Martin Buber: Amor e Responsabilidade
Deus como Fonte de Vida
Liebe ist Verantwortung eines Ich für ein Du.
Martin Buber – Das Dialogische Prinzip, p. 19.
Amor é responsabilidade de um Eu por um Tu.
Martin Buber – Das Dialogische Prinzip, p. 19.
Respondendo aos seus críticos, escreve Martin Buber, a determinada altura:
What happened to me was that all the experiences of being that I had during the years 1912-1919 became present to me in growing measure as one great experience of faith. By this is meant an experience that transports a person in all his component parts, his capacity for thought certainly included, so that, all the doors springing open, the storm blows through all the chambers.
[…]
I know no other revelation than that of the meeting of the divine and the human in which the human takes part just as well as the divine. […] I possess no security against the necessity to live in fear and trembling; I have nothing but the certainty that we share in the revelation.
Martin Buber– Replies to my critics.
Com efeito, a descoberta de Deus como Fonte de Vida só pode ser realizada por quem se predisponha a esse encontro vital no qual se revela a Criação, estabelecendo-se uma relação entre Deus e o ser humano. Nesta relação, o ser humano desempenha um papel ativo, e não passivo: Deus vem ao seu encontro, e o ser humano vai ao encontro de Deus.
Martin Buber apresenta a relação como algo primordial, como base vital e ponto de partida da existência humana. Sem ela, o ser humano não é. Ou seja, não existe verdadeiramente. Pois uma existência real só é possível quando iluminada pela luz da Verdade, que é Deus.
Que Deus existe, sabe-o toda a criatura no seu interior. Negá-lo é negar-se a si própria. A mentira é filha da insegurança…
Mas porque surge esta insegurança na vida do ser humano? Porque se apodera dele, deformando-o, provocando um caos interior do qual se torna difícil sair?
A relação com Deus é uma relação única para o ser humano. É uma relação que exige a sua entrega total, que não deixa espaço vazio… Ela apodera-se do ser humano, e a sua liberdade parece esgotar-se nela. É por isso que o Tu eterno do ser humano é palavra carregada de muitos sentidos, a mais carregada de todas as palavras humanas. Ninguém a pronuncia do mesmo modo, ninguém a diz com a mesma intenção. E no entanto, “o Tu inato […] só se realiza totalmente na relação com o Tu que, segundo a sua própria natureza, não se pode transformar num Ele”.
Em conformidade com o seu Ser, Deus não pode tornar-se num Ele neutro (Es). Por isso, ninguém pode esquivar-se eternamente a esta relação. Pois, ainda que Deus seja o “totalmente outro”, mesmo assim, está mais perto do ser humano do que o seu próprio “Eu”.
É nesse Tu que o ser humano se torna um Eu. Um Eu que é “a pessoa” (“die Person”), que se observa e descobre como tal, contrariamente ao “ser que vive para si próprio” (“das Eigenwesen”), ou seja, que se fecha à relação. Que se fecha a uma relação inevitável. Porque Deus, diferentemente do homem, está sempre presente.
As consequências são graves e negativas para esse ser humano que se ausenta da realidade para viver no mundo da fantasia. É um mundo pequeno e limitado – é o seu. Um mundo caracterizado pela ilusão do “ter” e do “poder”.
Mas será possível separar simplesmente o ser humano em duas categorias diferentes e opostas?
Não! O que efetivamente existe são “os dois polos da humanidade”. Nenhum ser humano é puramente “pessoa”, como nenhum há que viva sempre e totalmente só para si. Todo o homem vive a duplicidade de um “Eu” que se vai realizando. É um processo ao longo do qual o ser humano segue o seu caminho aguardando, sem procurar, porque o que encontra não é o fim do caminho, mas o seu meio, que é eterno: “É o descobrir daquilo que é ‘o princípio dos princípios, e a origem’ (‘das Ursprünglichste und der Ursprung’)”.
A universalidade de Deus apresenta-se na diversidade dos caminhos que a ele conduzem, e no facto de sempre existir um que está aberto ao ser humano. E faça o ser humano o que fizer, no final, permanece sempre um sentimento que lhe diz: “Teme a Deus!”. E este temer a Deus é o Todo. O Todo que também imprime no ser humano a sua singularidade, que faz dele um filho único de Deus. Porque, “com cada ser humano, surge algo de novo no mundo, algo que ainda não existia, algo ‘sério e único’ (‘Ernstes und Einziges’)”.
Dom e exigência. Só a quem purifica o seu coração (como centro da vontade humana) é dado experienciar a bondade de Deus. No entanto, não a experiencia em consequência de ter purificado o coração, mas porque só no estado de “purificado” ele é capaz de atingir as coisas sagradas.
Aproximando-se do mistério divino, o ser humano experiencia a presença permanente de Deus. É uma Revelação: a luz que ilumina a relação única do Criador com a criatura. Tudo dela depende, pois os prolongamentos das linhas relacionais intercetam-se no Tu eterno.
