Como superar o mal…
…na perspetiva teosófica de Jacob Böhme
Nascido em Görlitzer, Jakob Böhme (1575-1624), sapateiro de profissão, foi um vulto que se destacou no seu tempo, pela posição crítica que assumiu perante as autoridades religiosas[1], desenvolvendo um pensamento filosófico-teológico que, segundo o seu próprio testemunho, seria de inspiração mística:
Darum ist mein ganzes Schreiben als eines Schülers, der zur Schulen gehet. Gott hat meine Seele in eine wunderliche Schule geführet; und ich kann mir in Wahrheit nichts zumessen, dass meine Ichheit etwas wäre oder verstünde.
Es soll keiner höher von mir halten als er hier siehet. Denn das Werk in meiner Arbeit ist nicht mein. Ich habe es nur nach dem Maß, als mir es vom Herrn vergönnet wird. Ich bin nur sein Werkzeug, mit dem er tut, was er will. […][2]
Desde muito cedo, o problema do mal, e sua proveniência, ocupa a mente deste pensador-místico, que, mesmo sem possuir uma formação académica que o justifique[3], vai tentar solucionar esta questão capital, que se apresenta como irresolúvel, desde os primórdios do pensamento filosófico-teológico[4].
No preâmbulo da sua primeira obra, Aurora oder Morgenröte im Aufgang – redigida em 1612, aos trinta e sete anos de idade –, Böhme apresenta uma parábola[5], em que a totalidade do conhecimento filosófico, astrológico e teológico (com a sua matriz comum) é comparada a uma ‘árvore saborosa que cresce num belo jardim de prazeres’. Esta árvore, diz-nos, cresce e desenvolve os seus ramos, alimentando-se do suco do solo que a sustenta – desejando dar sempre os melhores frutos. No entanto, nem sempre assim acontece; e se os frutos são poucos e de má qualidade, então não se deve procurar a culpa na vontade própria da árvore – que é uma árvore saborosa e de boa qualidade –, mas devemos, sim, atribuir a culpa às intempéries, a que a árvore está sujeita, e aos parasitas, que dela se aproveitam. A principal característica desta árvore, porém, reside no facto de os seus frutos se tornarem cada vez mais doces, à medida que ela vai crescendo e robustecendo. Assim, com o seu amadurecimento – sob a influência da luz solar –, a árvore vai dominando as três qualidades negativas (‘amargo’, ‘ácido’ e ‘áspero’) que igualmente a caracterizam, de origem. E quando a árvore é já velha, e os seus ramos ressequidos, porque o suco do solo já não consegue atingi-los, então brotam junto do seu tronco, e sobre as suas raízes, novos rebentos verdes, que nostalgicamente lhe recordam que, também ela, já assim foi um dia; mas que agora está velha, e terá de ser cortada, para ser lançada ao fogo. E Jakob Böhme termina a narrativa com estas palavras explicativas:
Nun mercke, was ich mit diesen Gleichnis angedeutet habe: Der Garten dieses Baums bedeutet die Welt; der Acker die Natur; der stamm des Baumes die Sternen; die Äste die Elementa; die Früchte, so auf diesem Baum wachsen, bedeuten die Menschen; der Saft in dem Baume bedeutet die klare Gottheit. Nun sind die Menschen aus der Natur, Sternen und Elementen gemacht worden. Gott der Schöpfer aber herrschet in allen, gleischwie der Saft in dem ganzen Baume.
Die Natur aber hat zwo Qualitäten in sich bis in das Gerichte Gottes, eine liebliche, himmlische und eine grimmige, höllische und durstige[6].
A totalidade do conhecimento filosófico, astrológico e teológico (a que a árvore corresponde) encontra-se, pois, no mundo (o belo jardim de prazeres), onde é alimentada pela própria divindade luminosa (a seiva), que a natureza (o solo) produz.
