Henrique de Souselas: personagem de ficção e psicologia médica
Henrique de Souselas: Fictional character and medical psychology
Resumo: Tomando como exemplo Henrique de Souselas, protagonista do romance A Morgadinha dos Canaviais, o presente estudo visa analisar a forma como a psicologia médica, desenvolvida por Ernst von Feuchtersleben (1806-1849) nos primórdios do século XIX, influenciou o escritor português Júlio Dinis – pseudónimo literário do médico Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871) – no desenho das suas personagens de ficção. Perseguindo esse fim, e partindo de uma breve análise do contexto em que o nome de Feuchtersleben é mencionado por Júlio Dinis no romance Uma Família Inglesa, os principais preceitos da psicologia médica, segundo o célebre médico suíço na obra Zur Diätetik der Seele (1838), serão relacionados com as características temperamentais de duas personagens do romance: Mr. Morlays e Mr. Whitestone.
Palavras-chave: Personagem de ficção; Literatura portuguesa; Júlio Dinis; Psicologia médica; Ernst von Feuchtersleben.
Abstract: Taking as an example Henrique de Souselas, protagonist of the novel A Morgadinha dos Canaviais, the present study intends to analyse the way medical psychology, developed by Ernst von Feuchtersleben (1806-1849) in early 19th century, influenced the Portuguese writer Júlio Dinis – literary pseudonym of the physician Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871) – in the design of his fictional characters. In the pursuit of this aim, and beginning with a brief analysis of the context in which the name of Feuchtersleben is mentioned by Júlio Dinis in the novel Uma Família Inglesa, the main principles of medical psychology, according to the renowned Swiss physician in Zur Diätetik der Seele (1838), will be related to the characteristics of temperament of two fictional characters of the novel: Mr. Morlays and Mr. Whitestone.
Keywords: Fictional character; Portuguese literature; Júlio Dinis; Medical psychology; Ernst von Feuchtersleben.
1. Feuchtersleben no contexto do romance Uma Família Inglesa. No romance Uma Família Inglesa, Júlio Dinis (1839-1871) recorre aos preceitos da psicologia médica que Ernst von Feuchtersleben (1806-1849)[1] desenvolve na sua obra Zur Diätetik der Seele (1838) – obra que o romancista português conheceria em versão francesa ou inglesa[2] – para desenhar o carácter das suas personagens de ficção. Atentemos na seguinte passagem, extraída do capítulo XXXII:
Efectivamente o inglês, que chegava, era um destes pessimistas, para quem o universo inteiro se apresenta tingido das mais escuras cores; era uma vítima, ao mesmo tempo lastimável e insuportável, do mau humor que o douto Feuchtersleben chama – prosa vulgar da vida, irmão do tédio e da preguiça e envenenador que lentamente traz consigo a morte.
Mr. Whitestone, homem laborioso e contente do mundo, estava em constante oposição ao seu compatriota e amigo, que era destes que têm feito adquirir aos nevoeiros de Londres a imerecida fama de fomentadores de spleen – fama, contra a qual principiam com muito critério, a protestar os homens pensadores,descobrindo antes na ociosidade, favorecida por as fabulosas riquezas de alguns lordes, a causa daquele mal de suicidas.
O aspecto de Mr. Morlays denunciá-lo-ia à medicina antiga como uma vítima desse misterioso humor negro – que ela chamou atrabilis. Era a variedade do inglês, que pode denominar-se escura; e a escuridade, que lhe estava no rosto, projectava-se-lhe também nas disposições morais (DINIS, [1977]:845).
Como se pode verificar, é baseando-se nos ensinamentos da psicologia médica do ‘douto Feuchtersleben’[3] que Júlio Dinis atribui as ‘disposições morais’ de Mr. Morlays – uma ‘vítima’ do ‘mau humor’ – à ‘ociosidade’, e não aos ‘nevoeiros de Londres’. A ‘escuridade’ do pessimismo que caracteriza esta personagem contrasta, na passagem do romance acima transcrita, com os atributos que qualificam Mr. Whitestone, ‘homem laborioso e contente do mundo’.
A forma como no romance Mr. Whitestone é caracterizado, com os predicados que lhe são atribuídos, é completada pela descrição pormenorizada que o narrador fornece ao leitor do ‘gabinete’ dessa personagem, nos seguintes termos:
Cadeiras de várias formas e mecanismos, nas quais se esmerara o génio inventivo em multiplicar e variar as molas […] tapetes, onde os pés se profundavam como na relva dos campos […] e finalmente o fogo […] a crepitar e a lamber com a língua inflamada as grades do fogão. Mr. Whitestone pensava como S. Francisco de Sales, a quem atribuem a opinião de que o fogo é bom durante doze meses no ano.
Mr. Morlays encontrou em tudo isto motivos para observações de crítica atrabiliária (DINIS, [1977]:845).