Nessa relação pura (“in der reinen Beziehung”), o ser humano aprende a Liberdade, numa dependência total do seu Criador, sentindo-se uma “natureza criada e criadora” (“kreaturhaft – und kreatorich”).
Os ímpios (>die Frevler<), que voluntariamente teimam em não purificar o coração, não experienciam a bondade de Deus, nem a relação Eu-Tu. São como números sem rosto que caminham para o nada. São esses os que não sabem – ou não querem saber – que não só o homem precisa de Deus, como também Deus precisa do homem. Se assim não fosse, como seria possível existirem seres humanos? O mundo não é um jogo de Deus, é o seu destino.
Deus espera do ser humano um “sim” à Criação. Espera que ele tenha a boa vontade de dizer Eu, reconhecendo-se filho de Deus, da mesma forma que Jesus o faz: com o Eu “da relação incondicional” (“der unbedingten Beziehung”), na qual o ser humano chama Pai ao seu Tu, de uma maneira em que ele próprio já só é filho, e nada mais do que filho.
A Vida como Fonte de Amor
Uma vida verdadeira é encontro. É encontro de amor. Nós possuímos sentimentos, mas o amor acontece. Os sentimentos vivem no ser humano, mas o ser humano vive no seu amor. No amor que está entre o Eu e o Tu. Pois a verdadeira comunidade não resulta simplesmente dos sentimentos que os seus membros têm uns pelos outros (embora sem eles também não exista), mas sim da reciprocidade da relação viva, centrada na partilha, entre todos eles.
Um encontro humano fracassado (desencontro), designa Buber por “Vergegnung”[1]. No encontro verdadeiro Eu-Tu, “Begegnung”, o ser humano tem de entrar na relação com todo o seu “ser” (“Wesen”). Este encontro verdadeiro caracteriza-se pela reciprocidade. Só assim pode surgir a esfera do “entre” (“Zwischen”) os “seres”(“Wesen”), que ultrapassa a esfera da subjetividade. Esta “esfera do entre”, que Martin Buber também intitula de “reino do entre”, é comparada a uma “força” (“Kraft”) – a força do amor –, a que se chama “espírito”. Desta forma, o espírito não é algo que habite no ser humano, que faça parte do seu “Eu”, mas sim a força unitiva que surge entre o Eu e o Tu, no encontro verdadeiro. Espírito é resposta do ser humano ao seu Tu. Toda a “palavra” (“Wort”) é espírito. Uma vida real, vivida no encontro verdadeiro, é uma vida de diálogo. É um processo dinâmico que exige ser sempre atualizado, pois, “cada Tu no mundo, em conformidade com a sua natureza, está ameaçado de se tornar numa “coisa” (“Ding”), ou de voltar sempre a cair de novo na “dependência das coisas” (“Dinghaftigkeit”). E se é verdade que o ser humano não pode viver sem o “Es” (o mundo das coisas), também é igualmente verdade que, quem vive somente com ele, não é “o ser humano”. Já que, “ser “ser humano” (“Mensch”) significa: ser um “ser” (“Wesen”) para o “ente” (“seiende”) que enfrentamos”. Sendo que, para Martin Buber, “ser” (“Wesen”) é “isso que está dentro de uma pessoa como o que lhe é próprio (‘eigentümlich Angelegte’), isso em que ela está ‘determinada’ (‘bestimmt’) a tornar-se (‘zu werden’)”.
São grandes momentos existenciais, estes em que o ser humano descobre o seu ser. Momentos que se repetem, a níveis cada vez mais altos, nos quais o ser humano se decide, sempre de novo, a transformar-se naquilo que é. Nesta transformação interior, o ser humano é um “ser em devir” (“Werdender”) que decide fundar “uma relação verdadeira” (“ein echtes Verhältnis”) com o mundo – na medida em que defende heroicamente a descoberta que fez, e a decisão que toma contra a sua “consciência quotidiana” (“Alltagsbewusstsein”), e contra aquilo de que não está consciente. Em última instância, o que se procura é aquilo que poderá conduzir ao que “é essencial num ser humano” (“das Wesentliche im Menschen”).
[1] Este termo foi introduzido no léxico alemão por Martin Buber.
BIBLIOGRAFIA:
BUBER, Martin – Das Dialogische Prinzip: Ich und Du; Zwiesprache; Die Frage an den Einzelnen; Elemente des Zwischenmenschlichen. 7. Aufl. Gerlingen: Verlag Lambert Schneider, 1994.
BUBER, Martin – Der Weg des Menschen: nach des chassidischen Lehre. 13. Aufl. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 1999.
BUBER, Martin – Recht und Unrecht: Deutung einiger Psalmen. 2. Aufl. Gerlingen: Verlag Lambert Schneider, 1994,
BUBER, Martin – Replies to my critics. In THE PHILOSOPHY of Martin Buber. Ed. By Schilpp-Friedman. U.S.A.: Open Court, 1967, The Library of Living Philosophers, XII.
BUBER, Martin – Schuld und Schuldgefühle. Heidelberg: Verlag Lambert Schneider, 1958.
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