Ginkgo Biloba (II)
EU SOU a árvore que Goethe cantou
Porto de mar
Um enorme alarido e o forte ruído provocado pelo lançamento das pesadas âncoras fizeram-nos entender que o navio em que viajávamos tinha atingido um porto de mar. Mas qual seria? Nenhuma de nós sabia…
As minhas companheiras estavam ansiosas por abandonar o navio e voltar a terra firme. A esperança de poderem sentir de novo as suas raízes espalharem-se e desenvolverem-se livremente num solo profundo, leve e fresco, não as abandonava um único segundo.
Eu, porém, não sabia ao certo o que verdadeiramente desejava…
Quando ainda só conhecia o jardim onde germinara, rodeada de frondosas árvores milenares, também sentia como elas. Mas agora, depois de ter encontrado a aragem, a minha primeira Amiga, como poderia eu ter a certeza dos meus desejos? Ela alargara os meus horizontes. Despertara-me para a vida que existia fora do mundo que eu até ali conhecera…
Seria verdade, seria mesmo verdade que uma árvore não deve viajar?
“A nossa grande missão, minha neta, enquanto árvores deste planeta Terra, é a de sustentar a vida. A nossa, e a dos outros seres vivos que coabitam connosco. Nunca te esqueças disto, para que todas nós possamos continuar a dizer, com orgulho, às nossas netas e netos que não há maior felicidade do que a nossa”, foram estas as últimas palavras que a minha avó materna me dirigiu, quando se despediu de mim.
Antes da minha partida, eu vivia perto dela, a poucos metros de distância. Lá, no mesmo jardim, estava toda a minha família plantada. Éramos uma família enorme, e eu não conhecia uma única árvore que não fosse um familiar meu. Por isso mesmo, também não conhecia nenhuma que pensasse de forma diferente da minha avó…
Subitamente, a caixa de madeira onde nos encontrávamos aprisionadas foi levantada no ar. E o sobressalto que isso me causou obrigou-me a concentrar de novo o pensamento na minha situação real.
Estávamos a ser tratadas de maneira muito violenta. E as minhas companheiras, revoltadas, soltavam gritos de protesto. Mas de nada lhes adiantava. Os seres humanos não entendem a nossa linguagem.
Eu resolvi não dizer nada. “Protestos que não são ouvidos, não vale a pena serem proferidos”, costumava dizer a minha avó…
E depois de tombo e mais tombo, lá fomos parar a qualquer sítio, onde nos deixaram em paz, mas sem ainda podermos ver a luz do Sol, fechadas na mesma caixa escura em que viajáramos.
Quanto tempo duraria ainda o flagelo?
É inconcebível que, sendo tão inteligentes, os seres humanos tenham por vezes tão pouca sensibilidade, a ponto de serem capazes de tratar outros seres vivos com tanta falta de respeito.
Mas… a primeira qualidade de qualquer árvore é a paciência. E eu sou uma árvore, não é verdade? Logo, decidi permanecer em silêncio, sem me queixar, aguardando o momento em que haveria finalmente de descobrir o que me esperava.
Em pensamento, contudo, eu continuava a viajar…
O meu breve passado, vivido junto da minha família, vinha-me involuntariamente à memória sob a forma de imagens mudas e consecutivas. E eu podia agora ver como a vida tinha na realidade passado por mim, e não eu por ela.
Quem era eu, afinal?
Quais as minhas verdadeiras origens? Essas que eram só minhas, e não o património das árvores da minha espécie. Que, como a minha avó me fizera sempre claro, já estavam nesta Terra antes de existirem seres humanos. Que tinham uma história honrosa e digna de orgulho…
Sim, quais eram as minhas origens, quem era eu de verdade?
Estes pensamentos apoderaram-se com tanta intensidade da minha mente, que as frases amedrontadas que as minhas companheiras de sorte trocavam entre si quase já nem chegavam até mim. E, por parte de uma árvore que tinha sido educada a viver para o próximo, esta era uma atitude inexplicável. Mas era assim! Nessa ocasião, tudo me parecia ter pouco valor, comparado com as grandes questões que nesse momento dominavam o meu espírito.
Tinha compreendido que não me era possível descobrir o que queria para a minha vida, enquanto não soubesse quem eu verdadeiramente era.
Os principais factos da minha existência, esses eu conhecia.
Era uma árvore feminina, da espécie Ginkgo biloba, e tinha nascido na segunda metade do século XVIII, num enorme jardim milenário dos arredores da cidade de Xangai, na província de Jiangsu, do Império Chinês.
Com a minha mãe, tinha aprendido a cuidar de mim, para que viesse a ser uma árvore fecunda, capaz de produzir bons frutos e sementes em abundância.
Meu pai ensinara-me a ter disciplina e a respeitar as leis da Natureza.
E no que diz respeito à minha avó materna, pode-se dizer que ela encarnava os valores tradicionais por que se regia a minha espécie. Para tudo tinha uma resposta, quase sempre sob a forma de provérbio…
Mas quanto de mim era eu mesma?…
Não sei se ainda estava tão revoltada como algumas semanas antes, depois de os seres humanos, violentamente, me terem arrancado da terra do meu jardim.
O certo é que, se eu nunca tivesse deixado o lugar que ocupava junto da minha família, muito provavelmente, também não teria nunca começado a refletir sobre a minha vida…
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