Alfredo Cortês, um dramaturgo surrealista?


O Lôdo: peça em três actos



Resumo: O drama O Lôdo, de Alfredo Cortez, será analisado, neste estudo, na perspetiva da psicologia analítica, com o intuito de, descortinando os arquétipos que se encontram subjacentes ao discurso literário – e que remontam tanto à mitologia grega (Electra), como à Bíblica (Abel e Caim), como à africana (Nàná Buruku)–, se procurar uma base interpretativa deste texto de Alfredo Cortez que nos permita aproximá-lo da corrente estética surrealista.


Palavras-chave: Alfredo Cortês (ou Cortez); Dramaturgia; Psicologia Analítica; Mito; Simbolismo; Estética Surrealista.


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1. O Lôdo. O Lôdo é apresentado pelo seu autor, desde o título, como sendo uma “peça em três actos”. São três atos repletos de tensão dramática, já intencionalmente prenunciada nas palavras que se podem ler na página que se segue à da dedicatória: “Esta peça, recusada por todas as empresas, foi posta em scena pelo autor, em recita única, na noite de 2 de julho de 1923, no Teatro Politeama de Lisboa, com a seguinte interpretação: […]”. Acrescenta-se-lhes o “local e época da ação”, que se identificam com a “Mouraria” e a “actualidade”, respetivamente. Este conjunto de dados, fornecidos pelo autor, pretendiam, por certo, despertar a curiosidade do possível leitor que não tivesse assistido à representação da peça, no dia 2 de Julho, desse mesmo ano[1], estimulando-o a desejar descobrir, agora, o âmago do fruto proibido, numa sôfrega leitura do texto dramático.

Pelo que ficou dito, poderemos então concluir que, acima de tudo, Alfredo Cortez era um excelente conhecedor da psicologia humana. De que forma esse conhecimento se reflete, também, na construção de O Lôdo – é o que tentaremos analisar de seguida.


[1] Seguimos, neste estudo, o texto da primeira edição de O Lôdo que, como vem registado no final do livro, “acabou de se imprimir aos 25 de Maio de 1923” (CORTEZ, A., 1923: [s.p.]).


1.1 A temática. A temática de O Lôdo afigura-se, a uma primeira leitura, regida por duas grandes linhas de força: pobreza e marginalidade. E, neste sentido, este drama de Cortez poderia ser considerado um simples texto interventivo, comprometido com a realidade sociocultural portuguesa do tempo em que o seu autor se insere. No entanto, a análise da peça em breve nos revela que a mensagem que o texto pretende veicular traduz toda a complexidade de uma realidade que é irredutível a esquemas socioculturais, porque é uma realidade profundamente humana, conflituosa. E logo o título da peça – O Lôdo – nos vem espontaneamente à mente, pela forma como a psique o associa ao inconsciente humano. O lodo corresponde então ao que não conseguimos controlar, nem racional nem fisicamente, já que todos os esforços que, porventura, desenvolvamos para nos libertarmos dele se virarão contra nós mesmos. De um pântano lamacento, ou das negras tramas do inconsciente – como esclarece Carl G. Jung (cf. 2006: 196-197) – ninguém se liberta pelas suas próprias forças. É esta a experiência traumatizante por que passa na infância a personagem principal do drama, Domingas Capelôa; como se pode verificar pela leitura deste longo relato, que se assemelha a um monólogo interior, do qual transcrevemos a parte final:


DOMINGAS
[…] E o lôdo a engulir sempre devagar!… Sentia-o como uma lesma a subir pelo meu côrpo! Era bem a morte, a morte fria, a morte negra, que se apoderava de mim a pouco e pouco!… Que horror! Que horror!… Sentir a própria terra a abrir-me a cova!… Ser enterrada viva!… – Pausa. N’outro tom – Acudiram. Veio gente. E o lôdo até ahi d’uma molêza desleixada, creou logo forças para lutar. Prendeu-me pesado e forte. Sugava-me com desespero. Vi-o espumar de raiva. Tiravam-lhe o que era d’elle… o que já era d’elle… – Transição – É isto afinal a minha vida e não queiras saber mais” (pp. 39-40).