Enquanto fruto da árvore, o ser humano também participa deste ciclo, encarnando o resultado de um saber que amadurece sob a influência da luz solar (o Espírito Santo); e, à semelhança do que acontece na natureza, o bem e o mal também existem nele, fluindo e dominando, como duas forças opostas, que buscam o equilíbrio entre si. Um equilíbrio que só é alcançado quando o ser humano, dirigindo o seu espírito para Deus, consegue superar o mal, auxiliado pelo Espírito Santo:
Nun gleichwie in der Natur Gutes und Böses quillet, herrschet und ist, also auch im Menschen. Der Mensch aber ist Gottes Kind, den er aus dem besten Kern der Natur gemacht hat zu herrschen in dem Guten und zu überwinden das Böse. Ob ihm gleich das Böse anhanget, gleichwie in der Natur das Böse am Guten hanget, so kann er doch das Böse überwinden. So er seinen Geist in Gott erhebet, so quillet in ihm der Heilige Geist und hilft ihm siegen[7].
Esta linguagem – de forte carga simbólica –, de que J. Böhme se serve, obriga o leitor desta narrativa alegórica a parar em cada imagem que encontra, colocando-o numa situação idêntica à da subida da escada de Jacob: só degrau a degrau, o iniciado poderá evoluir na aquisição de um saber que é interior, e que necessita do poder imaginativo de quem pretende atingi-lo.
Logo, é uma ciência vã, essa que encare o ‘Espírito de Deus’ como um objeto de estudo meramente exterior. Esse é o conhecimento que persegue o ‘leviano’, em cuja consciência a verdadeira gnose ainda não despertou; e, por isso mesmo, ainda não sabe que Deus habita no ser humano; e que o conhecimento de Deus tem de ser interior, que depende de um ato de introspeção; ao mesmo tempo que exige ser vivenciado, para ser compreendido e assimilado:
Was hilft mir die Wissenschaft (erg. vom Geist Gottes), so ich nicht darin lebe? Das Wissen muss in mir sein, und auch das Wollen und Tun. Der Mangel mit dem Leiden und Genugtuung Christi, den man jetzt dem Menschen umdecket, wird manchem zum Stricke und höllischen Feuer werden, dass man sich also nur will mit Christi Genugtuung kitzle und den Schalk (d.h. den alten Menschen) anbehalten[8].
Só desta forma ao ‘homem velho’ – que Jacob Böhme assemelha a um ‘Schalk‘ (um ‘leviano’) – poderá, então, suceder o ‘homem novo’ – o que renasceu em Cristo –, que viverá em Deus, na Sua justiça e santidade:
Es heißet: Ihr müsset neu geboren werden oder sollet Gottes Reich nicht schauen. Ihr müsset werden als ein Kind, wollet ihr Gottes Reich sehen. Nicht allein um die Wissenschaft zanken, sondern ein neuer Mensch werden, der in Gerechtigkeit und Heiligkeit in Gott lebe. Man muss den Schalk austreiben und Christum anziehen. Alsdann sind wir in Christo und mit Christo in seinem Tod begraben, und stehen mit Christo auf und leben ewig in ihm. Was soll ich dann lange um das zanken, das ich selber bin?[9]
Note-se, contudo, que a expressão usada por Böhme – ‘homem[10] novo’ – já ocorre nos escritos paulinos, no NT, manifestando a noção de ‘homem espiritual’ – o que possui um coração novo e um espírito novo –, por oposição ao ‘homem carnal’ – o pecador –, que é o ‘homem terreno’, também designado por ‘homem velho’. Neste mesmo sentido, Paulo também faz a distinção entre ‘homem interior’ e ‘homem exterior’, baseando-a na disparidade que existe entre o seguimento exterior da ‘letra da Lei’ (da Tora) e a escuta interior da nova Lei da redenção, trazida por Cristo e fundada na Fé (Rm 3, 27)[11].
[1] Cf. WEHR, Gerhard – Jakob Böhme: Ursprung, Wirkung, Textauswahl. Wiesbaden: marixverlag, 2010, p. 10.
[2] “Por isso mesmo, é todo o meu escrever como o de um aluno que vai às escolas. Deus conduziu a minha alma a uma escola maravilhosa; e, na verdade, da minha parte, não posso dizer que a minha pessoa alguma coisa seja, ou entenda.§ Ninguém deveria pensar acerca de mim (que sou) mais do que vê aqui (escrito). Pois a obra, no meu trabalho, não é minha. Eu só a tenho [a capacidade de obrar] na medida em que o Senhor ma dá. Eu sou só o seu instrumento, com o qual ele faz o que quer”: BÖHME, Jakob – Theosophische Sendbriefe.Aus dem XII. Sendbrief, 19-20. [An Herrn Kaspar Lindner, Zolleinnehmer zu Beuthen. Am Tage MariaeHimmelfahrt 1621]. In Idem, p. 216. A adaptação dos textos de Jacob Böhme à língua portuguesa, aqui apresentada, é da minha responsabilidade.