Espaço confortável, onde Mr. Whitestone pode, docemente, ‘repousar de fadigas’, este seu gabinete espelha o contentamento do mundo, que o narrador apresenta como uma das características temperamentais da personagem. Mas este contentamento resulta de um equilíbrio interior que só pode ser conseguido através do labor, e não do ócio. Assim, Mr. Whitestone, homem trabalhador e realista – que, no entrecho, encarna o papel do meio-termo entre duas posições ideológicas extremas: a do pessimismo materialista e negro de Mr. Morlays e a do otimismo idealista e utópico de Mr. Brains (cf. 846-849) –, é apresentado no capítulo acima referido, do romance Uma Família Inglesa, como um homem de personalidade equilibrada, a quem agrada, em qualquer altura do ano, o calor e a luz do ‘fogo’. Este elemento – que se torna objeto da ‘crítica atrabiliária’[4] de Mr. Morlays, cuja forma de pensar se apresenta como a antítese da “lúcida inteligência” (592) de Mr. Whitestone – também se espelha simbolicamente nos moldes apolíneos em que esta última personagem é caracterizada, sob o ponto de vista fisionómico:
Era aquela conhecida tez, quase cor de tijolo; aqueles olhos azuis, à flor do rosto, a resplandecerem como safiras; aqueles cabelos e suíças ruivas, que, sem grande violência de imagem, poder-se-iam talvez comparar às labaredas do fogo, que lhe inflamava constantemente as faces injectadas, os dentes regulares, como enfiaduras de pérolas, e alvos, como os caramelos das montanhas; a postura erecta; os movimentos prontos; e no rosto o tal continuado ar de satisfação (DINIS, [1977]:595).
Até certo ponto, a forma como Mr. Whitestone avalia o fogo – que, seguindo o exemplo de ‘S. Francisco de Sales’, considera ‘bom durante doze meses no ano’ – também faz esta personagem participar, através da sintonia de pensamentos, da santidade desse Doutor da Igreja (fundador da Ordem da Visitação) que, na sua obra Traité de l’amour de Dieu – onde, na linha de S. Paulo, antepõe a caridade à penitência –, afirma que “la charité est cet or affiné par le feu, que Dieu conseilloit à l’Evêque de Laodicée d’acheter pour devenir riche: cet or vaut seul toutes choses; et celui qui l’a, peut dire qu’il a tout et qu’il peut tout” (SALES, 1822:177). Comparada, assim, por S. Francisco de Sales ao ouro que o fogo purifica, a caridade (ágape) transforma-se num bem precioso – o único que realmente enriquece o ser humano que o possui.
A relação que se estabelece entre o valor simbólico do fogo (que, na asserção do santo, acima citada, como no simbolismo alquímico, atua sobre o metal, transmutando-o[5]) e a caridade, neste contexto, é evidente. Daí o podermos levantar a hipótese de Júlio Dinis pretender remeter o leitor, por meio de um jogo de palavras – próprio da denominada linguagem dos pássaros –, para o valor da caridade, na formação de uma personalidade equilibrada como a de Mr. Whitestone, ‘homem laborioso e contente do mundo’. A descrição do fogo, na passagem do romance anteriormente transcrita, ‘a crepitar e a lamber com a língua inflamada as grades do fogão’, reforça, de um ponto de vista imagético, a hipótese levantada. Já que, como afirma José Manuel Anes (1998), foi sob a forma de línguas de fogo que os apóstolos, que eram “gentes de espírito”, receberam o Espírito Santo. Gentes “de espírito”, ou “com espírito” – esclarece o mesmo autor –, são aquelas que utilizam a “Língua dos Pássaros”, a que ensina o mistério das coisas e revela as verdades mais ocultas (cf. 93-94).
Sendo a caridade associada ao calor e à luz do ‘fogo’– elemento que se torna objeto da ‘crítica atrabiliária’ de Mr. Morlays –, ela opõe-se no entrecho às ideias centralistas de uma Inglaterra que dominará o mundo, impondo a língua inglesa como língua universal – ‘assunto’ que constitui o centro da ‘questão social’ que é debatida no capítulo XXXII em análise, intitulado “Os convivas de Mr. Richard” (DINIS, [1977]:844): “Pouco a pouco, ascendeu a conferência a mais sublimados assuntos. A questão política abriu campo a mais vasta questão social, onde os dois ingleses [Mr. Morlays e Mr. Brains] começaram a sua provada individualidade ao serviço da causa pátria comum” (847). Esta ‘causa pátria comum’ principia então a ser defendida de dois pontos de vista diferentes, em conformidade com as características temperamentais das duas personagens – Mr. Morlays e Mr. Brains –, tendo o narrador a preocupação de salientar, no final da ‘conferência’, que esses dois principais intervenientes no diálogo privado que decorre no gabinete de Mr. Richard Whitestone são “dois compatriotas de Peel” [6], que acreditavam no futuro “soberano predomínio da nação inglesa sobre o mundo inteiro”. Crença que concebiam realizada de formas diferentes (cf. 849), por terem temperamentos antagónicos.
