A Caridade: Fonte de Paz e de Justiça


Dia de São João Baptista | 24 de junho de 2023


RESUMO: Partindo do relato bíblico da Criação, iremos acompanhar o trajecto efectuado pela Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” na descoberta da dignidade da Pessoa humana, para nela nos apoiarmos, ao tentarmos descobrir a ‘Caridade’ como virtude teologal. O referido documento conciliar servirá  de base ao nosso estudo. No entanto, utilizaremos também outras fontes como a Bíblia; outro documento conciliar: a Declaração “Dignitatis Humanae”; e a Encíclica do Papa João XXIII: “Pacem in Terris”.

Situando-se este trabalho de seminário no âmbito da espiritualidade, pareceu-nos ser de capital importância o recurso a autores espirituais como: Santo Agostinho, Santo António de Lisboa, São João da Cruz e São Tomás de Aquino (segundo ordem alfabética). Estes autores irão ‘iluminar’, com o seu pensamento ou mesmo experiências místicas, realidades expressas pelo Concílio Vaticano II de forma mais sistemática ou prática.

O tema da justiça estará presente ao longo do nosso texto pela sua estreita relação com a caridade. O tema da paz será tratado especialmente no terceiro, e último, capítulo. Ele revelará a importância da justiça para a vida do ser humano e mostrará por que razão é que esta não se pode separar da caridade.

Temas como: os Direitos Humanos, a Opção pelos Pobres e Teologia da Libertação serão analisados só na sua vertente espiritual, e serão tratados unicamente como temas complementares.


Palavras-chave: Caridade; Paz; Justiça; Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”; Papa João XXIII.


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A Caridade: Fonte de Paz e de Justiça


 

1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


«Deus disse: “façamos o homem” à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra. Deus criou o homem à sua  imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra.” Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos, que dão semente: isso será  vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas e assim se fez. Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia.» (Gn1,26-31)


1.1. O Homem Criado à Imagem e Semelhança de Deus


“Mas, que é o homem?” pergunta-se no texto conciliar. É partindo de uma breve reflexão sobre a condição do homem, como ser criado à imagem e semelhança de Deus, que tentaremos descobrir em que se baseia a dignidade da pessoa humana, tal como ela nos é apresentada na Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”[1].

O relato bíblico da Criação, segundo o primeiro capítulo do Génesis, afigura-se-nos como algo extraordinariamente belo. Nele, é-nos revelado um Deus criador que, fazendo do homem e da mulher a obra principal da sua criação, se sente muito feliz consigo próprio: porque viu que “tudo o que tinha feito”, “era muito bom”.

Mas será que esta alegria também é partilhada pelos seres por ele criados?

Parece que não. No capítulo terceiro do  mesmo livro do Génesis temos a prova. Tanto a serpente, um dos repteis criados por Deus, como o ser humano, criado homem e mulher, se revelam ingratos em relação ao dom da sua vida. A uma alegria divina fundada num  Amor que eles não se sentem capazes de retribuir, resolvem responder com a desobediência e a insubordinação. O ser humano, homem e mulher, busca então a sua autonomia e torna-se rival desse Deus que o criara para o amor. É neste conjunto de situações, que o levam à queda, que a sua natureza humana mais profundamente se revela.  E a pergunta surge-nos de novo: Mas, que é o homem?” Sim, “Que é o homem para que Vos lembreis dele? o filho do homem para dele Vos ocupardes?”(GS,12) Pergunta o salmista. É uma pergunta de esperança. De uma esperança  que tenta dar resposta  às incertezas de um caminho percorrido na penumbra da solidão humana. No entanto, ela permanece, essa esperança que nasce da fé num Deus que se sabe misericordioso para com o pecado humano. Pois, “La gloria de Dios no es el esplendor de un omnipoder metaterreno, sino la belleza del amor que se há vaciado de sí mismo sin perderse y que puede perdonar sin perder nada de sí mismo.”[2]

É um Deus que não abandona o homem nem a mulher que ele criou para serem felizes. Um Deus que permanece fiel à finalidade da sua criação. E o salmista continua: “Fizestes dele quase um ser divino, de honra e glória o coroastes; destes-lhe poder sobre a obra das Vossas mãos, tudo submetestes a seus pés”. O ser humano descobre-se então como alguém que partilha da glória de Deus na criação. Na verdade, não foi a eles, homem e mulher,  a quem Deus abençoou e disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a”? É nesta proposta de participação ativa, por parte do homem e da mulher, na criação realizada por Deus, que podemos encontrar a resposta à nossa pergunta inicial: “Mas, que é o homem?”. É nela que Deus revela ao ser humano o seu valor que se traduz na sua dignidade. Pois, ainda que pecador, “Pela sua interioridade, transcende o universo das coisas”(GS,14) e “Pelo dom do Espírito Santo, o homem chega a contemplar e saborear na fé, o mistério do plano divino”(GS,15). E contemplando-o, ele compreende que a sua condição é a de um ser livre. Ele é livre para pecar como é igualmente livre para “se converter ao bem”(GS,17). Mas em que se baseia esta liberdade?