Pelas razões expostas, pode-se aferir que os dois grandes temas – pobreza e marginalidade – que, numa primeira leitura, se afiguram dominantes no discurso literário, vão sendo transferidos para um segundo plano – o do racional, mediático –, enquanto o irracional vai ocupando um lugar cada vez mais primordial, à medida que nos vamos aproximando interiormente do texto. Por consequência, o “local e época da ação” da peça, identificados com a “Mouraria” e a “actualidade”, também serão transportados para o mundo do inconsciente coletivo – dos arquétipos – e, universalizando-se (cf. JUNG, C. G., 1980: 84), transformar-se-ão em paradigmas de um espaço e de um tempo que são entendidos em sentido translato, abarcando a atmosfera psicológica. Daí, na nossa visão, o poder-se falar da atualidade temática deste texto dramático de Alfredo Cortez.


1.2 O conflito dramático. A ação de O Lôdo desenrola-se a partir dos conflitos gerados pelas relações triádicas (ou triangulares) patológicas, que se estabelecem entre as principais personagens. Estas relações de dependência psicológica são determinantes de conflitos que, sendo em primeiro lugar do foro íntimo, se projetam para o ambiente exterior, estando na origem de conflitos externos. São dois os tipos de relação triádica que se constituem entre as personagens de O Lôdo e podem ser representados, esquematicamente, da seguinte forma:



A relação Domingas Capelôa-Julia pode considerar-se uma relação psicológica patológica – de amor/ódio (Céu/Inferno) –, entre mãe e filha, que corresponde ao que C. G. Jung designou por complexo de Electra, por oposição ao de Édipo, teorizado por Sigmund Freud (cf. 2011: 180-182). Tal arquétipo remonta ao Mito[1] de Electra, que foi frequentemente dramatizado ao longo dos tempos, devendo-se, no entanto, destacar a peça homónima, de Sófocles, na antiguidade clássica.