Sendo as duas personagens acima referidas – Mr. Morlays e Mr. Whitestone – de nacionalidade inglesa, as hipóteses levantadas, quer pelas teses que defendem a existência de um temperamento nacional[7], quer pelas que defendem a influência do clima sobre o temperamento humano (neste caso concreto, a influência dos ‘nevoeiros de Londres’[8]), são automaticamente excluídas. A substituí-las, ergue-se o protesto que, com autoridade, começa a ser erigido pelos ‘homens pensadores’ desse tempo – entre eles, encontra-se ‘o douto Feuchtersleben’, que, em conformidade com o que é afirmado no romance Uma Família Inglesa, defende que é ao labor, ou seja, a uma vida ativa e produtiva, e não à ociosidade, que o ser humano se deve entregar para atingir a felicidade.
2. Felicidade, força mental e vontade própria. Na primeira versão portuguesa – Hygiene da alma (1873) – dessa famosa obra de Feuchtersleben, anteriormente referida, o seu tradutor – Ramalho Ortigão –, dirigindo-se “Ao leitor”, numa brevíssima nota, apresenta-a nos seguintes termos: “Traduzo este livro porque o considero, entre quantos tenho lido, como o mais eficaz para dar ao homem a força e a felicidade” ([s.p.]).
A almejada ‘felicidade’, que Aristóteles assegura ser o fim ou objeto supremo da vida humana (cf. Ética a Eudemo, II, I, 1219ª), associa-se nestas palavras introdutórias de Ramalho Ortigão à ‘força’ – termo polissémico que requer esclarecimento. Esclarecimento, aliás, que Feuchtersleben fornece logo no início da obra em análise, definindo essa ‘força’ como o “poder dado ao espírito de desviar do corpo os males que o ameaçam” (7). Trata-se, pois, de uma energia espiritual (mental ou psicológica) que tem a capacidade de atuar sobre um determinado corpo físico. É nesta faculdade do espírito humano que Feuchtersleben baseia a ciência que designa por “hygiene moral”. Uma ciência que, diferentemente da proposta ética apresentada por Aristóteles[9], é exclusivamente do foro íntimo, é uma moral pessoal – que tem como principal fundamento a “vontade” que o ser humano possui e pode dirigir, regulando a sua “aplicação” (8). Logo, é pelo cultivo da vontade própria que o ser humano se torna higiénico do ponto de vista moral ou, melhor dizendo, do ponto de vista anímico – já que é da saúde e higiene da alma que trata esta obra de Feuchtersleben.
Assim sendo, as ‘disposições morais’ de Mr. Morlays – que fazem dele uma vítima do ‘mau humor’ – apresentam-se como o resultado do mau uso que esta personagem faz da sua força mental – ou porque ignora tal força ou porque não lhe atribui o devido valor. Revelando-se incapaz de cultivar a vontade própria, de forma a bem saber dirigi-la e aplicá-la, Mr. Morlays torna-se, pois, numa ‘vítima’ – num ser passivo – que sofre as consequências nefastas da sua própria apatia mental. Esta falta permanente de higiene anímica também se reflete no aspeto físico da personagem, cujo ‘rosto’ escuro – rosto opaco – denuncia a sua predisposição para o ‘tédio’ e para a ‘preguiça’. Esta ‘escuridade’ que envolve o rosto de Mr. Morlays é manifestação de algo que ‘lentamente traz consigo a morte’ – como se pode aferir pela leitura da passagem do romance acima transcrita –, que, na perspetiva de Feuchtersleben, tanto é morte da alma como do corpo.
Com efeito, Feuchtersleben, salientando que não pretende aventurar-se “nas brumas da methaphysica”, começa por trazer à luz os preceitos teóricos da sua ciência, afirmando: “O homem, senhor da completa liberdade d’espirito, sente a unidade do seu ser” (10). Este, porém, é um sentimento “instinctivo” que se ausenta sempre que o ser humano toma consciência da relação dicotómica que se estabelece entre a “ordem moral” e a “ordem física”. Dito por outras palavras: a perceção que o ser humano instintivamente possui da unidade do seu ser é racionalmente posta em questão quando ele toma consciência de ser composto de alma e corpo físico. No entanto, a alma não passa de uma abstração – esclarece Feuchtersleben –, já que “a alma não se revela senão pela sua união com a matéria”. Logo, seria inútil demonstrar que a alma atua no corpo: ambos têm de ser considerados na unidade da sua manifestação. O riso e as lágrimas, por exemplo, são um dos símbolos desta união, cujo vínculo é o sistema nervoso (cf. 10-11)[10]. É nesta perspetiva que o pensamento pode ser encarado como sendo “o acto indivisível da alma e do corpo essencialmente unidos” (10).
A tentativa de localização do ‘órgão da alma’ – a que Feuchtersleben indiretamente se refere, quando afirma a inutilidade de demonstrar a atuação da alma no corpo – foi temática muito debatida nos primórdios do século XIX, tanto por filósofos como por cientistas. Kant, por exemplo – em debate com Soemmerring –, defendia que a análise da alma só poderia ser objeto de estudo da filosofia; ao passo que o estudo das funções cerebrais – tal como o estudo da parte do cérebro considerada responsável pela unificação das perceções sensoriais – seria da exclusiva competência da fisiologia (cf. HAGNER, 1992:9). Seria esta posição filosófica kantiana – que pressupunha a impossibilidade da existência de uma ciência que tratasse do corpo e da alma, em simultâneo – que acabaria por determinar o curso que o estudo desta temática futuramente tomaria, como esclarece o mesmo autor:
With Kant’s rejection of any philosophical relevance of the search for the organ of the soul by means of anatomy and physiology, the demise of this concept was in sight, and it survived only briefly, until it was replaced by two completely different concepts. The complete failure of Soemmerring’s claim had consequences for the subsequent development of anatomy and physiology: either they avoided radically any philosophical viewpoint and competence; or they claimed to be philosophical in themselves. Both positions were upheld in early nineteenth-century Germany (HAGNER, 1992:10).
