«Ultimatum», de Álvaro de Campos
Análise do manifesto literário à luz da simbologia alquímica
O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles.
(Fernando Pessoa – Mensagem, Nota Preliminar)
Manifestando o desejo de ver concretizada uma renovação cultural e artística, em conformidade com o ideário estético futurista, declara Álvaro de Campos – heterónimo de Fernando Pessoa – no Ultimatum: “A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro!”. Esta declaração, expressa neste manifesto, é como um grito provocador, lançado aos ouvidos de todos os “burgueses do Desejo”, que representam a Europa, numa época vil, “dos secundários, dos aproximados, dos lacaios”.
No quadro europeu, desta mesma época, o “Portugal-centavos” apresenta-se como um país sem dignidade nem identidade – política ou cultural –, como o “resto da monarquia a apodrecer República, extrema-unção-enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais em África”. A terra portuguesa é o espelho provinciano de uma época já por si insuficiente, medíocre, em que os povos e os destinos faliram – por total! Uma época em que tudo se tornou “lixo”, “safardanagem intelectual”, por isso, Álvaro de Campos esclarece o leitor, logo no início deste seu manifesto, que o seu texto é um “Mandado de despejo aos mandarins da Europa!”. São estes últimos – os detentores do falso poder – os principais responsáveis por esta situação de geral degradação do povo português, outrora grande e digno. O Futuro, esse poderá ser bem diferente, se Portugal se dispuser a reconquistar a sua dignidade de antiga e nobre Nação. E poderá fazê-lo, a nível artístico, se souber atear o fogo do “Mistério” que “Maeterlinck” deixou apagar no seu “fogão”. Que fogo é este? Não é outro senão aquele que arde no Atenor do filósofo-poeta, alquimista da palavra, que encara a composição dos seus textos como uma missão profética. Nestes textos, a Literatura fundir-se-á com a antiga Alquimia[1], que irá provocar uma transmutação na mentalidade do leitor, já que essa mesma Alquimia se revela capaz de operar tanto a nível físico como metafísico, como se pode depreender do seguinte texto:
Alchemy operates at a metaphysical as well as a physical level. The alchemist is concerned not only with the transmutation of base metal into gold, but most importantly with the transformation of the natural or earthly man into the illumined philosopher.
(Abraham Lyndy – Dictionary of alchemical imagery, p. 154)
Na visão estético-programática do autor deste Ultimatum, é à estética futurista que compete, agora, a conclusão da Grande Obra, prosseguindo o caminho alquímico encetado pelo movimento simbolista – que no texto surge representado na figura de Maeterlinck. Para se obter a Pedra filosofal, porém, é sempre necessário que, num primeiro estádio, a matéria da Pedra (ou o desatualizado estado de ser, se a Pedra corresponder a um ser humano, ou até a um povo) seja reduzida à primeira substância da Criação, ao Caos alquímico[2], à matéria-prima.
Assim sendo, torna-se urgente e imperativo que o povo português comece, num primeiro estádio, por sofrer um processo de putrefação, que o reduzirá ao seu estado de ser original (“O que aí está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!”). A guerra é um dos meios que serve este propósito, porque é agressiva e destruidora, provocando a transmutação gradativa do ser humano, através de diferentes operações alquímicas[3]. Estas operações, que se repetem em cada um dos três estádios da Grande Obra – nigredo, albedo e rubedo[4] –, são sempre regidas pela lei da transmutação, que Paracelso fixou na conhecida fórmula Solve et coagula.
Do que até aqui ficou dito, se depreende que não é possível, segundo a tradição alquímica, a regeneração espiritual de um ser (ou povo, neste caso concreto), sem sofrimento, sem destruição, sem aniquilamento, sem agressividade, sem morte, sem rutura – é esta a lei da evolução espiritual. Logo, será esta mesma lei que os futuristas deverão proferir vivamente, em tom exacerbado, altissonante, provocante, repleto de exclamações.
No processo alquímico, concluídas as referidas operações, em cada um dos três estádios, os elementos que compõem a matéria-prima unificada, diferenciando-se desta, serão combinados de maneira a criarem uma nova forma, que se apresentará cada vez mais pura: a quintessência. A nível metafísico, o que está aqui em questão é o retorno à pureza das origens, por parte da alma humana. Por isso, na alquimia espiritual, a matéria-prima corresponde a um estado anímico intacto, tal como era o de Adão, antes da queda. Desta forma, depois de destruído o seu desatualizado estado de ser, o povo português sentirá operar-se na sua alma uma regeneração espiritual – a opus contra naturam –, que lhe permitirá ficar a conhecer o segredo da Criação e as suas leis. Esta é a transmutação necessária. Só então, iluminado, Portugal se virará para os valores espirituais que são genuinamente seus, experienciando a pura consciência de si, enquanto Nação, e descobrindo o seu papel no mundo, ou seja, rever-se-á no mito do Quinto Império[5].
Permitamos, por fim, que uma Prece poética, manifestada por Fernando Pessoa, nos ajude a interiorizar a mensagem que o manifesto literário, da autoria de Álvaro de Campos, pretende transmitir:
PRECE
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
(Fernando Pessoa – Mensagem)
[1] Como a literatura sobre esta temática é vasta, optamos por mencionar, nesta breve análise que fazemos do Ultimatum, apenas, as fontes que são sempre de referência obrigatória, na análise de um texto alquímico, a saber: DICTIONNAIRE mytho-hermétique (1787), Par Dom Antoine-Joseph Pernety, Paris, Delain; JUNG, Carl Gustav (2006) – Psychologie und Alchemie, 2. Aufl. , Düsseldorf, Walter-Verlag; MASSON, Hervé (2003) – Dictionnaire initiatique et ésotérique, Paris, TrajectoirE.
[2] O Caos alquímico é o minério esmagado, que serve à preparação da Pedra filosofal.
[3] As operações alquímicas são contadas em número de seis ou sete, variando de autor para autor.
[4] Segundo a alquimia espiritual (na linha de Paracelso, a única que aqui nos interessa), os estádios da Grande Obra são só estes três. Outras correntes, porém, incluem um estádio intermédio entre o albedo e o rubedo.
[5] As origens do Mito do Quinto Império remontam à De civitate Dei de santo Agostinho, na qual se inspirou padre António Vieira, para construir a sua História do Futuro. Dissertando sobre esta temática, Paulo Alexandre Esteves Borges defende o seguinte: “Que o que está em causa é ainda, inconfundível com qualquer laicização antropocêntrica do sentido do progresso, uma plenificação existencial do ser, em que a história se assemelha ao tempo de uma monumental celebração litúrgica e ritual, atesta-o a perspetivação de todo o processo à luz do tema da superabundância de um Dom divino no próprio âmago da recusa a ele. A história não é tanto, assim, um combate entre o positivo e o negativo, entre o que obnubila e o que ilumina, segundo o regime de uma oposição, dialética ou não, entre dois remos ou pólos contrários, mas uma providencial transformação do mal no maior bem, ou seja, um constante, crescente e imponível triunfo do que plenifica e infinitiza por integração reorientadora daquilo mesmo que lhe crê ou aparenta resistir” (BORGES, P. A. E. (1995) – A plenificação da história em padre António Vieira: Estudo sobre a ideia do Quinto Império na Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, pp. 94-95).
ULTIMATUM, de Álvaro de Campos
(Separata do PORTUGAL FUTURISTA, Lisboa, 1917)
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