Fernando Pessoa
O rosto (des)conhecido de Fernando Pessoa
Apelidado de “louco” pelos jornais da época, enquanto poeta do Orpheu[1], Fernando Pessoa, detentor de “várias personalidades pseudónimas” e, apesar disso, “o mais lúcido companheiro literário que possa alguma vez ter um autor”, é, na visão de Almada Negreiros, “o porta-bandeira erudito” do grupo; ou seja, é o seu mentor espiritual, porque – como o próprio Pessoa confessa – fazer arte é para o poeta “cada vez mais importante coisa, mais terrível missão – dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra artística”.
A afirmação supracitada é fundamental para se poder compreender a obra de Fernando Pessoa, para quem o ano de 1915 é decisivo, por ser o ano do Orpheu. Esta revista escandalosa, que tanta polémica traz consigo, é o órgão através do qual o poeta poderá lançar “uma série de ideias que urge atirar para a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa de ser trabalhado e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos arranquem à nossa estagnação”. É a “ideia patriótica” que move o poeta português, que encara “a sério a arte e a vida”, pois “Outra atitude não pode ter com a sua própria noção-do-dever quem olhe religiosamente para o espectáculo triste e misterioso do mundo”. No primeiro número de Orpheu, é , precisamente, esse espectáculo triste e misterioso do mundo, o que Fernando Pessoa canta no grande poema sensacionista, Ode Triunfal, dando voz a uma das suas várias personalidades pseudónimas: a de Álvaro de Campos, que viria a tornar-se no mais eloquente e irreverente heterónimo pessoano.
Segundo António Quadros, uma das grandes linhas de força da personalidade e da obra de Pessoa, o sentimento patriótico, mergulha as suas raízes emotivas numa múltipla saudade: “saudade do Pai, saudade do lar e da família em que ‘ninguém estava morto’, saudade da Pátria onde fora feliz, onde ficara o Pai e com o Pai se lhe identificaria pouco a pouco na sensibilidade, na imaginação, na memória inconsciente”. Esta múltipla saudade seria determinante para o regresso de Pessoa a Portugal aos dezassete anos de idade, depois de ter vivido nove anos na cidade de Durban, na África do Sul. No entanto, parece que a estadia na Pátria não viria a contribuir para a sua felicidade. Ainda que as suas raízes se encontrassem em Portugal, o poeta não conseguiria enraizar a sua existência no seu país de origem, tornando-se um ser cada vez mais solitário, um ser isolado, “para quem os heterónimos também são uma companhia, uma família”, apesar de nunca ter perdido de vista a sua relação “com o colectivo nacional, com a Pátria”, porque ser múltiplo é para ele ser português.
Um semi-heterónimo pessoano, Bernardo Soares, revela-nos essa face mais concreta, do ponto de vista existencial, de Fernando Pessoa. E é, talvez, meditando o que escreveu esse seu alter-ego, enquanto “cronista do seu quotidiano sem história”, que a nós, leitores, nos é permitido compreender um pouco melhor o mundo do poeta: um mundo complexo, instável, de insaciável busca, por parte de um ser humano que se desloca, dia a dia, no espaço da cidade de Lisboa, de casa para o seu local de trabalho, onde desempenha uma profissão monótona, que fica muitíssimo aquém das suas capacidades intelectuais, das suas exigências espirituais. É um mundo estagnado, exteriormente, mas que fervilha, interiormente. A imaginação do poeta, rica e abundante, começa então a revelar-se como a sua maior força e fonte de criação artística.
Os heterónimos surgem, assim, como consequência da colisão entre as circunstâncias exteriores acima descritas e as exigências interiores que caracterizam a alma do grande poeta português. Uma alma que, pelas suas dimensões, excedia as possibilidades oferecidas por uma única existência e que, talvez por isso mesmo, sentiu necessidade de criar outras existências, para se sentir realizada. Já que, como escreve Bernardo Soares, na obra inconclusa intitulada Livro do Desassossego, “também há universo na rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver […] Algures sem dúvida é que os poentes são. Mas até deste quarto andar sobre a cidade se pode pensar no infinito com armazéns em baixo, é certo, mas com estrelas ao fim”. Foi, possivelmente, fitando esse céu estrelado e infinito que Fernando Pessoa descobriu o mundo infinito de possibilidades que interiormente possuía.
[1] O primeiro modernismo português apresenta-se indissociável de um grupo inovador que se forma em torno da revista Orpheu. Desse grupo, destacam-se, no campo literário, Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, tendo sido este último poeta o criador dos três ismos – paúlismo, interseccionismo e sensacionismo – que conferiram a Orpheu características peculiares de modernidade.
O texto acima transcrito foi originalmente publicado no jornal “João Semana”, em 15 de junho de 2018: cf. GRIEBEN, Fernanda – O rosto (des)conhecido de Fernando Pessoa. In “JOÃO SEMANA”. QUINZENÁRIO OVARENSE. 104:12 (2018), p. 5.
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