Ela tem por base a “consciência humana”(GS,16) que permite ao ser humano discernir e fazer opções fundamentais para a sua vida. A mais importante de todas é a de seguir a sua “vocação à comunhão com Deus”(GS,19), pois, “É desde o começo da sua existência que o homem é convidado a dialogar com Deus”(GS,19). Diálogo este que só pode ser mantido na plena adesão do ser humano a Cristo pois, como S. António de Lisboa nos diz no seu sermão do Terceiro Domingo do Advento: “Mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, esteve no campo do mundo a lutar contra o diabo. Vencendo, tirou-lhe da mão o homem e reconciliou-o com Deus Pai.”

Libertando-nos do pecado, Cristo aparece como o “novo Adão”, que “revela plenamente o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua altíssima vocação”(GS,22). Isto, “Porque n’Ele a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo também em nós foi ela elevada a sublime dignidade”(GS,22).


1  Cf.“Gaudium et Spes”, n. 12-22, in CAMINHOS da Justiça e da Paz: Doutrina social da Igreja. Documentos de 1891 a 1991. 3ª ed. Lisboa: Rei dos Livros,1993.

2  MOLTMANN, Jürgen – Sobre la Libertad, la Alegria y el Juego: los primeiros libertos de la creación. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1972, p.62.


1.2. Os Direitos Humanos


A história dos Direitos do Homem apresenta uma origem diferente desta tradição bíblica[3], na qual se fundamenta a dignidade da pessoa humana. Segundo um autor,

“A declaração dos Direitos do Homem, no século XVIII, dominada por uma ideologia individualista e liberal, serve de referência à constituição de uma ordem adequada às aspirações da emergente classe burguesa. […] A filosofia das luzes veicula uma visão do mundo, em que a pessoa humana conserva alguma transcendência, na base da qual são reclamados os direitos do homem. Os direitos aparecem como uma espécie de utopia ou de ideal da humanidade, com um inequívoco carácter simbólico.”[4]

Esta tradição do iluminismo  e do liberalismo apoia-se na razão humana como tal, o que implica uma visão abstrata  do homem, baseada na sua natureza individual, ignorando a sua dimensão socio-cultural[5]. Revela um homem que tenta afirmar a sua própria autonomia.

Falando ambas as tradições, a cristã e a liberal, de “dignidade humana”, não se referem, no entanto, a uma mesma realidade. Para a primeira, como já vimos, a dignidade da pessoa humana advém-lhe do facto de ser criatura livre e responsável, na mesma medida que toma consciência das suas limitações enquanto ser criado por Deus. É esta consciencialização que faz do homem um ser  capaz de responder ao Amor do seu Criador e de partilhar este Amor com as outras criaturas. Assim ele  se torna um ser social e comunicativo, crescendo em caridade. Esta noção de ser, enquanto ser criado à imagem e semelhança de Deus, escapa, por completo, ao ser autónomo e independente da corrente iluminista e liberal  que transmite uma conceção do mundo e da vida centrada no próprio homem, que procura a sua realização pelos seus próprios meios.

Por esta razão, a Igreja católica pôs certas reticências em aderir a este movimento que proclamava os chamados “Direitos do homem”.[6] Pois se a noção de “dignidade humana”, defendida desde sempre pelo cristianismo,[7] engloba todos os pressupostos dessa mesma noção de “dignidade humana”, defendida pela corrente liberal, não se reduz, no entanto, a ela. Ultrapassa-a, na medida em que a sua noção de ser humano, como pessoa, abrange um campo muito mais  vasto. É um campo que se revela ilimitado, pois abarca o ser humano na sua dimensão total, enquanto ser comunitário e, simultaneamente, transcendente, porque capaz de receber a Graça divina[8], comunicar com Deus e de se unir a Ele.[9]

Apesar de tudo, vamos encontrar os Papas da primeira metade do século XX, nomeadamente Pio XI e Pio XII, a colocarem-se resolutamente do lado  da liberdade e da defesa da dignidade da pessoa humana, face à ameaça de perda da liberdade do homem por sistemas totalitários[10].

Na encíclica “Pacem in Terris”, os direitos humanos[11] surgem, então, sob uma nova perspectiva: eles são agora tarefa eclesial. Sendo declarados princípio fundamental de “toda a convivência humana que seja bem organizada e fecunda”(PT,9), adquirem categoria teológica ao fazê-los derivar da dignidade humana que surge da redenção(PT,10).