Feuchtersleben, porém, ao desenvolver a ciência exposta na obra Hygiene da Alma, refuta esta posição kantiana, sem a debater ou a ela se referir de forma direta. Uma atitude que é compreensível, pois é sua séria intenção deixar aos filósofos, “que teem tempo que perder, todas as indagações sobre a distinção que se haja de estabelecer entre o corpo e a alma, e sobre a existência da alma ou do corpo”; da mesma forma que não tenciona preocupar-se com o facto de atribuir à alma “o poder que os materialistas attribuem a uma certa parte do corpo a que cabe a função de pensar e de querer”; já que – como continua esclarecendo –, qualquer que seja o nome que se dê “á causa, nem o effeito muda, nem muda o ensino que elle nos hade ministrar” (8-9).
Já em relação aos homens “mysticos, com talento”, Feuchtersleben mostra-se mais compreensivo (cf. 21-22); e quando exalta a ação benéfica que as artes – tendo por princípio o sentimento da harmonia – podem exercer, sob a direção da vontade, sobre a saúde do ser humano, recorre mesmo à autoridade de Jacob Böhme, acrescentando: “E até no seio da morte, como disse o mystico Jacques Boehme as almas transportadas nas espheras eternas são envolvidas de harmonia e de luz” (47).
Na nossa visão, ainda que essa seja a única vez que o nome do célebre pensador-místico é mencionado na Hygiene da Alma, os princípios teosóficos de Jacob Böhme (1575-1624)[11] encontram-se presentes em toda a obra como um pano de fundo, concretizando-se, particularmente, na noção de alma que Feuchtersleben possui, e que Böhme expressa da seguinte forma: “[…] e nenhuma coisa há na natureza, criada ou nascida, que não revele também exteriormente a sua forma interior: pois o que é interior trabalha consecutivamente para a sua revelação” [12] (“[…] und ist kein ding in der natur, das geschaffen oder gebohren ist, es offenbahrt seine innerliche gestalt auch eusserlich dann das innere arbeit stets zur Offenbahrung”) (BÖHME, 2009, 518).
É partindo desta conceção de alma que Feuchtersleben pode afirmar que, para ele, só os factos positivos são relevantes, porque só esses são capazes de demonstrar que “a alma tem o poder de affastar do corpo as enfermidades” (19). Um poder anímico que Mr. Morlays desconhece, porque nele – à semelhança do que acontece com outras personagens dinisianas – essa ‘energia’ ainda não despertou, como deveria ter despertado, de forma espontânea e natural. Nas palavras de Feuchtersleben:
É seguindo este preceito da psicologia médica de Feuchtersleben que Júlio Dinis submete, por vezes, algumas das suas personagens romanescas a esse ‘abalo violento’ que pode despertar a vontade própria.
3. O despertar da vontade própria em Henrique de Souselas. No capítulo I de A Morgadinha dos Canaviais, a personagem Henrique de Souselas é apresentada pelo narrador da seguinte forma:
Este Henrique de Souselas atingira a idade dos vinte e sete anos, vivendo, como dissemos, aquela elanguescedora vida da capital, e dividindo as atenções do espírito pela política, pela literatura e pelos destinos do teatro de S. Carlos, do qual estava habilitado a fazer circunstanciada crónica, que abrangesse os últimos dez anos.
Não concebia vida fora daquilo.
O mundo para ele era Lisboa. Não sentia desejos, nem imaginava possibilidade de visitar a Europa, quanto mais a província; o que seria maior façanha.
[…] a indolência lisbonense manietava-o ali […]
De certo tempo em diante começou, porém, a incomodá-lo uma espécie de vácuo interior, um mal-estar, doença infalível nos celibatários sem família, quando chegam à idade a que chegou Henrique, e passam a vida como ele.
Tudo lhe causava fastio […]
O demónio da hipocondria, esse demónio negro e lúgubre, implacável verdugo dos ociosos e egoístas, o qual havia muito o espiava, apoderou-se dele em corpo e alma.
Aí temos, desde esse instante, Henrique muito preocupado com a sua pessoa, imaginando-se vítima de mil e uma moléstias, as mais disparatadas e incompatíveis […] (DINIS, [1977]:237-238).
