Arte, vida e verdade


José Régio e o ideário estético da Presença


Na nossa antologia deverão entrar, sobretudo, as poesias que vulgarmente se não prefere; as que, de modo geral, não correspondem ao que se chama “uma coisa digna de antologia’”, as mais intimamente e sinceramente loucas, as mais imperfeitas, etc., etc., se tanto for preciso para que sejam as mais reveladoras. As mais vivas, em suma, nem que essas sejam as mais caóticas, as mais destrambelhadas, as mais cheias de qualidades-defeitos. A vida também é inimiga da perfeição.

José Régio

Quando em 1927 José Régio funda a revista Presença, da qual virá a ser director até 1940[1], torna-se o mentor[2] mais influente de um movimento que vem pôr termo ao interregno cultural em que Portugal se encontrava, depois da tentativa empreendida pelo Orpheu e pelo Portugal Futurista de dotar o país de uma arte moderna. Nas Palavras de José Augusto França, “o país tinha-se posto à margem da geografia cultural do Ocidente, e, preso numa crise social e moral que se prolongava, agarrara-se a valores do século XIX…”. E acrescenta: “Eles viveram, portanto, uma vida entre parêntesis e fabricaram um tempo irreal, ou, melhor, talvez, «ilegal». E a sua acção foi uma espécie de fogo de palha, rapidamente consumido”[3].

A mesma opinião é defendida por Eugénio Lisboa, que se dedicou ao estudo da obra de José Régio[4], a quem estava unido por laços de amizade:


“Quando  José Régio publica, em 1925, os Poemas de Deus e do Diabo, que antecediam de dois anos, o aparecimento do primeiro número da Presença, o seu livro vinha inserir-se, em contraste violento, num panorama literário de um modo geral dessorado e linfático: pelo menos no que respeita àquela literatura que existia aos olhos do público. Os homens do Orpheu e da Renascença, ou se tinham extinguido, ou arrastavam uma esquecida existência de sombras inactuantes. Havia, em paralelo com o «lirismo nacionalista» em vigor, um punhado de nomes fortes – que o público não via”[5].


Os homens do movimento precedente, o do Orpheu – Pessoa, Sá-Carneiro, Almada Negreiros e outros – pouco se preocuparam com  a pedagogia ou o esclarecimento. Foram principalmente um grupo de “agentes provocadores” que mais se entreteve a espicaçar o público do que a esclarecê-lo”[6]. Dever-se-á, contudo, salientar que foi José Régio o primeiro a reconhecer o mérito de autores ligados a este movimento, que viriam mais tarde a colaborar na revista Presença[7]. E, acreditando no testemunho de João Gaspar Simões, “quando em 1930 se inaugura em Lisboa o 1.o Salão dos Independentes, a Presença figura ao lado do Orpheu. […] Ali, pela primeira vez, a gente de Coimbra se associa à de Lisboa numa frente revolucionária da mesma estirpe”[8]. Quanto à Renascença Portuguesa, defende o mesmo autor que a doutrina por ela desenvolvida seria mais mística do que estética. Além do mais, a maior parte dos seus adeptos, depois do lançamento da revista A Águia, não só rejeitaram a doutrina saudosista como a combateram. Esse foi o caso de Raul Proença e de António Sérgio[9]. Bem diferente, porém, foram as posições assumidas não só pelo magistério crítico e ensaístico de José Régio[10], mas também pela Presença em geral. Num texto publicado no jornal O Primeiro de Janeiro, em 1944, José Régio escreve: «À personalidade do artista-criador nada proíbe a presença senão que se falseie; nada impõe senão que se revele»[11]. O que se exige é, no fundo, originalidade. Insiste-se na necessidade de uma literatura viva, baseada na imaginação psicológica (denotando influências de Dostoievsky, da filosofia bergsoniana e da psicanálise de Freud). “O que se exigia do escritor era «uma sinceridade vinda da região mais profunda, inocente e virgem do subconsciente»”[12], escreve António Borregana. E é o próprio Régio quem nos confirma a influência que outros autores possam, porventura, ter tido na sua obra, quando afirma: “É ele [o autor] um poeta (se lho permitem) que deve muito a todos os camaradas que lê; e se não atemoriza de o confessar”[13]. E “os camaradas” que ele leu, sabe-se, foram em primeiro lugar Dostoievsky e Tolstoi, por quem ele nutria especial admiração, como o comprova a passagem da obra Em Tôrno da Expressão Artística, abaixo citada.