O  Concílio Vaticano II continua nesta linha iniciada por João XXIII que valoriza os “sinais dos tempos”, reveladores da consciência moderna:

“os seres humanos, na época moderna, vão adquirindo uma mais viva consciência da sua própria dignidade: consciência que, enquanto os impele a tomar parte activa na vida pública, exige também que os seus próprios direitos – direitos invioláveis – sejam reafirmados nas ordenações jurídicas, e exige, além disso, que os poderes públicos sejam formados mediante processos estabelecidos por normas constitucionais e exerçam as suas funções específicas dentro dos limites destas.”(PT,79).

A declaração conciliar sobre a liberdade religiosa[12] começa por afirmar que “Os homens do nosso tempo tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana”(DH,1). Desta forma, este documento declara que “o direito à liberdade religiosa se funda realmente na dignidade da própria pessoa humana”(DH,2), pois que o “homem percebe e conhece os ditames da lei divina por meio da sua consciência”(DH,3). No entanto, como o padre Congar reconhece, nem sempre  o ser humano é movido, nas suas ações, por uma consciência reta e verdadeira:

«La liberté religieuse […] que le texte reconnaît n’est pas une liberté à l’égard de la vérité connue comme telle ; c’est seulement un aspect de la transcendance de la personne humaine à l’egard de toute autorité humaine, cette personne reconnaissant la foi de son action (hélas ! parfois en se trompant)  par la médiation de sa conscience.».[13]

Por isso, no “uso de todas as liberdades se deve observar o princípio moral da responsabilidade pessoal e social” tendo em conta “os direitos dos outros e os deveres para com os demais e para com o bem comum de todos”(DH,7). Assim, se torna necessário que “a liberdade religiosa seja protegida por uma eficaz tutela jurídica”(DH,15).

A Constituição “Gaudium et Spes” afirma também que todos os outros direitos do homem são fundados na sua dignidade, reconhecendo que “a defesa dos direitos da pessoa é condição necessária para que os cidadãos, individualmente ou em grupo, possam participar activamente na vida e na gestão da coisa pública.”(GS,73). Mas adverte, igualmente, para o facto de que este movimento que promove os direitos humanos, “deve ser penetrado pelo espírito do Evangelho, e defendido de qualquer espécie de falsa autonomia. Pois estamos sujeitos à tentação de julgar que os nossos direitos pessoais só são plenamente assegurados quando nos libertamos de toda a norma da Lei divina”(GS,41).

É pois necessário interpretar os direitos do homem à luz do amor a Deus e ao próximo[14]. Conscientes de que “a caridade é a plenitude da lei”(GS,24).


3 Cf. QUEREJAZU, Javier  – La Moral Social Y el Concilio Vaticano //. Vitoria: Editorial Eset, 1993, p.130.

4 FERNANDES, António Teixeira – O Estado Democrático e a Cidadania.  Porto: Edições Afrontamento, 1998, p. 13.

5 Cf. FERNANDES– O Estado. p. 11-27; WALTER, Kasper – Le Fondement théologique des Droits de l’Homme. In LES DROITS de l’homme et l’Eglise: réflexions historiques et théologiques. Cité du Vatican: Conseil Pontifical «Justice et Paix», 1999, p.58.

6 Cf. FERNANDES – O Estado. p.23-24; GREINACHER, Norbert – Christliche Rechtfertigung: Gesellschaftliche Gerechtigkeit. Köln: Benziger Verlag, 1973, p. 21: “Ainda no século passado, o Papa Gregório XVI considerava a liberdade de consciência como algo que se pudesse considerar  uma loucura (Encíclica «Mirari vos arbitramur» de 15.8.1832)”; QUEREJAZU – La Moral Social  p. 208, nota 11: «O Breve de Pio VI Quot alinquanto (10-03-1791) condena os direitos humanos por considerar o seu fundamento a liberdade absoluta e por entender que eram uma afronta aos direitos divinos da Igreja. Posteriormente, Pio XII na sua mensagem de Natal de 1942 (cf. AAS 35 (1943) 9-24) começa a falar dos direitos naturais do homem (evitando a expressão direitos humanos, por sua origem laica), considerando que neles se reconhecia o fundamento divino da dignidade humana.».

7 Cf. TOMÁS DE AQUINO, santo – Suma Teológica: IIª parte da IIª parte. Quest.LXIV,  Art.2-3. Vol. XIV. S. Paulo: Livraria Editora Odeon, 1937.

8 Cf. SCHILLEBEECKX, Edward – Fé Cristã e Esperança terrestre. In A IGREJA no Mundo de Hoje: Constituição “Gaudium et Spes. Comentários do esquema XIII. Lisboa: Livraria SAMPEDRO Editora,1969, p.114-120; TOMÁS DE AQUINO – Suma Teológica: Iª/IIª. Q.CXIII, A.X: “Naturaliter anima est gratiae capax; eo enim ipso quod facta est sed imaginem Dei, capax est Dei per gratiam, ut Augustinus dicit”.