Indolente e celibatário, Henrique de Souselas é uma personagem que encarna o viver ocioso e egoísta de um homem jovem que vive confortavelmente na capital do seu país, sem encargos nem responsabilidades. Por isso, não é de estranhar que a hipocondria, ‘esse demónio negro e lúgubre’, se tenha apoderado dele ‘em corpo e alma’ – transformando-o num ser humano que se imagina ‘vítima de mil e uma moléstias’. Logo, é desse estado apático em que se encontra – originado por uma forma passiva de viver, própria de quem se julga ‘vítima’ – que esta personagem dinisiana terá de ser despertada, por meio de um ‘abalo violento’ que nela faça surgir a vontade própria. Um abalo que Henrique de Souselas vai sofrer, numa “aldeia sertaneja do Minho”, aonde se desloca para passar uma temporada em casa de uma tia, depois de um “médico velho e grave” – o primeiro médico que o escuta sem se rir dele – lhe dizer, “muito sisudo”: “– Homem! O senhor está realmente mal. Esse estado de imaginação não pode prolongar-se mais tempo, sem romper por aí em alguma doença que o sacrifique. Se quiser salvar-se, saia-me daqui, enquanto é tempo” (239). O prognóstico proferido por esse ‘médico velho e grave’ encontra-se confirmado, originalmente, na obra Lehrbuch der ärztlichen Seelenkunde (1845), a segunda obra composta por Ernst von Feuchtersleben no campo da psicologia médica[13]. Nessa obra, o seu autor, analisando a melancolia, da perspetiva da medicina psicossomática, descreve o percurso evolutivo dessa doença, que – como se pode ler na seguinte passagem da versão inglesa – pode passar de estado agudo a crónico:
[…] in melancholy, especially in is highest degree, hopelessness. Here the senses, memory, and reaction give way, the nervous vitality languishes at its root, and the vitality of the blood, deprived of this stimulant, is languid in all its functions. Hence the slow and often difficult respiration, and proneness to sighing, the slow weak pulse, diminished warmth, pale, dry, shrivelled skin, the impediment to peristaltic motion, and to all secretions and excretions, which phenomena indicate stases and their consequences. When the painful emotions are acute, they might be called convulsions of the mind, which rapidly spread through the whole nervous system; when they are chronic, they deeply affect vegetative life, and the body wastes away. Yet, especially in the female sex, there is a certain pleasure in sadness (Ideler calls it the bliss of suffering, the luxury of woe), which belongs in some, individually, to a state of comparative health (FEUCHTERSLEBEN, 1847:135).
Será o primeiro encontro com Tio Vicente, o velho ervanário, no capítulo X da Crónica da Aldeia acima referida, que irá despertar Henrique de Souselas da sua apatia, ajudando-o a curar a melancolia de que sofre. O choque – provocado pelo confronto de duas personalidades que se opõem quase diametralmente – ocorrerá ao longo de um diálogo travado entre os dois homens ‘ao ar livre’, na presença de Madalena, Cristina e Augusto – três personagens jovens, todas amigas de Tio Vicente, que participam, juntamente com Henrique, numa “excursão matinal”, para ver “do alto da ermida o romper do Sol”, “Em uma manhã de Dezembro” (DINIS, [1977]:321-322).
Tio Vicente aproxima-se dos “quatro peregrinos” (327), quando estes repousam, terminado um almoço que lhes fora servido “sobre uma mesa de pedra e lousa e ao ar livre” (331), junto de uma capela, que se situa no cimo de um monte que se inundou de luz, depois de “o rei da criação” se ter desprendido “da terra, de onde parecia surgir”, subindo nos ares, “como um brilhante aeróstato, ao qual se rompessem as prisões que o retinham” (330). É neste quadro, que representa simbolicamente uma ressurreição – pressentida por Henrique de Souselas durante os breves momentos em que, parecendo “haver esquecido as suas mil e uma doenças”, conversa “animada e espirituosamente” (327) –, que o velho ervanário, depois de estender “familiarmente a mão a Augusto” e de cumprimentar Madalena e Cristina “com maneiras paternais”, se volta para Henrique, e fitando-o “com olhos inquisidores e quase desconfiados”, termina por lhe dizer simplesmente: “– Guarde-o Deus!” (335).
A frieza do tratamento, por parte de Tio Vicente, irá escalar, logo de seguida, quando o velho ervanário, voltando-se para Madalena, a questiona acerca da proveniência de Henrique, referindo-se ao jovem na terceira pessoa do singular. Um comportamento ofensivo, na perspetiva de Henrique, que, como Madalena esclarecerá mais tarde, “ainda está muito pouco preparado para viver na aldeia”, por isso, “Tudo lhe parecem faltas de atenções, propósitos de ofender! depois há um sarcasmo cruel nas suas palavras, a que os espíritos não estão aqui habituados e de que se sentem por isso feridos” (336-337). Na realidade, Henrique não compreende os modos “próprios do campo”, por essa razão, também não pode aceitar o comportamento de Tio Vicente, que, na sua opinião, não passa de um doido a quem a “extrema velhice” trouxe a “imbecilidade” (337).
No entanto, será Tio Vicente quem – baseando-se em conhecimentos extraídos da obra Polyanthea Medicinal, de Curvo Semedo (SEMMEDO, 1704) – irá esclarecer Henrique acerca da sua possível doença, afirmando que ela pode ter cura, pois já se curaram ‘mais rebeldes melancolias’:
– Mania e melancolia não são a mesma coisa – emendou o velho. – Também lá na Polianteia se diz isso bem claro. A melancolia é sem ira nem fúria, porque procede de humor frio, e a mania de sangue quente ou cólera requeimada.