“Leia-se qualquer desses supremos trechos de Tolstoi, a propósito dos quais disse alguém que era a própria vida que neles parecia exprimir-se; ou que a própria vida se exprimiria assim… se tivesse voz: o que eu traduziria aqui dizendo que a ilusão atingida pela expressão artística é neles tão perfeita que ao leitor se afigura ser tal expressão artística a própria expressão vital”[14].


Mas, apesar de todas as influências possíveis, a liberdade do artista é sempre respeitada, pois “toda  arte vive da liberdade interior do poeta e da disciplina do artista. Tão prejudicial, para a arte, é atacar uma como a outra”[15].

A liberdade é condição sem a qual o artista não pode criar, uma vez que a inspiração poética é algo que “acontece” – como dizia Fernando Pessoa: “aconteceu-me um poema” – e surge de forma espontânea na vida do artista que a acolhe. Esta experiência também a fez José Régio, tal como se pode depreender da leitura de uma carta endereçada ao irmão João Maria, datada de Portalegre, a 21 de Maio de 1954[16], em que o autor explica a génese do livro Chaga do Lado, confessando que a inspiração poética lhe surge “de noite, na rua, nos intervalos das aulas”.  

Para a Presença, pela pena, sobretudo, de Régio, todo o grande artista tinha de coexistir com um homem também superior: “Não se fazem grandes artistas com pequenos homens!”, dirá um dia Estevão, um personagem do romance Os Avisos do Destino. Já que “o artista é homem, e é na sua humanidade que a arte aprofunda raízes. As obras de arte mais completas podem ser, mesmo, aquelas em que mais complexamente se agitam todas as preocupações de que o homem é vítima… gloriosa vítima”[17].

A Presença não constituiu uma escola literária, nem sequer um grupo ou um cenáculo. Régio mostrará sempre, de resto, directamente ou pelo interposto dos seus personagens de ficção, uma total aversão às escolas[18]. No romance Os Avisos do Destino, que é o terceiro volume da série A Velha Casa, o personagem Castro Maldonado comenta a certa altura:


“Isso de escolas, novidades, correntes, e tudo mais dessa laia, não importa senão num dado momento! Ou, mais tarde, aos especialistas de história literária. O que realmente interessa são as obras! As obras e as personalidades. É o valor absoluto das criações. Tudo que pertence às circunstâncias envelhece depressa… fica sendo documento histórico. Falta-lhe o foco, a vida, a força que vem de dentro! Como não havia de ser assim?! As escolas revezam-se, as novidades tornam-se velharias, as correntes vão passando… Que diabo! Isto salta aos olhos!”[19].


É efectivamente isto o que mais interessa a Régio e à Presença: “o valor absoluto das criações”, fruto das “personalidades”. Porque, “além do mais que possa ser, – é cada livro um documento histórico: pois marca não só uma época da vida do autor e um passo da sua carreira, como, às vezes, um dado momento histórico da evolução da humanidade”[20]. É por isso que, como diz Luís Piva,  “o drama é, sem dúvida, a expressão para que tende a obra de Régio que é toda ela um diálogo incessante entre matéria  e espírito, entre o que no homem é eterno e o que é transitório, entre o que o atrai para Deus e o que o prende à terra”[21]. E, neste sentido, poderá o mesmo autor afirmar: “A poesia de José Régio é a expressão consumada de um projecto moral”[22]. Um projecto moral que se revela como experiência poética.

Razões suficientes para José Régio rejeitar com indignação as acusações de “estetecismo” ou de “formalismo” que, mais tarde, os neo-realistas lhe dirigiram a ele e à Presença: “Nada”, observará um dia Régio, “foi tão atacado pela presença como, precisamente, a arte vazia, o formalismo superficialíssimo, a Torre de Marfim sem alicerces na terra, a abstenção de vida”[23]. E em 1969, na «Introdução a uma Obra», inserida numa reedição de Poemas de Deus e do Diabo, quando José Régio já se considerava “um velho poeta”, “um escritor presente à cena literária durante mais de quarenta anos”[24], conforme as suas próprias palavras, escreve:


 “A desautorização que frequentemente se tenta da chamada arte-pela-arte, esvaziando-a de todo aquele conteúdo humano sem o qual (pelo menos no meu conceito) nada seria, eis um bem elucidativo exemplo dos vários simplismos propagandistas. Pelo que me toca, nunca pude aceitar qualquer arte-pela-arte que não fosse um livre e peculiar meio de expressão do humano; e do integral humano; embora a cada artista possa não caber senão uma parte. Não creio no futuro de quaisquer tentativas de arte desumanizada – por mais em voga que possa estar esta em certas épocas de crise, sendo até sinal de tal crise. Se, de facto, aceito aprovativamente a fórmula arte-pela-arte, é porque, atribuindo à arte um específico independente de qualquer outro, creio que ela a si mesma se basta. Mas sempre arte-pela-arte foi para mim sinónimo de arte viva. Literatura Viva se chamava o primeiro artigo que publiquei na Presença[25].


Esta concepção de arte pela arte, “no verdadeiro e pleno sentido em que deve ser tomada”[26], ou seja,  como uma “expressão que se basta e nos basta”, aparece já em 1940, na sua obra  Em Tôrno da Expressão Artística.  Neste ensaio, José Régio, começando por partir do princípio que  “a arte é expressão[27], vai proceder a uma análise do fenómeno artístico, comparando-o com outro tipo de expressões, tais como a expressão vital ou a mística. E logo no início da sua análise esclarece: “propositadamente busco exemplos entre estados semelhantes aos que inspiram o artista, ou são do artista no momento de criar”[28]. Porque é disto que essencialmente se trata – de “estados que inspiram o artista ou estados que são do artista” – quando se fala de criação artística. Pois o artista é um homem “verdadeiramente humano”, diz José Régio, “portanto capaz de vibrar com alguns dos nossos problemas mais persistentes, alguns dos nossos conflitos mais nossos, algumas das nossas ideias mais constantes ou emoções mais intensas, alguns dos nossos sentimentos ou instintos mais fundos”. Mas estes problemas “são, seguramente, o que distingue o homem dos outros animais, e faz a sua dignidade, e nos permite ainda alguma esperança num progresso seu e da sua condição. A paz, aquela paz superior que seria uma superior felicidade do homem, ou é um estado original de graça, de inocência, ou é, exactamente, o prémio das muitas e terríveis inquietações superadas”[29]. É este o drama da vida humana. O artista deixa-se inspirar por ele, vive-o, para que o possa transfigurar. Porque “o que chamei transfiguração real”, escreve Régio,  “é condição tão necessária da arte como o que chamei imitação aparente. Primeiro, porque cada ramo da arte não tem a seu dispor senão muito reduzidos meios: […]. Segundo, porque o próprio fim que se propõe o artista de fixar e comunicar lhe impõe uma escolha e um cálculo sobre a realidade imitada. Terceiro, porque essa realidade imitada ou a imitar não existe senão através de cada um de nós, e cada um de nós é diverso de todos, transfigurador, portanto, aos olhos dos outros”[30]. Nesta perspectiva,  arte-pela-arte torna-se “sinónimo de arte viva”. Ou seja, “expressão e comunicação de sensações, emoções, sentimentos, intuições, ideias”, sem que haja por parte do artista a preocupação de subordinar a arte a “mandamentos morais, sociais ou religiosos”. “Ao contrário, porém, dos em quem a arte pela arte é uma habilidade de vazios ( e não há ritmos, imagens, palavras, truques capazes de tapar esse vazio…)”[31]. E José Régio pergunta: “Não tentará esse jogo de palavras disfarçar uma concepção de arte que em última análise a reduz a essa mera expressão pela expressão que é afinal a retórica? À arte-pela-arte no seu mais frívolo sentido?”[32][33]


[1] LISBOA, Eugénio – José Régio ou a confissão relutante. Lisboa: Rolim, [D.I. 1988], p. 23-24: “Em 10 de Março de 1927, apareceu, na cidade de Coimbra, com um subcabeçalho que indicava tratar-se de uma “folha de arte e crítica”, o primeiro número da hoje famosa revista presença. A “folha” apresentava, como directores e editores, Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões e José Régio. Intencionalmente quinzenal, à partida, a presença iria continuar, mais ou menos irregularmente, até Fevereiro de 1940, num total de 56 números, em treze anos de existência.”

[2] SIMÕES, João Gaspar – José Régio e a história do movimento da “Presença”. Porto: Brasília, 1977, p. 20: “Foi a José Régio, realmente, que a geração da Presença confiou o estandarte da revista. […], e a ele pertence, em verdade, a orientação estética […].”