9 Cf. AGOSTINHO, santo – As Confissões. 12ª ed. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990, p. 228: “Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as Vossas obras. Chegámos às nossas almas e passámos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o pastiu da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado,[…]”.

10 Cf. As Encíclicas de Pio XI contra o fascismo Italiano, Non abbiamo bisogno (1931); a revolução mexicana, Firmissimam constantiam (1937); o nazismo alemão, Mit brennender Sorge (1937); contra o comunismo da união soviética, Divini Redemptoris (1937); assim como o discurso de Natal de Pio XII em 1942.

11 Cf. Encíclica “Pacem in Terris”n.11-27. In CAMINHOS da Justiça e da Paz: Doutrina social da Igreja. Documentos de 1891 a 1991. 3ª ed. Lisboa: Rei dos Livros,1993.

12 Cf. Declaração “Dignitatis Humanae “, in CAMINHOS da Justiça e da Paz: Doutrina social da Igreja. Documentos de 1891 a 1991. 3ª ed. Lisboa: Rei dos Livros,1993.

13 CONGAR, Yves M.-J., o.p. – Le Concile au jour  le  jour. Quatrième session. IV. Paris: Édition du Cerf, 1966, p. 35.

14 Cf. SCHILLEBEECKX – Fé Cristã. p.105-106; WALTER – Le Fondement théologique. p. 71.


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2. O VALOR DA CARIDADE


«Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade, eu nada seria. Ainda que eu distribui-se todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria. A caridade é paciente, a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais passará.»  (1Cor 13)


2.1. A Caridade


‘Caridade’ e ‘justiça’ são dois conceitos que se completam e não raramente se confundem[15]. Dar a alguém aquilo que lhe pertence, por direito, não é ser caridoso, mas justo[16]. A caridade é maior do que a justiça. Pois contem-na e ultrapassa-a em conteúdo de significação. Diferentemente do amor, a caridade não é um sentimento, mas sim um estado de consciência. No homem ela é a correspondente à misericórdia divina. São formas de Amar que não esperam uma retribuição por parte de quem Ama. A misericórdia traduz o Amor de Deus pelos seres humanos e a caridade, deve traduzir o Amor do ser humano pelo seu próximo, inspirado no Amor de Deus. Por esta razão, se quisermos falar de amor, quando nos referimos à caridade, precisamos de estar conscientes de que este ‘Amor’ se escreve com letra maiúscula, porque ele transcende o nível afectivo em que os seres humanos normalmente vivem.

É pela caridade que o ser humano descobre, verdadeiramente, a sua transcendência[17]. Pois, só através dela, o contacto com Deus é  real e tangível. É nesse estado de consciência que se estabelece a verdadeira relação de diálogo entre Deus e o homem[18].  Por esta razão, como nos diz S. Paulo, ela é superior à fé e à esperança, e “jamais passará”.


15 Cf.RASSEMBLEMENT OEcuménique Européen de Bâle 15-21 mai 1989: Paix et Justice pour la création entière. Intégralité des textes et documents officiels édités par la Conférences Episcopales Européennes. Paris: Éditions du Cerf, 1989, p.182-186.

16 Cf. TOMÁS DE AQUINO – Suma Teológica: IIª/ IIª. Q.LVIII, A.3; ALFARO, Juan S. J. – Teologia da Justiça. Cidade do Vaticano: Ed. Paulinas,1978, p. 21: “O homem “justo”, ao qual aludem frequentemente os salmos, é aquele que vive de acordo com as exigências do Deus da Aliança, isto é, aquele que tem confiança nas promessas de Yahvé e observa a justiça para com o próximo”.

17Cf.“Gaudium et Spes”, n.24; JOÃO DA CRUZ, santo – Obras Completas. 5ª ed. Paço de Arcos: Edições “Carmelo”, 1986, p.239: “Porque quanto mais pura e esmerada a alma está em fé, tanto mais tem de caridade infusa de Deus; e quanta mais caridade tem, tanto mais o Espírito Santo a ilumina e lhe comunica os Seus dons, porque a caridade é causa e meio dessa comunicação.”; MARTELET, Gustave, s.J. – As Linhas Mestras do Vaticano II: Iniciação ao espírito do concílio. Braga: Secretariado Nacional da Oração, 1969, p. 120-123.

18 Cf. JOÃO DA CRUZ – Obras Completas. p.767-768: “Porque, como diz S. Paulo, «a caridade é o vínculo e laço da perfeição» (Coloss. III, 14). De forma que neste amor da alma estão as virtudes e dons sobrenaturais tão necessàriamente unidos, que se o amor quebrasse, faltando a Deus, logo se desatariam todas as virtudes e faltariam na alma; assim como, quebrado o fio da grinalda, caem as flores.”