– De cólera requeimada? Deve ser uma coisa terrível! – continuou Henrique, no mesmo tom.
Madalena, receando que a ironia dos comentários de Henrique acabasse por irritar o velho, perguntou a este:
– Parece-lhe que terá cura a doença?
– Pode ter; mais rebeldes melancolias se curam. Este é divertido afinal. Hum!… Mas contra tristezas e manias não há como as folhas de ouro em caldo de frangão com flores de borragem e de erva-cidreira.
– Este é como os calvos, que vendem aos outros pomadas para fazer nascer o cabelo; é um argumento vivo contra a eficácia da beberragem que receita para as manias – disse Henrique a meia voz para Augusto, que lhe ficava próximo.
O velho, que não tinha ainda dado mostras de ofensa pelas maneiras impertinentes de Henrique, corou desta vez e faiscou-lhe nos olhos um relâmpago de irritação (DINIS, [1977]:335-336)[14].
As afirmações de Tio Vicente soam provocatórias aos ouvidos do jovem citadino, que o velho começa por considerar ‘divertido’, sem o levar realmente a sério. No entanto, quando os comentários irónicos que Henrique de Souselas vai proferindo ao longo do diálogo se tornam cada vez mais insultuosos, Tio Vicente despede-se simplesmente do jovem dirigindo-lhe as seguintes palavras:
Está bom, menino – replicou ele amargamente. – Não diga mais, para se não envergonhar depois. Eu calo-me; e desculpe-me, se falei. Estou costumado a ver pobres e ricos virem a minha casa pedir-me o favor de os atender. Ainda assim aí vai mais um conselho, apesar de mos não pedir. Seja atencioso com a velhice que não é baixeza nenhuma. Mas que é isto? – exclamou, mudando de tom e olhando para um redemoinho de folhas secas que o vento trouxera até perto dele. – As folhas vêm deste lado! Então virou o vento? É verdade. Ah! sim?… Percebo (DINIS, [1977]:336).
Tio Vicente, homem laborioso e caridoso – que está sempre pronto a ajudar tanto a pobres como a ricos –, encarna a figura do ancião sábio que vive conforme as leis da Natureza. Por isso, ele é o único que sabe interpretar a mudança do vento, que prenuncia metaforicamente a mudança que se irá operar na mente de Henrique de Souselas.
Esse (des)encontro entre as duas personagens – que representam simbolicamente dois mundos tão diferentes: o citadino e o campesino – será decisivo para o despertar da consciência de Henrique de Souselas, que, no final dessa Crónica da Aldeia dinisiana, se transforma num “rico e laborioso proprietário rural” (587), tendo esquecido, por completo, a ‘mania’ de que padecia.
Considerações finais. Num estudo sobre a história da melancolia e da depressão[15], German Berrios esclarece que a psicopatologia descritiva, assim como a conhecemos nos dias de hoje, surgiu nos anos quarenta do século XIX, em França. Nesse tempo – acrescenta o mesmo autor –, os diagnósticos psiquiátricos enfatizavam sobremaneira as manifestações afetivas da síndrome depressiva:
Pela leitura destas afirmações de Berrios se pode compreender por que razão os preceitos de Ernst von Feuchtersleben são tão valorizados por Júlio Dinis, nessa segunda metade do século XIX, levando-o a aplicá-los à caracterização das personagens que cria.
Muitas dessas personagens dinisianas – como Mr. Morlays ou Mr. Brains – podem ser apreendidas como sendo, unicamente, a encarnação de uma ideia. Segundo Christoph Bode (2011), tais personificações não surgem apenas na literatura alegórica, mas também em romances realistas. O mundo romanesco de Charles Dickens, por exemplo, é povoado por personagens que podem facilmente reduzir-se a um conceito, como, por exemplo, Mr Micawber (do romance David Copperfield), enquanto encarnação de um inquebrantável ‘otimismo’ (cf. 126-127). Outras personagens – como Mr. Whitestone ou o Tio Vicente – são um pouco mais complexas e podem ser consideradas como tipos ou stock figures, pois já não são só definidas por uma única ideia, mas através de clusters ou características complexas. Assim, Mr. Whitestone, por exemplo, representa um tipo nacional: o inglês, imigrante em Portugal. Por isso, esta personagem funciona como representante do grupo a que pertence. Segundo Bode, este é o tipo de personagem que está mais indicado para analisar os estereótipos, podendo ser uma forma de crítica social ou até de autoironia (cf. 128). Por último, outras personagens – como Henrique de Souselas – são redondas ou multidimensionais. São personagens dinâmicas, que mantêm o leitor em suspense, surpreendendo-o com um comportamento que só será reconhecido como coerente, posteriormente. Ou seja, obrigam o leitor a uma modificação da sua conceção, a uma diferenciação progressiva da imagem que delas forma (cf. 130). É este último tipo de personagem que Júlio Dinis, seguindo os preceitos da psicologia médica de Feuchtersleben, submete, por vezes, a esse ‘abalo violento’ que pode despertar a vontade própria.
