Martin Buber, um filósofo religioso?…
Considerado filósofo religioso, Martin Mordechai Buber (1878-1965) nunca pretendeu desenvolver uma doutrina, mas simplesmente transmitir uma mensagem, como ele próprio afirma:
I must say it once again: I have no teaching. I only point to something. I point to reality, I point to something in reality that had not or had too little been seen. I take him who listens to me by the hand and lead him to the window. I open the window and point to what is outside. I have no teaching, but I carry on a conversation .
Martin Buber – Replies to my critics.
Para transmitir essa mensagem, Buber usou a linguagem filosófica do seu tempo – sem se considerar, no entanto, filósofo; e usou também uma linguagem teológica – sem ser teólogo[1]. Usou-as como instrumento de comunicação, de diálogo. Um diálogo que, longe de se esgotar em palavras, só se realiza verdadeiramente na aceitação total do Outro, no seu reconhecimento. Um diálogo que não é possível sem a fé no Deus-Pai Criador, no Tu eterno que, em conformidade com a sua própria natureza, não se pode transformar nunca num Ele (es), num objeto. Por isso, ele não se identifica com o deus dos filósofos, nem com o dos teólogos.
É um Deus que não se atinge através de conhecimentos, nem se pode transformar em objeto de estudo. É um Deus que vem ao encontro do ser humano para estabelecer com ele uma relação única de amor.
I have once said that a “He” spoken of God is a metaphor, a “Thou” spoken to God is not one. […] I will explain exactly what I mean. If one speaks of God, one makes Him into an existing being among other existing beings, into an existing being at hand and constituted so and not otherwise. But to speak to God means nothing other than to turn to Him Himself. How is that possible since He is not to be sought more in one direction than in other? Just nothing other is needed than the total turning.
Martin Buber– Replies to my critics.
Uma conversão total é exigida. Conversão que se estende por toda a vida e abarca a totalidade do nosso viver. É dela que nasce o sentido da vida, e é ela que dá a orientação num caminho que se começa sempre de novo. Porque: “com o coração converte-se o ‘olho‘, e, com o novo olhar, surge o sentido daquilo que até aqui parecia sem sentido. Tudo depende da conversão interior; só por ela é que o mundo se converte”.
E Martin Buber, que podemos dizer sobre a sua vida? Que vivências o marcaram? De que forma influenciaram a sua obra?
Nos seus “Fragmentos Autobiográficos”, Buber descreve-nos acontecimentos da sua vida que intitula de “Encontro”. São efectivamente situações de encontro, que nos são descritas de forma muito pessoal, por quem as viveu na intensidade do momento. Parece-nos ser isto o mais próprio de Martin Buber: essa capacidade de viver intensamente a vida, e de a partilhar com quem estiver disposto a entrar com ele em diálogo. Porque mesmo na leitura somos interpelados.
Um desses encontros, gostaríamos de o deixar aqui registado, porque nos parece importante para a compreensão do valor atribuído por Buber ao tema que estamos a tratar. É um encontro que se realiza numa cidade industrial alemã, onde Martim Buber estabelece um diálogo com uns trabalhadores fabris, subordinado ao tema “Religião como Realidade”.
No início do relato dos acontecimentos, Buber elucida-nos sobre as suas intenções, ao tratar esse assunto: “A minha compreensão do tema baseava-se numa simples constatação: >Fé< não é um sentimento na alma do ser humano, mas sim a sua entrada na realidade, na realidade total, sem tirar nem pôr”. Já no final do diálogo, porém, um dos trabalhadores que permanecera o tempo todo em silêncio, dirige a palavra a Martin Buber, afirmando em tom ponderado e lento: “Sei, por experiência, que não preciso dessa hipótese, >Deus<, para conhecer o mundo”. Buber reflecte sobre uma resposta, uma resposta que realmente o seja, e surpreende-se a argumentar, tentando pôr a certeza científica do seu interlocutor em questão: “Que mundo era esse? […] o >mundo dos sentidos< […] qual era o Ser que dava a estabilidade a esse mundo que se podia pôr tanto em questão?” O trabalhador ouve atento, e responde, por fim, no mesmo tom lento e ponderado: “Você tem razão.” Martin Buber observa-o, e compreende, chocado, o que tinha acabado de fazer. Conduzira o homem ao deus dos filósofos, segundo a designação de Pascal, e não a esse Outro, a quem o mesmo Pascal chama o Deus de Abraão, Isaac e Jacob. Mas tinha sido essa a sua intenção? Não! Mas… “Tinha escurecido, já era tarde. No dia seguinte tinha de partir. Não me era possível, como aliás deveria ter feito, permanecer ali, entrar para a fábrica onde o homem trabalhava, tornar-me seu camarada, viver com ele, ganhar a sua confiança no respeitante à sua vida, ajudá-lo a percorrer juntamente comigo o caminho da criatura que aceita a Criação. Só me foi possível responder ao seu olhar.”
Para Martin Buber tudo passa pela vida. Por uma vida vivida à luz da Criação. Uma vida feita de partilha, na qual o ser humano assume a sua parte em responsabilidade. Não é importante “ter razão” (“rechthaben“), “a justiça” (“das Recht“) só pode nascer dessa vida real e partilhada, e não de teorias.
Foi isto o que de mais importante a vida lhe ensinou. Uma vida começada em Viena em 1878 e terminada em Jerusalém em 1965. Uma vida de perguntas e respostas, de procura e encontro. Uma vida em diálogo com o Criador, e com o mundo por ele criado. Este é o espaço que fica à criatura – um espaço sem fronteiras –, o espaço do diálogo, com todas as suas possibilidades de amor partilhado e responsabilidade verdadeira.
[1] BUBER, Martin – Replies to my critics: “I cannot, however, make any of the proposed answers my own. In so far as my self-knowledge extends, I might call myself an atypical man. My aversion to the usual excessive typology probably stems ultimately from this fact.”
BIBLIOGRAFIA:
BUBER, Martin – Begegnung: Autobiographische Fragmente. 4. Aufl. Heidelberg: Verlag Lambert Schneider, 1986.
BUBER, Martin – Recht und Unrecht: Deutung einiger Psalmen. 2. Aufl. Gerlingen: Verlag Lambert Schneider, 1994,
BUBER, Martin – Replies to my critics. In THE PHILOSOPHY of Martin Buber. Ed. By Schilpp-Friedman. U.S.A.: Open Court, 1967, The Library of Living Philosophers, XII.
MARTIN BUBER: Bilanz seines Denkens. Hrgs. von Jochanan Bloch u. Haim Gordon. Freiburg: Herder, 1983.
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