2.2. A Justiça e  a Pobreza


Se partirmos ao encontro da noção de ‘justiça’, tal como ela nos é apresentada no Antigo e no Novo Testamento[19], depararemos com o facto de ela se encontrar estreitamente ligada com a noção de misericórdia e caridade. Na verdade, a justiça divina é reveladora de misericórdia e, o homem justo, só o pode ser verdadeiramente, se for caridoso.

A justiça de Deus, na pessoa  dos profetas do A.T., revela-se protectora do oprimido, portadora de prosperidade, de concórdia e bem-estar social.[20] É uma justiça que liberta o homem não só da opressão exterior como, também, das pressões interiores que o levam a desviar-se do seu caminho: “Mas para vós que temeis o meu nome, brilhará o sol da justiça, que tem a cura em seus raios.”,  lê-se em Malaquias (3,20). É neste “temer” o nome Deus que se fundamenta a fidelidade pela qual vive o homem “justo” segundo Habacuc (2,4). Mas como entender este temer o nome de Deus?

Ele traduz-se em humildade que gera a obediência aos ensinamentos de Deus, à sua Lei, que, conforme Miqueias, se resume em: “praticar o direito, gostar do amor, e caminhar humildemente com  Deus”(6,8); o que é confirmado por Jesus, segundo S. Mateus, que diz: “as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e fidelidade”(23,23).

A humildade, que o apóstolo Paulo diz ser uma das características qualificativas da caridade, apresenta-se-nos então, nesta tradição bíblica, como condição necessária para caminharmos com Deus. Para esta caminhada libertadora, fundada na humildade, o ser humano terá também de gostar do amor(da caridade) e de praticar o direito(de ser justo). Sem esta base não pode haver uma relação verdadeira com Deus. Ela depende da capacidade que o ser humano tiver para se despojar das suas ‘amarras’ de ordem material e espiritual. Esta capacidade encerra em si, a noção de ‘pobreza’. É uma pobreza que implica grandeza espiritual, pois, segundo Sofonias, ela é portadora de esperança: “Deixarei em teu seio um povo pobre e humilde, e procurará refúgio no monte de Yahweh o resto de Israel”(3,12).

Esta pobreza exclui toda a tentação idolátrica, tal como a da riqueza, porque, “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”(Mt 6,24); ou como diz santo António de Lisboa no sermão do Primeiro Domingo da Oitava da Epifania: “Todo aquele, portanto, que deseje ser verdadeiro humilde, despoje- se das riquezas. Ao seu contacto infecciona-se a humildade e gera-se a soberba.” 

A pobreza, no sentido bíblico, é uma qualidade da “boa vontade” humana, na qual se espelha a vontade divina. Não é necessário que a associemos imediatamente à pobreza material. Pois ela não depende desta. No entanto, a hipérbole usada por Jesus, do camelo que mais facilmente entrará pelo buraco de uma agulha do que um rico no reino dos Céus (Mt 19,24), será válida em todos os tempos, para mostrar como a ‘autonomia’ humana, conseguida através de qualquer força material, desvia, forçosamente, o homem de Deus.

A justiça humana, deverá reflectir a justiça divina. Ela deverá ser “humilde” e “pobre”, porque fundada na caridade. Será “prestativa” e não procurará “o seu próprio interesse”: “Então os justos lhe responderão: «Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? […]» Ao que lhes responderá o rei: «Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes»”(Mt 25,37.40).


19 Cf. BAUCHER, J. – Justice (Vertu de). In DICTIONNAIRE de Theologie Catholique. Dir. A. Vacant. Tomo VIII. Paris: Librairie Litousey et ané, 1903-1950, p. 2001-2020; MATTAI, G. –  Justicia.  In DICIONARIO Enciclopedico de Teologia Moral. Dir. por Leonardo Rossi; Ambrogio Valsecchi. 4ª ed. Madrid: Edições Paulinas, 1980, p. 509-520; MICHEL, A. – Justice Originelle. In DICTIONNAIRE de Theologie Catholique. Dir. A. Vacant. Tomo VIII. Paris: Librairie Litousey et ané, 1903-1950, p. 2020-2042.  

20 Cf. CAZELLES, H. – A propos de quelques textes difficiles relatifs a la justice de Dieu dans l’Ancien Testament. Revue Biblique. 1951, 58 (2), p.169-188.


2.3. O Reino dos Céus e a opção pelos pobres


«Não penseis que vim revogar a Lei e os profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado. Aquele, portanto, que violar um só desses menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será chamado o menor no Reino dos Céus. Com efeito, eu vos asseguro que se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus.» (Mt 5,17-20)


«Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Importava praticar estas coisas, mas sem omitir aquelas. Condutores cegos, que coais o mosquito e tragais o camelo!» (Mt 23,23)


O Reino dos Céus pertence  a todos aqueles que se mostram capazes de cumprir a vontade de Deus, na Terra: “Nem todo aquele que me diz «Senhor, Senhor» entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus.” (Mt 7,21).