Referências
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[1] Ernst Maria Johann Karl Freiherr vonFeuchtersleben (1806-1849) – Professor da Faculdade de Medicina de Viena e Ministro da Instrução Pública na Áustria – celebrizou-se no seu tempo pelos estudos que efetuou na área da psicologia médica. Médico, de profissão, foi também poeta e ensaísta. A sua primeira obra no campo da psicologia médica – intitulada Zur Diätetik der Seele – foi muito divulgada no século XIX, através de um elevado número de edições em língua alemã e várias traduções para diferentes línguas (cf. BURNS,1954:190-194).
[2] O romance Uma Família Inglesa – onde Júlio Dinis refere o nome de Feuchtersleben – foi publicado em volume em 1868 (e em folhetins, no Jornal do Porto, em 1867). A primeira versão francesa da referida obra de Feuchtersleben surgiu em 1853, e a primeira versão inglesa em 1858. A primeira tradução portuguesa (realizada por Ramalho Ortigão), porém, só surgiu em 1873. Também é de salientar que a divulgação desta obra de Feuchtersleben em Portugal, a nível académico, parece ter sido um tanto tardia. Na lista dos “Livros comprados pela Bibliotheca [de Coimbra] durante o anno economico de 1873-1874” encontra-se uma referência relativa à primeira aquisição da obra, na seguinte versão francesa: “FEUCHTERSLEBEN (Le baron E.) – Hygiène de l’âme, traduit de l’allemand par le Dr. Schlesinger-Rahier, 3.me édition. Paris, 1870, in 8.o – 1 v.” (ANNUARIO, 1874:213).
[3] Inspirando-se em Egas Moniz, Manuel Correia (2010) considera Júlio Dinis um precursor de Freud: “Em Júlio Dinis e a Sua Obra, Moniz toma como instrumento de crítica literária, uma aplicação psicobiográfica (neste caso, no terreno da interpretação dos sonhos) a um episódio extraído de Uma Família Inglesa. § No entendimento de Egas Moniz, se o Abade Faria é considerado, ao fim e ao cabo, o precursor do hipnotismo moderno – do diagnóstico da histeria e da identificação e tratamentos das neuroses – Diniz, poderia ser considerado um psicanalista avant la lettre” (233).
Segundo a leitura que propomos neste estudo, porém, a influência que Júlio Dinis recebe nesse campo do saber – que se repercute na sua obra, sobretudo no desenho do carácter das personagens de ficção – é a da psicologia médica desenvolvida por Feuchtersleben, discípulo de Karl Hartmann e precursor de Sigmund Freud (cf. PARKIN, 1975:477-481). Devemos também salientar – com Otto Marx (2008) – que Ernst von Feuchtersleben ainda foi considerado um Naturphilosoph (filósofo da natureza), até o momento em que se despediu da posição romântica, na sua obra Principles of Medical Psychology (1847) [Lehrbuch der ärztlichen Seelenkunde (1845)]. É nos seguintes termos que Marx introduz Feuchtersleben e o seu mestre: “Although Hartmann had been designated as the initiator of psychology and psychiatry in early nineteenth century Vienna, Damerow apparently did not think so, nor did Damerow mention Hartmann’s student, Ernst von Feuchtersleben, whose Dietetic of The Soul, first published in 1838, was to become the most popular book of its type. E. von Feuchtersleben’s Principles of Medical Psychology was clearly another matter, but it appeared a year later and Damerow then recognized its importance” (345). Analisando de um ponto de vista histórico-sistemático o desenvolvimento da psiquiatria na Alemanha, Marx salienta ainda a influência que exerceu, no século XIX, a Naturphilosophie de Schelling nas ciências médicas: “As a movement in literature, the romantic school quickly dissipated after 1810. In German science and medicine, however, its influence continued for several more decades. In the newly arising field of psychiatry its impact dominated well into mid-century” (318).
[4] Acerca da teoria dos humores – fundada nos quatro elementos (terra, ar, fogo e água), a que correspondem quatro qualidades (quente, frio, seco e húmido) –, desenvolvida por Galeno (130-200 d.C.), que se baseou na anterior teoria de Hipócrates (460-? a.C.), escreve Flavio Edler: “A melancolia, causada pelo excesso de bile negra, dividia-se em três tipos de acordo com Galeno, dependendo da região do corpo onde ocorresse concentração de atrabile” (EDLER, 2006:36). Joffre Rezende, por seu turno, esclarece que a “concepção dos quatro humores do corpo humano” – em que baseia a teoria dos quatro temperamentos (sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico), desenvolvida por Galeno – teve a sua origem na “transposição da estrutura quaternária universal para o campo da biologia”. Encaixando-se perfeitamente na conceção filosófica da estrutura do Universo, segundo “os filósofos gregos da escola pitagórica”, a doutrina dos quatro humores também estabelece uma correspondência entre estes e as quatro estações do ano (cf. REZENDE, 2009:149-152).
