens e mulheres – o velho carvalho da floresta portuguesa, para que com tanta falta de respeito o tratemos?


No capítulo XXI de A Morgadinha dos Canaviais, Júlio Dinis também aborda esse mesmo tema que é cantado no poema «O carvalho da floresta». Contudo, nessa Crónica da Aldeia dinisiana, o destino de um pobre carvalho – que é destruído para que uma estrada seja construída – encontra-se associado ao destino de um velho ervanário – Tio Vicente –, ex-proprietário da terra onde a árvore tinha sido plantada, bem tenra, pelas mãos de sua mãe:


– Agora é a tua vez pobre carvalho! – dizia algum tempo depois – muito queria minha mãe àquela árvore! Por suas mãos a plantou bem tenra. Nunca me sentei àquela sombra, que me não lembrasse da santa mulher! Parecia que eram vozes tuas, que ma recordavam, infeliz! Bárbaros! Olha com que desamor a decepam! Perdoa-me, meu velho amigo, mas bem vês que te não posso valer.

E o carvalho caiu.


© Timo – stock.adobe.com

É numa atitude de profunda prostração que Tio Vicente assiste à cena de demolição do carvalho, um velho amigo, a quem costumava escutar. Mas não é só a queda do carvalho que entristece profundamente o ervanário. Cada árvore do seu antigo quintal, sacrificada ao progresso, o ancião vê vacilar e cair, como se fosse um amigo que o precedesse no túmulo, porque a cada uma dessas árvores está ligado algum episódio do seu passado – e o que não tem passado, também não tem futuro:


O ervanário foi sentar-se na encosta de um outeiro vizinho, de onde se divisava toda a cena. Com a cabeça pousada na mão e o braço apoiado sobre o joelho, com voz comovida, dizia adeus a cada árvore, que dali via vacilar e cair, como se fosse um amigo que o precedesse no túmulo. Parecia ter fugido para longe, para pelo menos não lhes ouvir o estertor da agonia. […]

O ervanário sempre que via brilhar o machado sobre uma nova árvore, recordava sentidamente algum episódio do seu passado, a que ela estava ligada.


Sendo «para alguns um sábio, para outros um louco, para todos um homem honrado», o velho ervanário, devido à aura de mistério que envolve a atividade que pratica na aldeia – aura que é fruto da imaginação popular, «sempre afeiçoada ao maravilhoso», como esclarece Júlio Dinis, no conto (ou novela) «O espólio do senhor Cipriano», que integra a coletânea Serões da Província – torna-se num verdadeiro «enigma vivo», representando o ancião sábio que vive em conformidade com as leis da Natureza:   


Os costumes do velho, que errava por vales e montes à procura dos símplices, cujas ocultas virtudes conhecia, as suas maneiras rudes, a austeridade da fisionomia, a franqueza, sem contemplações, com que dizia quanto pensava, tinham gravado fundo na imaginação popular aquele tipo, para ela quase lendário.


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Mas a realidade é que «os progressos materiais» também atingem as aldeias; e embora as suas «obscuras vítimas» mereçam sempre uma «lágrima» – essa lágrima «não importa uma ironia à civilização». Porque é uma lágrima de «compaixão pela violeta dos campos», uma «lágrima de saudade» – e à «civilização» só importa o futuro, não o passado.

No entanto – e ainda nesse mesmo capítulo XXI da referida Crónica da Aldeia –, Júlio Dinis alerta para esta outra realidade: «Quem deveras confia nos destinos da humanidade não tem medo das lágrimas. Pode-se triunfar com elas nos olhos». É um alerta contra a insensibilidade e o desenraizamento. O progresso traz sempre consigo um «vencedor» e um «vencido» – mas, ainda que esse vencedor tenha «um papel providencial a cumprir, e o seu triunfo seja uma obra de redenção», essa obra redentora deveria ser posta em ação de forma mais humanizada.  E para que a construção de estradas sirva, realmente, o bem comum, a «lógica» a seguir deveria ser «a da consciência»; e o vencido não deveria ser sempre aquele que ocupa a posição social mais fraca– como é o caso de Tio Vicente, na aldeia. É o que se pode aferir pela leitura da seguinte passagem, transcrita do capítulo XIV da mesma Crónica da Aldeia


– A casa e o quintal do ervanário são os primeiros cortados.

[…]

– É inevitável. Os dois primeiros traçados tinham certas durezas. O primeiro era uma luva lançada a uma influência eleitoral, poderosíssima; o brasileiro Seabra.

– Ah! – disse Madalena, com certa amargura na expressão e no olhar.

O conselheiro reparou nela e em Ângelo, em cuja fisionomia se não lia menos intenso desgosto.

– Estou adivinhando que meus filhos votariam por que antes se arrostasse com os despeitos desse influente. A lógica do sentimentalismo tem dessas exigências absolutas.

Madalena respondeu:

– Julguei que era a da consciência, meu pai.


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Assim sendo, na visão de Júlio Dinis, preservar o meio ambiente inclui a preservação das relações humanas, culturais e sociais. Também é desta forma que a Carta da Terra – que foi lançada oficialmente no Palácio da Paz em Haia, no dia 29 de junho de 2000 – compreende a preservação do meio ambiente. Os «Princípios» que constam dessa Carta são dezasseis e encontram-se subordinados a quatro temas principais, a saber:


«I. Respeitar e cuidar da comunidade de vida»;

«II. Integridade ecológica»;

«III. Justiça social e econômica»;

«IV. Democracia, não violência e paz».


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E o décimo sexto Princípio da Carta termina com a seguinte advertência: «Reconhecer que a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade maior da qual somos parte».

Também é no sentido de despertar a consciência dos seus contemporâneos para a premência de se estabelecer uma saudável relação com a Terra e com a totalidade maior da qual somos parte que Júlio Dinis compõe o longo poema «O carvalho da floresta».


Retomo no texto acima transcrito, com poucas alterações, partes de dois subcapítulos da minha tese de doutoramento (Júlio Dinis, apologista da Kunstreligion: influência de uma corrente de pensamento europeu no percurso literário dinisiano), defendida em 29 de setembro de 2016 (Universidade Aberta, Lisboa) e disponível, desde 14 de novembro de 2016, em https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/5717


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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