Esta vontade de Deus traduz-se na obediência à sua Lei, como já anteriormente vimos. É nela que se deve inspirar a justiça humana, para que não se transforme numa justiça mesquinha e interesseira que procura o seu próprio proveito. É uma justiça que nasce da fé e da confiança que reflecte a inocência própria das crianças(cf.Mt18,3), porque ainda não conhecem a maldade.

“como tan bellamente há dicho Ernst Block, lo que para todo el mundo há sido la niñes: risa despreocupada, admiração extasiada de la riqueza y bondad de Dios y nueva inocencia. Pinta el final de la historia com categorias estéticas. § Esto no quiere decir que el hombre, al final de su difícil processo evolutivo, se há de convertir en un niño. El infantilismo no es la solución de sus problemas. Lo que quiere decir es que se há de hacer como un niño.”[21]

A entrada no Reino dos Céus requer uma conversão pessoal profunda: “Arrependei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo.”(Mt 3,2); processo que se opera através da confiança e da humildade e, sobretudo, da abertura à vontade de Deus: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.[…] Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.”(Mt 5,3.10).

Neste processo de conversão, o ser humano descobre a caridade e compreende que, só através dela, a vontade de Deus pode ser realizada na Terra: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas”(Mt 7,12).

No Amor ao próximo, segundo a vontade de Deus, o homem experimenta uma ‘libertação’ de tudo o que antes o oprimia. É a Verdade que o liberta, segundo S. Paulo(Cf. Rom 8,21; 2Cor 3,17;Gal 5,1;1Cor 3,9), e o torna um filho de Deus, responsável. No dizer de Moltmann, “El existir-para-outro es necesario para la liberación y para la salvación de la vida humana oprimida y culpable. El amor hará que se extienda por todas partes una liberdad concreta.”[22]

A caridade inclui, também, uma dimensão de correcção fraterna, que não deverá ser esquecida, como salienta S. António no seu sermão do Segundo Domingo do Advento:

“Se o teu próximo é cego pela soberba, quanto está em ti ilumina os seus olhos com o exemplo da humildade; se é coxo pela hipocrisia, põe-no direito por meio das obras da verdade; se é leproso pela  luxúria, limpa-o com a palavra e o exemplo da castidade; se é surdo pela avareza propõe-lhe o exemplo da pobreza do Senhor; se é morto pela gula e embriaguez, ressuscita-o com o exemplo e virtude da abstinência; aos pobres, porém, anuncia a vida de Cristo.”

Deste pequeno trecho, também se poderá concluir da relação existente entre o Evangelho e uma opção pelos pobres. Ela está presente tanto no A.T. como nos ensinamentos de Jesus[23]. E é nela que se vai fundamentar a teologia da libertação que surge no contexto da América Latina, nos anos 70.


21 MOLTMANN – Sobre la Libertad. p.53.

22 MOLTMANN – Sobre la Libertad.  p.100.

23 Cf. DIEZ ALEGRIA, J. M. – De la Doctrina de la Iglesia al Mensaje del Evangelio.  In EL VATICANO II: Veinte años despues. Ed. por Casiano Floristan y Juan-Jose Tamayo. Madrid: Ediciones Cristandad,1985, p.333-340; GREINACHER – Christliche Rechtfertigung.  p. 36-37. No n.88 da Constituição “Gaudium et Spes”, confirma-se esta ideia: “O espírito de pobreza e de caridade é, com efeito, a glória e o sinal da Igreja de Cristo.”


2.4. A Teologia da Libertação


Trata-se, essencialmente, de uma reflexão sistemática sobre uma experiência espiritual, concretizada por alguns autores como: Gutiérrez, L. Boff, Galilea, Sobrino, Ellacuría, Cardenal, Paoli e muitos outros.[24]

Segundo  Leonardo Boff, a “opção pelos pobres” é  uma consequência mística dos dados revelados: Deus manifestou-se e continua a manifestar-se nos pobres; Deus identifica-se com eles; os direitos dos pobres são os direitos de Deus[25].

Para melhor compreendermos a Teologia da libertação, será importante termos uma visão de pecado como  realidade social.[26] A caridade torna-se, então, num valor em si mesmo, cujo exercício é imprescindível para a plena realização do homem.[27]

Na opinião de Manzanera, o termo “libertação” entende-se em referência a “salvação”, abarcando esta todas as dimensões da pessoa, desde as materiais até às espirituais, de forma que o conceito cristão de salvação não fique reduzido a uma só dimensão da vida humana. “A salvação, plenitude de fraternidade humana e filiação divina, passa necessariamente através da libertação do pecado e das suas consequências que impedem a comunhão dos homens entre si e com Deus.”[28]


24 Cf. CODINA; Victor – De la Ascetica y Mistica a la Vida Segundo el Espiritu de Jesus. In EL VATICANO II: Veinte años despues. Ed. por Casiano Floristan y Juan-Jose Tamayo. Madrid: Ediciones Cristandad,1985, p. 284-287.