[5] Segundo Paracelso, o fogo é o grande Arcano da Arte e é comparável ao Sol do mundo natural. É neste sentido que afirma acerca do fogo: “‘It heats the furnace and the vessels, just as the sun heats the vast universe’ (PW, 74)” (Apud LYNDY, 1998:76). Esse mesmo elemento, num grau mais elevado, corresponde ao fogo filosófico que possui propriedades purificadoras que permitem lavar a matéria da pedra, porque é água seca, a fonte onde o rei e a rainha tomam banho, ou água ardente, que purifica o ouro: “According to Artephius, the third fire is ‘called the fire against nature, because it is water… [it] is the fountain of living water where the king and queen bathe themselves’ (SB, 35). This is the mercurial water, the water which burns, the water which does not wet the hands, the magical transformative substance which can dissolve gold without violence, and coagulate it. Philalethes wrote: ‘O Mercury, thou wonder of the world… This is our water, our secret fire’ (Marrow, bk. 3, 42)” (77).
[6] Segundo Eric Evans (1991), Sir Robert Peel (1788-1850), “As an early-nineteenth-century Protestant”, “had a background and upbringing which conditioned him to believe that Roman Catholicism was a primitive, authoritarian religion appropriate only to simple minds and inimical to liberty and freedom of speech” (7).
[7] Na sua última obra, Antropologie (1789), Kant – tentando “aplicar critérios sistemáticos ao que tinha sido, até então, uma prática de notórios diletantes, bem viajados e providos de arguto dom de observação” –“atribui o ‘temperamento nacional’ a uma combinação de fatores culturais e de fatores inatos, o que quer dizer relacionados com a origem étnica dos indivíduos” (cf. PENNA, 1974:14-15).
[8] Como esclarece Júlio Dinis, na sua Dissertação Inaugural, esta opinião era defendida por Foissac: “Na atmosphera de tristeza dos habitantes da Grã-Bretanha encontra o Snr. Foissac a explicação do seu tradicional spleen; no ceo inundado de luz dos Meridionaes a da petulancia e vivacidade d’estes” (COELHO, 1861:37).
[9] Na ética aristotélica, a felicidade corresponde ao “bem perfeito” e resulta do cultivo da virtude – a faculdade de fazer o bem –; e as maiores virtudes, na perspetiva de Aristóteles “são necessariamente as que são mais úteis aos outros” (Retórica, 1366 b). Daí que este filósofo faça depender das ações virtuosas – que são determinadas pelo “carácter” e pelo “pensamento” do ser humano (Poética, 1449 b) – a “boa ou má fortuna dos homens” (Poética, 1450 a).
[10] No capítulo VI de uma das suas Crónicas da Aldeia – As Pupilas do Senhor Reitor –, Júlio Dinis também expressa esta mesma convicção de Feuchtersleben, quando afirma pela voz do narrador: “Não sei que moda anda agora de se não considerar o choro como a mais eloquente expressão do pesar! Eu, por mim, é dos sinais em que deposito mais fé” (DINIS, [1977]:26).
[11] Sobre este assunto, veja-se o que escreve a autora do presente artigo na sua tese de doutoramento (GRIEBEN, 2016: 117-121).
[12] A tradução é da nossa responsabilidade.
[13] Ernst von Feuchtersleben compõe essa sua segunda obra no campo da psicologia médica – que na versão inglesa (versão aqui utilizada) apresenta como título The principles of medical psychology: being the outlines of a course of lecture –, principalmente, para instrução de estudantes de medicina, como ele próprio esclarece no início do “Author’s Preface”: “The primary object contemplated by me has been to write a Compendium for a limited class of readers – Medical Students in a state of transition from theory to practice” (1847:1). Recordemos que, quando Júlio Dinis escreve A Morgadinha dos Canaviais, a sua segunda Crónica da Aldeia (publicada, primeiramente, em folhetins, no Jornal do Porto, em 1867), ocupa já, desde 1865, o cargo de demonstrador da secção médica da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, onde tinha concluído o curso de medicina, em 1861.
[14] Através do esclarecimento que Tio Vicente fornece, na passagem acima transcrita – acerca da ‘mania’ e da ‘melancolia’, fundamentando-se na Polyanthea Medicinal para exprimir os seus conselhos terapêuticos –, Júlio Dinis também demonstra conhecer bem essa obra de Curvo Semedo – como se pode aferir pela leitura da seguinte passagem, extraída do Capítulo XXVIII, do Tratado 2: “Manìa, he hum delirio furioso com ìra, & atrevimento, mas sem frio, nem febre; & nisto differe do Frenesi, que he delirio com febre ; & da Melancholia, que he sómente tristeza, & medo sem ira , nem furia : differe tambem ; porque a Melancholia procede de humor frio, & a Manìa, de sangue muy quente, ou de colera requeymada, ou de melancholia esturrada” (218).
[15] Veja-se, também, o que escreve Stanley Jackson sobre este assunto (2008: 443-460).
Retomamos neste artigo, com pequenas alterações, o texto que compõe um subcapítulo da nossa tese de doutoramento (intitulada Júlio Dinis, apologista da Kunstreligion: influência de uma corrente de pensamento europeu no percurso literário dinisiano), defendida em 29 de setembro de 2016 (Universidade Aberta, Lisboa) e disponível, desde 14 de novembro de 2016, em https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/5717
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