Um “Povo-Saudoso”


“Mais importante que ter sido ou ter tido Império, mais decisivo que haver usufruído riquezas mortas, ou até ter sido actores de uma gesta científica que podíamos ter tido num grau e esplendor que não tivemos, para Pascoaes o haver interiorizado como alma da nossa alma o sentimento absurdo mas iluminante dessa visão positiva da vida como sonho que se sabe sonho mas que no interior desse sentimento que se recupera como criadora saudade, desejo de um Desejo que jamais tomará a forma de uma possessão idolátrica, subtraindo-nos assim, de raiz, à tentação moderna por excelência, a de Fausto: saber, poder para reinar sobre a Natureza e os Outros. É nesse sentido que Pascoaes nos outorga e se outorga o estatuto de Povo-Saudoso, quer dizer, de povo que apercebe em tudo quanto toca a sombra da ilusão e da morte, mas a uma e outra exige a promessa da vida” (LOURENÇO, E., 1988: 102-103).


O saudosismo de Teixeira de Pascoaes corresponde a um sonho, é uma idealização da realidade, em que “a redenção universal passa pela redenção do povo português e pela sua particular missão no mundo” (CALAFATE, P., 1999-2001, Vol. V, Tomo 1, p. 27). Neste sentido, a saudade é “a alma de Portugal” e esta “alma pátria manifesta-se em pluralidade de sentimentos colectivos”, sendo “naturalmente bucólica e panteística, telúrica e mística, sensual e espiritual, pagã e cristã, em si realizando a perfeita aliança de Jesus e Pã, de Vénus e Maria” (cf. id.: 40). A poesia torna-se então expressão da “Verdade” (que assume o carácter de verdade mitológica), porque “o poeta é servido pelo poder visionário da fantasia” (id.: 35), e a “alma-pátria” manifesta-se na literatura, da mesma forma que se manifesta na linguagem popular, nas palavras intraduzíveis, no génio da língua, na filosofia, na jurisprudência, na arte, na legenda, nas frases célebres e na religião (cf. CALAFATE, P., 1999-2001, Vol. V, Tomo II, p. 82).


Na perspetiva filosófica de Teixeira de Pascoaes, as diferentes formas de manifestação da “alma-pátria” revelam tanto as qualidades como os defeitos intrínsecos do povo português que, impregnado do espírito divino, possui uma identidade inconfundível que se espelha na sua cultura genuína. Por isso, será tomando “consciência dos seus valores espirituais próprios” (id.: 80) que Portugal poderá, enquanto Nação, readquirir a sua identidade original, que se encontra adormecida não só na sua alma, mas também no seu próprio corpo (“nas suas componentes de sangue e terra”), pois é a síntese de ambos – alma e corpo – que constitui a raça portuguesa (cf. CALAFATE, P., 1999-2001, Vol. V, Tomo I, p. 41). Uma raça que vacila entre o “sono” e o “sonho”, mas que vive a dimensão da “Esperança”, abrindo o futuro da Pátria “na direcção de um misterioso ‘reino de Deus’” (cf. id.: 42). Um reino, porém, que nunca se instaurará definitivamente, porque toda a vida é tensão evolutiva entre dois pólos: o positivo e o negativo, e o povo português vive entre a “Lembrança” que lhe permite conhecer o que foi e o “Desejo” que lhe permite pressentir o futuro. Mas é vivendo esta tensão que ele se pode revelar como o “verdadeiro sujeito e protagonista do ressurgimento da Pátria como ‘obra colectiva’” (cf. id.: 43). Uma Pátria que Teixeira de Pascoaes diz ser “um ser espiritual que depende da vida individual dos portugueses” (apud CALAFATE, P., 1999-2001, Vol. V, Tomo II, p. 82).


Segundo António Braz Teixeira, o pensamento poético-filosófico de Teixeira de Pascoaes e o de Guerra Junqueiro aproximam-se no “evolucionismo espiritualista” que ambos professam (cf. p. 15). E é nesse sentido que o pensamento saudosista de Pascoaes subverte ou transmuta o conceito de saudade – assim como ele se apresenta numa perspetiva diacrónica, de acordo com as definições apresentadas por D. Duarte, Duarte Nunes de Leão ou D. Francisco Manuel de Melo (cf. id.: 16) –, elevando-o “do domínio meramente pessoal ou subjetivo em que, enquanto sentimento, a anterior reflexão os considerava, ao mais alto plano cósmico e transcendente, não só quando afirmava que a saudade ‘é a própria alma universal, onde se realiza a unidade de tudo quanto existe’, como ainda ao dizer que ela ‘é a Lembrança e a Esperança casadas e excedidas num além de misteriosa ansiedade’” (id.: 17). É para este além de misteriosa ansiedade que todos os seres tendem, de forma natural e espontânea, pois o mantêm vivo na memória que alimentam com o seu amor (cf. ibid.). E este é um movimento espiritual evolutivo, em que a criação “obedece a um fim ou a um desígnio divino, a uma teleologia transcendente, não se apresentando como algo de estático, definitivo ou concluído num passado remoto, configurando-se, antes, como uma realidade dinâmica e em devir, através do processo evolutivo, que torna presente o mistério da origem” (id.: 18). Mistério este que encerra em si uma verdade mitológica, à qual só se pode aceder pela via poética; já que “A via da razão não ultrapassa o plano da ‘realidade’” (CALAFATE, P., 1999-2001, Vol. V, Tomo I, p. 35). É este o mistério da saudade, que é, acima de tudo e principalmente, saudade metafísica, sendo “ao mesmo tempo, e em certa continuidade ontológica, uma saudade antropológica e cósmica” (id.: 37). Assim se entende, porque, “No modo de ver de Pascoaes, a saudade metafísica inere a toda a ‘Criação’ como espécie de condição transcendental” (ibid.), uma vez que todo o ser criado é imperfeito e a própria Criação corresponde a um estado de queda divina. Logo, o homem saudoso “não é mais que a consciência sofredora desse Deus decaído, Deus acordando do sono que dorme no mundo e, com esse acordar, se recordando da sua originária condição divina e abrindo o desejo e a esperança a ela regressar. Essa lembrança e esse desejo-esperança são a própria essência da saudade (cf. ibid.), que se apresenta como “reveladora do mistério do ser universal” (id.: 44).


OBRAS CITADAS:


CALAFATE, Pedro, coord. – História do Pensamento Filosófico Português. Vol. V. Lisboa: Caminho, 1999-2001.

LOURENÇO, Eduardo – O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português. 3a ed. Lisboa: Publicações dom Quixote, 1988.

TEIXEIRA, António Braz – Em torno da Metafísica da Saudade de Teixeira de Pascoaes. In Revista da Faculdade de Letras, Filosofia, Universidade do Porto. II:21 (2004), p. 13-26.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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