25 Cf. QUEREJAZU  – La Moral Social.  p.169.

26Cf. GREINACHER – Christliche Rechtfertigung.  p. 18-19; QUEREJAZU – La Moral Social.  p.181.

27 Cf. QUEREJAZU – La Moral Social.  p. 82.

28 Cf. Ibidem, p.171-172, nota 17.

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3. A PAZ COMO «OBRA DA JUSTIÇA»


«Ai de mim! Porque sou como um ceifeiro de verão, como o que recolhe depois da vindima: não há um cacho sequer para comer, nem um figo temporão que eu desejo! O fiel desapareceu da terra, e não há um justo entre os homens! Todos estão à espreita de sangue, cada qual persegue o seu próximo. Para fazer o mal as suas mãos são hábeis: o príncipe exige, o juiz julga por suborno e o grande expressa a sua ambição.» (Mq 7,1-3)


Paz é  mais do que ausência de guerra. É um estado que  se pode dizer desejado por todos, sem que, em algum tempo da história pessoal ou universal dos homens, tenha sido alcançado por alguém, na sua totalidade. O ser humano vive em permanente luta, porque é um ser em devir. Ele busca constantemente um fim último, dentro ou fora de si, no qual possa encontrar uma razão satisfatória para o seu existir. Esta é a principal razão da sua inquietação espiritual que o impede de realizar-se como homem, numa existência pacífica.

Jesus veio dar uma resposta a esta procura ansiosa, por parte do ser humano. Ele, “o príncipe da paz”(GS,78), é aquele que com autoridade pode dizer de si próprio: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida”(Jo 8,12). Com efeito, só a “luz” que ilumina  uma existência humana, dando-lhe um sentido verdadeiro, é capaz de ser portadora da paz tão desejada e nunca alcançada.

Santo Agostinho, expressou de uma forma poética este desejo de paz, mostrando que ela nasce no nosso interior, na mesma medida em que aprendemos a seguir o caminho do bem. Esse caminho que  Jesus disse ser ele mesmo(Cf. Jo 14,6).

“Aprendei a praticar o bem, prestai justiça ao órfão, mantende os direitos da viúva, para que a terra produza erva de pastagem e árvores frutíferas. Em seguida vinde, disputemos, – diz o Senhor – para que brilhem os astros no firmamento e espalhem a sua luz sobre a terra.”[28

Da prática do bem e da justiça nascem a prosperidade e a luz que ilumina a existência humana. “Os justos” são “astros no firmamento”[29]. São aqueles que já aprenderam quão valioso é o amor:

“O meu amor é o meu peso. Para qualquer parte que vá, é ele que me leva. O Vosso Dom inflama-nos e arrebata-nos para o alto. Ardemos e partimos. Fazemos ascensões no coração e cantamos o «cântico dos degraus». É o Vosso fogo, o Vosso fogo benfazejo que nos consome enquanto vamos e subimos para a paz da Jerusalém celeste. «Regozijei-me com aquilo que me disseram: Iremos para a casa do Senhor». Lá nos colocará a «boa vontade» para que nada mais desejemos senão  permanecer ali eternamente.”[30]

É na experiência da paz interior que o ser humano se encontra com  Deus e ‘saboreia’ a eternidade. Esta experiência, como nos diz Santo António, é obra da justiça de Deus que, infundindo no homem  a Graça, o deixa repousar da inquietação humana.

“A obra da justiça, a obra daqueles que pela graça já se encontram justificados, é a paz. […] assim como o homem interior repousa na casa da paz, o homem exterior repousa em certo silêncio de honestidade e de segurança. Para o que desta forma repousa e habita consigo mesmo, a segurança será sempiterna.” ( Terceiro Domingo do Advento)   

Quem torna possível este estado de segurança interior e exterior que será “sempiterna”, é Jesus Cristo, que habita no espírito dos “justos”.                          

“No espírito do justo há doutores, os afectos da razão, que ensinam o que se deve temer e o que se deve fazer. No meio deles está sentado Jesus, quando pacifica o espírito, repousa no espírito pacificado e repousando tudo dispõe suavemente.” (Segundo Domingo Depois do Natal do Senhor)

Os “justos”, os homens de “boa vontade”, são aqueles que cumprem a vontade de Deus, mantendo-se firmes na fé e rectos no agir. Pois a fé precisa de obras: é uma realidade bíblica, que está presente desde o tempo da Aliança do Sinai.[31]

O Concílio Vaticano II, no número 78 da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, aproxima-se bastante desta conceção de “paz” que temos vindo a expor. Define-a como “obra da justiça”, fundando-se no texto de Isaías (32,7); e reconhece que “A paz terrena, nascida do amor ao próximo, é imagem e efeito da paz de Cristo, que emana de Deus Pai. Com efeito, o próprio Filho incarnado, príncipe da paz, reconciliou todos com Deus pela sua Cruz; restabelecendo a unidade de todos num só povo e num só corpo, matou o ódio na sua própria carne e, gloriosamente ressuscitado, derramou o Espírito de Amor nos corações.” E, continuando, apela: “Por isso, convidam-se instantemente todos os cristãos a que, «praticando a verdade na caridade»(Ef 4,5), se unam com os homens verdadeiramente pacíficos para implorar e estabelecer a paz.”.