[3] FRANÇA, José Augusto – A Arte e a sociedade portuguesa no século XX. Lisboa: Livros Horizonte, p.29.

[4] LISBOA, Eugénio – José Régio: Nota bio-bibliográfica, exame crítico e bibliografia. [Colecção Poetas de Ontem e de Hoje]. Livraria Tavares Martins, 1957; IDEM – O Essencial sobre José Régio. 2aed. [s.l.]: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007;  IDEM – José Régio ou a confissão relutante; IDEM – José Régio: Uma literatura viva. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1978.

[5] Cf. IDEM – José Régio: Uma literatura viva, p. 13.

[6] Cf. IDEM – José Régio ou a confissão relutante, p. 24.

[7] Cf. SIMÕES – José Régio, p. 27: “[…] é José Régio, director da «folha de arte e crítica» coimbrã, quem proclama «Mestres» Pessoa, Almada, Sá-Carneiro e Leal, e que todos esses «Mestres» colaboraram largamente nas páginas da Presença.”

[8] Cf. Ibidem, p. 34.

[9] Cf. Ibidem, p. 30.

[10] Cf. Ibidem, p. 30: “Régio […] dá ao movimento presencista uma orientação crítica, uma doutrinação estética, um ideário artístico que não admitem contestação ao nível da ideias revolucionárias, pelo menos no quadro dos valores estéticos nacionais.”

[11] Apud LISBOA – José Régio ou a confissão relutante, p. 27.

[12] BORREGANA, António Afonso – José Régio, Miguel Torga, Afonso Duarte, Sophia de Mello Breyner: O texto em análise. 3a  ed.  Lisboa: Texto, 2002, p. 4. © 1995.

[13] RÉGIO, José – Biografia. 2aed. Porto: Arménio Amado – Editor, 1939, p. 13.

[14] RÉGIO, José – Em tôrno da expressão artística. Lisboa: “Inquérito”, 1940, p. 52.

[15] Cf. RÉGIO – Biografia, p. 12.

[16] Apud BOCHICCIO, Maria – José Régio e a «Chaga do Lado»: Nota filológica. Revista da Faculdade Letras do Porto – Línguas e Literaturas. 2005, (22), p. 103.

[17] RÉGIO, José – Páginas de doutrina e crítica da «presença». Porto: Brasília Editora, 1977, p.54.

[18] RÉGIO, José –  presença. 4/6/1927, (n.o 5). Apud SIMÕES – José Régio, p. 7. “Todas as escolas abrem janelas, mas todas, depois, tendem a fechá-las. Estar sempre à janela aberta é reagir contra as escolas. Nenhuma escola vale mais do que outra: Os homens é que sim.”

[19] Apud LISBOA – José Régio ou a confissão relutante, p. 34-35.

[20] Cf. RÉGIO – Biografia, p. 9.

[21] PIVA, Luiz – José Régio – o ser conflituoso: Dualismo e estilo. Porto: Brasília Editora, 1977, p. 23-24.

[22] Cf. Ibidem, p. 9.

[23] Apud LISBOA – José Régio ou a confissão relutante, p. 30.

[24] RÉGIO, José – Poemas de Deus e do Diabo: com desenhos do autor e «Introdução a uma Obra». [In Obras Completas]. 9aed. Porto: Brasília, 1978, p. 99.

[25] Cf. RÉGIO – Poemas de Deus, p. 112.

[26] Cf. RÉGIO – Em tôrno, p. 52.

[27] Cf. Ibidem, p. 11.

[28] Cf. Ibidem, p. 16.

[29] Cf. RÉGIO – Biografia, p. 10-11.

[30] Cf. RÉGIO – Em tôrno, p. 63.

[31] Cf. Ibidem, p. 44-45.

[32] Cf. Ibidem, p. 44.

[33] sobre o conceito estético de arte pela arte, cf. GRIEBEN, Fernanda Alves Afonso – Júlio Dinis, apologista da Kunstreligion: influência de uma corrente de pensamento europeu no percurso literário dinisiano). Lisboa: Universidade Aberta, 2016, p.104. Tese de Doutoramento. Disponível em: https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/5717


O estudo aqui apresentado foi elaborado em 2008, no contexto de conclusão do Mestrado Integrado em Teologia (UCP).


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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