A dupla face da vingança, na visão de Júlio Dinis


Há um poema dinisiano que dificilmente esqueceremos, depois de o termos lido. A razão da sua permanência na nossa memória é compreensível: a principal temática nele abordada – o desejo de vingança – corresponde a um instinto humano, ou seja, é algo de primitivo que se encontra latente em cada um de nós, enquanto seres humanos. Mas Júlio Dinis, nesse seu poema – intitulado “Castigo de Deus” –, trata o tema de uma forma menos comum, apresentando a dupla face da vingança.


O poema descreve um cenário de guerra. É um palco sangrento, em que os protagonistas da ação exteriorizam de forma impiedosa o seu desejo de vingança, que transforma antigos derrotados em vencedores. No entanto, é precisamente sobre este último aspecto que o poeta nos estimula a refletir, cada vez mais, à medida que a leitura do poema de vai aproximando do final: terá a guerra, verdadeiramente, vencedores? O que se ganha com a vingança?

Sim, o que ganha o vencedor, terminada a guerra, quando esse vencedor se transforma em “furiosa plebe” que “piedade não concebe” e “Corre em tropel, corre ébria de vitória, / Arrastando os cadáveres despidos. / Maculando os lauréis da sua glória / Na lama, envolta em sangue dos vencidos”?

Um desses vencidos é um velho soldado que, no estertor da agonia, suplica que lhe dêem água: “‘Água, dai-me água!’ Brada com voz rouca, / Que se lhe prende na árida garganta. / Ao longe, a turba, numa orgia louca, / Hinos blasfemos, implacável canta”. O velho soldado – o vencido – suplica que alguém lhe alivie a sede, na hora derradeira; os ‘vencedores’, esses festejam alegremente a sua vitória – bem longe do “vale retirado, umbroso, oculto”, onde Júlio Dinis, significativamente, coloca o “velho agonizante”.

Contudo,

© Romolo Tavani – stock.adobe.com

Como se Deus escutasse

O grito do agonizante,

Surge do velho diante

Uma angélica visão;

Com as lágrimas em fio

Pelas faces cor de neve

Caminha com passo leve

Para o prostrado ancião.


Na brancura do semblante,

No olhar magoado e aflito

Lê-se um poema inteiro escrito

De caridade e de amor.

Corre ansiada e pressurosa

E toda cheia de graça

Em socorro da desgraça

Com piedoso fervor.


Num cenário sangrento de guerra, motivado por um desejo de vingança que é nutrido por homens de todas as idades – cenário esse que é descrito em estrofes formadas por quatro versos –, introduz Júlio Dinis, neste seu poema, de forma intercalada, um quadro – que o poeta descreve em estrofes formadas por oito versos –, cuja figura central, “uma angélica visão” que corre em “socorro da desgraça”, corresponde simbolicamente à outra face da vingança. Mas quem é, na realidade, esta figura, em cujo olhar se espelha, poeticamente, a “caridade”? Simplesmente, uma jovem caridosa, que o poeta não identifica, porque não é importante quem ela é na vida real, só o que ela representa: “O castigo de Deus”, que vem já anunciado desde o título que Júlio Dinis atribui ao poema.


O texto acima transcrito foi originalmente publicado no jornal “João Semana”, em 15 de outubro de 2017: cf. GRIEBEN, Fernanda – A dupla face da vingança, na visão de Júlio Dinis. In “JOÃO SEMANA”. QUINZENÁRIO OVARENSE. 103:19 (2017), p. 5.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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