Este apelo do concílio, encontra eco nas palavras do padre Congar que, tendo nele participado ativamente, pôde acompanhar de perto a evolução do esquema XIII, que viria a dar origem à “Gaudium et Spes” . Ele expressa o voto de que, também no seio da Igreja de Cristo, nasça este desejo de paz, e que todos os cristão façam um esforço de reconciliação e de união: 

«Ce processus est commencé. C’est un devoir d’en favoriser la difficile maturation. Le chapitre (V) consacre sa seconde section à tracer un programe de coopération internationale en vue de mettre progressivement en place les structures nécessaires à la vie d’une communauté mondiale des peuples. Nous eussions aimé que l’oecuménisme trouvât ici une place un peu moins parcimonieuse qu’une simple mention de la coopération entre tous les chrétiens  (n.89 et 90).»[32]

Este trajeto, em evolução lenta, mas certa, tem vindo a efetuar-se  até aos nossos dias. Podemos salientar o ano de 1971, como um ano ‘rico’, neste sentido. Anexado a este estudo, juntamos quatro páginas formadas por recortes de “L’Osservatore Romano” desse mesmo ano, que nos testemunham o empenho, por parte da Igreja católica, de promover a paz no seu sentido verdadeiro. A esse esforço, juntamos a intenção que nos levou a escolher este tema tão complexo quanto importante.


28 AGOSTINHO, santo – As Confissões. 12ª ed. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990, p. 374.

29 Cf. AGOSTINHO– As Confissões. p. 372.

30 Cf. AGOSTINHO– As Confissões. p. 363.

31 Cf. ALFARO – Teologia da Justiça. p.20-21: «A  dimensão ética da justiça está incluída na relação do homem com o Deus da Aliança. Não “conhece” realmente Deus quem por um lado participa do culto ritual e por outro priva o próximo dos seus direitos.[…] A resposta do povo de Israel ao Deus da Aliança inclui, indissoluvelmente unidas, a dimensão religiosa e a ética. ». p.20-21.   

32  CONGAR – Le Concile. IV. p. 106-107.


4. CONCLUSÃO


Ao reflectirmos, por último, sobre o tema ao qual nos dedicamos neste estudo, vêm-nos à memória as palavras de Santo António de Lisboa: “As aves na parte superior da arca significam as virgens e os contemplativos […]. Ali escutam com o ouvido do coração o que não podem exprimir em palavra, nem ainda compreender com o entendimento: E estes são os que rendem cem por um.”(Sermão do Domingo da Sexagésima).

Efetivamente, a caridade: fonte de paz e de justiça, é um desses temas que só se podem escutar com o coração. Por esta razão, torna-se arriscado tentar exprimi-la por palavras. São Paulo teve a coragem de lhe dedicar um hino, nós tivemos a ousadia de o tentar interpretar. Resta-nos porém a certeza de que o mais importante, ou seja, a capacidade de pôr em prática a caridade, depende da vontade de cada ser humano de aderir ao ‘Bem’, e não na sua capacidade de a compreender. Esse esforço pessoal, para praticarmos a caridade, corresponderá sempre a uma caminhada que também será coletiva no seio da Igreja de Jesus Cristo. Ele, a ‘Luz’ que sempre nos guia, acompanhará os nossos passos na escuta da Verdade que nos chama à conversão. E, repousando então “em certo silêncio de honestidade e segurança”,  poderemos sentir a “paz”, antecipada, da “Jerusalém celeste”, quando no fundo da nossa própria consciência descobrirmos uma lei que não impusemos a nós mesmos, mas à qual devemos obedecer; essa voz que sempre nos chama a amar e a fazer o bem e a evitar o mal(Cf. GS, 16) e formos capazes de a seguir, como seres humanos de “boa vontade”.


BIBLIOGRAFIA


Fontes

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CAMINHOS da Justiça e da Paz: Doutrina social da Igreja. Documentos de 1891 a 1991. 3ª ed. Lisboa: Rei dos Livros,1993.

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O estudo aqui apresentado foi elaborado em 1998, no âmbito da antiga licenciatura em Teologia (UCP), para a disciplina Seminário de Espiritualidade, ministrada pelo Prof. Doutor António Abel Canavarro.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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