[3] Cf. WEHR, G. – Jakob Böhme, p. 11.
[4] Cf. VORGRIMLER, Herbert – Neues Theologisches Wortebuch. 2. Aufl. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 2000, p. 100-101.
[5] Cf. BÖHME, Jakob – Aurora oder Morgenröte im Aufgang. Vorrede, 1-7. Hrsg. v. Gerhard Wehr. Wiesbaden: marixverlag, 2013, p. 47-48. [©1730].
[6] “Retém, então, o que, com esta parábola, quis dizer: o jardim desta árvore representa o mundo; a terra, a natureza; o tronco da árvore, as estrelas; os ramos, os elementos; os frutos, que crescem nesta árvore, representam os seres humanos; a seiva, na árvore, representa a divindade luminosa. Os seres humanos foram, então, feitos da natureza, das estrelas e dos elementos. Deus, o criador, porém, governa em todos, assim como a seiva na árvore inteira.§ Mas a natureza possui duas qualidades inerentes, até ao tribunal de Deus: uma amável, celestial; e uma sinistra, infernal e sedenta”: BÖHME, J. – Aurora. Vorrede, 8, p. 48.
[7] “Então, assim como na natureza, também no ser humano o bem e o mal fluem, dominam e existem. O ser humano, porém, é filho de Deus, que o fez da melhor índole da natureza, para que dominasse no bem e superasse o mal. Ainda que o mal se dependure nele, como na natureza o mal se pendura no bem, mesmo assim ele pode superar o mal. Na medida em que ele dirige o seu espírito para Deus, nessa mesma medida flui nele o Espírito Santo e ajuda-o a vencer”: BÖHME, J. – Aurora. Vorrede, 14, p. 49.
[8] “De que me aproveita a ciência (do Espírito de Deus), se não vivo nela? O conhecimento tem de estar em mim, assim como o querer e o fazer. A falta de interiorização do sofrimento e da satisfação (das obras) de Cristo, que agora se encobre ao ser humano, tornar-se-á para alguns em corda de morte e fogo infernal, na mesma medida em que só se queira galhofar com a satisfação de Cristo e manter o leviano (quer dizer, o homem velho)”: BÖHME, J. – Theosophische Sendbriefe.Aus dem XII. Sendbrief, 62. In WEHR, G. – Jakob Böhme, p. 218.
[9] “Está escrito: tereis de nascer de novo, ou não vereis o reino de Deus. Tereis de ser como uma criança, se quereis ver o reino de Deus. Não só disputar em torno da ciência, mas tornar-se num homem novo, que viva em Deus, em justiça e santidade. Tem de se espantar o leviano e atrair Cristo. Só então estamos em Cristo, e com Cristo somos sepultados, na sua morte, e com Cristo ressuscitamos, e com ele vivemos eternamente. Porque terei, então, de disputar tanto tempo acerca do que eu próprio sou?”: BÖHME, J. – Theosophische Sendbriefe. Aus dem XII. Sendbrief, 63. In Ibidem.
[10] “Homem Ser humano: a Bíblia desconhece a dicotomia grega corpo-alma e fala-nos de ‘carne’, ‘alma’ e ‘espírito’: Ex15,9; 1Ts 5,23; sem que isto signifique uma divisão em três partes. A ‘carne’ ou ‘carne e sangue’ significa a pessoa toda, vista no seu aspecto de fraqueza, do pecado, em oposição a Deus: […]. O ‘espírito’ indica também o vivente na sua totalidade”. Nova BÍBLIA dos Capuchinhos.1a ed. Lisboa; Fátima: Difusora Bíblica, 1998, p. 2088. [Índice Bíblico-Pastoral].
[11] Cf. SCHLIERP, Heinrich – Der Römerbrief. 3. Aufl. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1987, p. 115ss. [Herders Theologischer Kommentar Zum Neuen Testament. Hrsg. v. Alfred Wikenhauser; Anton Vögtle; Rudolf Schnackenburg. Bd. VI].
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