Esperança de liberdade: um sonho antiquíssimo


Quando vejo o céu, obra dos Teus dedos,

a lua e as estrelas que fixaste,

que é um mortal, para dele te lembrares,

e um filho de Adão, que venhas visitá-lo?


E o fizeste pouco menos do que um deus,

coroando-o de glória e beleza.

Para que domine as obras de Tuas mãos

sob seus pés tudo colocaste:


Ovelhas e bois, todos eles,

e as feras do campo também;

a ave do céu e os peixes do oceano

que percorrem as sendas dos mares.


O texto acima citado (Salmo 8,4-9) não é um poema simbolista, mas podia ser. Pois o drama humano existencial que o salmista canta é já o mesmo que os poetas simbolistas irão exprimir em versos brancos, como estes onde a musicalidade ressoa, na língua em que foram originalmente redigidos. Daqui se poderá concluir que – este – é um drama muito antigo.


Na Modernidade, porém, este conflito latente no ser humano – entre o que ele é: um mortal, um filho de Adão (ou seja, um ser que só conhece as suas origens mitológicas e não as científicas); e quem é: quase um deus, coroado de beleza e glória, rei da Criação – entra em grande efervescência. Porquê? Talvez porque em nenhuma outra época da História o ser humano tenha sentido tão viva a esperança de, finalmente, ver resolvido este conflito interior que o avassala, desde que tem consciência de ser alguém (um ser racional e autónomo) que se transformará em algo (num cadáver).


É a rápida evolução científica e as espectativas que ela traz consigo que animam este sonho antiquíssimo. E será o mesmo evoluir da ciência que trará o desencanto. No entanto, algo de muito concreto – fruto desse desejo utópico, que é expressão do ideal em diversas ideologias – permanecerá até aos nossos dias: a conquista dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana.

Esta conquista desenvolver-se-á de forma gradativa, na Europa, desde os finais do século XVIII até hoje. Como explana Teixeira Fernandes:


Que a Europa é o terreno propício à afirmação dos direitos do homem será uma questão indesmentível do ponto de vista histórico. Ideias aí germinadas inspiram tanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, como dão corpo à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, da Revolução francesa. A mesma luta contra a opressão e a dominação e a mesma efervescência de liberdade e de democracia animam os povos de além e aquém Atlântico no termo de longas servidões e nos inícios da nossa contemporaneidade (FERNANDES, A. T., 1998: 11).


O conceito de democracia, porém, chegou aos nossos dias revestido de forte polissemia, devido aos «desvios introduzidos nas democracias, no decurso do processo da sua instituição nas sociedades ocidentais» (id.: 229). Aliado aos ideais de soberania burguesa, durante os fins do século XIX e princípios do século XX, o conceito irá evoluir de forma ambígua, denunciando o «processo de degradação da energia e das formas sociais e políticas», já que, de «governo do povo, transformou-se em governo para o povo. Este, apenas em momentos mais ou menos raros, quando é chamado a exercer o seu voto mediante o sufrágio, assume verdadeiramente o poder» (id:, 228).

Saliente-se que é nessa mesma época que surge a Sociologia como ciência autónoma. Por isso, já desde os finais do século XIX, se assiste ao aparecimento de uma vasta literatura sociológica que irá acompanhar e acusar essa evolução do conceito de democracia. A Literatura também o fará; porém, como veremos de seguida, noutro registo.


Do ponto de vista dos movimentos artísticos, a Modernidade apresenta-se como um fenómeno de explosão de ‘-ismos’, que se deve à necessidade que o artista moderno sente de manifestar a revolta da “imaginação”, que se sentira, anteriormente, aprisionada pelas amarras da “razão”. Eça de Queirós deixou-nos um texto paradigmático a este respeito, do qual cito uma pequena parte:


Quais são as causas, quais as consequências desta revolta? A causa é patente, está toda no modo brutal e rigoroso com que o Positivismo científico tratou a imaginação, que é uma tão inseparável e legítima companheira do homem como a razão (QUEIRÓS, E., 2000: 264).


O Eça que assim se pronuncia em 1893, ainda é o mesmo homem que pertencera à Geração de 70 e que – juntamente com Antero de Quental – participara nas Conferências do Casino (1871), partilhando o mesmo espírito revolucionário que as animara (inspirado no Positivismo científico), reagindo ao Romantismo decadente. Ambos, porém, Eça e Antero, já se considerarão em 90, os ‘vencidos da vida’. A que se deverá tão drástica transformação, na mente destes autores, num curto período de tempo?


O texto “Declaração da independência da imaginação e declaração dos direitos do ser humano à sua própria loucura” (uma versão alemã do texto encontra-se disponível em: http://www.sgipt.org/kunst/sur/dali_ue.htm), de Salvador Dalí, talvez nos dê a resposta que procuramos, ao mencionar a importância das narrativas mitológicas. Composto em 1939 (depois de um encontro, em 1938, com Sigmund Freud), esta “Declaração” de Dalí afirma a necessidade de recriação de mitologias que contribuam para a edificação de uma nova mundividência, que faculte ao ser humano a possibilidade de se rever sobre aspetos então considerados invulgares ou mesmo reprimidos: os do onírico, da líbido, da loucura, do delírio, da esquizofrenia, etc. São, no entanto, aspetos que interessam, não só ao artista, em particular, como ao homem moderno, em geral.


O mito permite a expressão artística atemporal – sem os condicionalismos de uma arte comprometida com o seu tempo, empenhada em veicular uma pedagogia social (tais os propósitos do Realismo) –, enquanto o pensamento crítico, puramente racional, tende a exorcizar o logos do mythos (segundo Paul Ricoeur).

Com o movimento simbolista, surge uma esperança de renovação da linguagem, através do símbolo. E serão os simbolistas que irão evidenciar que o mito, enquanto lugar de conhecimento, pode revelar-se inspirador de produções artísticas capazes de expressar uma ontologia da finitude e do mal (que Paul Ricoeur diz não ser compreensível racionalmente) – tentando exprimir o drama humano existencial.

O Simbolismo lançará então uma proposta de comunhão com o sagrado, no sentido hermético da expressão: o das correspondências.


OBRAS CITADAS:


A BÍBLIA de Jerusalém (1980), São Paulo, Edições Paulinas. 

FERNANDES, António Teixeira (1998) – O Estado democrático e a cidadania, Porto, Edições Afrontamento.

QUEIRÓS, Eça de (2000) – Notas contemporâneas, Lisboa, Livros do Brasil.

RICOEUR, Paul (1969) – Finitud y culpabilidade, Madrid, Taurus.


Fernanda Alves Afonso Grieben

[email protected]

Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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