Segundo HALBERSTADT-FREUD (2000), esta dramática combinação de amor e ódio na relação mãe-filha (Marcolina: […] Zangam-se de manhã, manda-a chamar à tarde… Expulsa-a de dia, resmunga toda a noite por ella não voltar…”, p. 9) conduz à idealização do progenitor (ou daquele que, tomando o seu lugar, representa a figura paterna), por parte da filha. Daí pode resultar que a filha sinta atração sexual pelo pai, o que provoca um conflito psicológico que pode levar à rejeição da relação, por esta ser considerada imoral, ou não. Tudo depende dos padrões éticos interiorizados[2]. Quando, porém, a atracão sexual por quem representa a figura paterna é assumida, a filha fica psicologicamente dependente da mãe, permanecendo dramaticamente dividida entre o ódio que sente pela mulher com quem rivaliza, e o desejo instintivo de simbiose amorosa com a figura materna. É este o principal papel que a personagem Julia encarna, na economia narrativa de O Lôdo. Um papel que terá também repercussões no relacionamento desta personagem com outras, como Manuel Facão – que passa de parceiro da mãe a seu amante (“Julia: […]. Antes d’elle estar comigo não era vocemecê que o sustentava, sem lhe faltar em nada?”, p. 7) –, mas, sobretudo, com Maria da Luz – a irmã que é amada pela mãe por ainda ‘ser honrada’ (“Julia: […], que a cavalheira ind’é honrada, e o barulho…”, p. 5; “Domingas: […] – Filha! Mas tu és a mesma?… A minha filha?… A única que se salvou?!… Diz. Diz”, p. 33) e com quem tem de disputar o amor materno (“Julia: […] Pensava, cá no meu entender, que onde cabe uma filha cabe a outra…”, p. 22), ela que se ligou a um miserável (“Domingas: Para esse miserável a quem ela se ligou, e que a arrasta cada vez mais para a miséria”, p. 38). Por conseguinte, na base dos dois tipos de relação triádica patológica, encontram-se as personagens Domingas Capelôa e Julia, que vão fazer evoluir, com os seus gestos, no desenrolar da ação, uma situação manifesta de rivalidade amorosa entre mãe e filha, originando um grave conflito ético (com repercussões sociais) que – tal como no Mito – só parece ser resolúvel pelo crime. Assim, e seguindo as regras da tragédia clássica, ao fazer com que o conflito seja resolvido dentro do próprio drama, Alfredo Cortez permite que o leitor/espectador de O Lôdo fique esclarecido acerca do carácter e destino das personagens, após o desfecho da história. Um desfecho trágico que marca o fim do conflito interior/exterior que as quatro personagens cumplicemente vivenciam. Subjacente a este conflito, porém, encontra-se ‘O Lodo’, imagem personificada do subconsciente humano, com quem Domingas Capelôa trava – desde a infância – uma luta íntima que é assumida como fatídica e que, como ainda veremos (cf. 1.3), determina a vida terrena desta personagem, subordinando-a a duas forças oponentes: o destino quotidiano e o paraíso artificial criado pelo álcool. Mas Domingas não é a única personagem a quem ‘O Lodo’ persegue. ‘O Lodo’ está presente ao longo do drama como um pano de fundo (cf. pp. 6; 11; 40; 41; 42; 47; 51; 52) que se manifesta simbolicamente no próprio cenário noturno e ‘estagnado’ em que a peça se desenrola (“Sala pobre e desleixada […], e, sobre a meza, um candieiro de petroleo acêso”, p. 1; “O mesmo scenario. O mesmo candeeiro acêso sobre a mesa, […]. Tudo como ficou ao concluir o primeiro acto”, p. 29; “O mesmo scenario. […] Tudo como ficou ao concluir o segundo acto”, p. 57). Um cenário que tanto é material como espiritual, porque é durante as poucas horas de uma única ‘noite’, em que a ação de O Lôdo decorre (“No relogio de scena, colocado na parede do fundo, são trez horas ao iniciar-se o espectaculo, como a acção exige. Trabalhando esse relogio no decorrer de todos os actos e intervalos, deve marcar n’este momento cinco e meia, seis horas”, p. 58), num compartimento de uma casa que tanto serve de prostíbulo como deveria ser um lar, que as personagens vivem simbolicamente o trágico destino de suas vidas (“Domingas: […] Eu cheguei cá abaixo porque era este o meu caminho”, p. 38; “Domingas: Signo de cada um”, p. 40; “Domingas: Não foi o desastre que marcou o meu destino. Foi o destino que se revelou já no desastre”, p. 41). Um destino ao qual a Providência divina é completamente alheia, mesmo que o nome de Deus seja invocado (“Luz: […] – Mas tenho fé em Deus que não virão”, p. 43; “Domingas: Deus te ouça”, p. 53; “Luz: Oh! Santo Deus!”, p. 70), mesmo que se fale em perdão (“Domingas: […] Admites a possibilidade de me perdoar?!…”, p. 49), mesmo que se fale em salvação (“Domingas: […] Venderia a última camisa para a salvar da vergonha e da deshonra…”, p. 67), mesmo que se fale em honestidade (“Luz: […], trabalho de dia e de noite, e, para viver honestamente hei-se ganhar”, p. 41), ou em virtude (“Domingas: Nem sombra de virtude”, p. 18), mesmo que as mães sejam como santas (“Luz: […] Aprendi logo na leitura dos primeiros livros que as mães eram como santas”, p. 36). Esta é uma forma subtil de crítica religiosa, que não é desprovida de ironia e até, poder-se-ia dizer, de algum sarcasmo. Alfredo Cortez contrapõe à vida miserável das personagens, que mais do que devassas são famintas (“Domingas: […] – Depois a fome. E não era a minha a que mais me torturava. Era a vossa. Para vos trazer pão arrastei-me para a rua a escaldar de febre. Pedi esmola. – Indicando-se a si mesma – E como isto que aqui vês já foi bonito, o monstro sorriu na esquina. Os seus olhos via-os em cada olhar que se entremetia comigo”, p. 42), uma religiosidade sem qualquer fundamento ético. E fá-lo, instalando-a, com toda a naturalidade, num cenário de degradação moral, onde a religiosidade surge como algo tão comum à vida das personagens, como o gesto de colocar, por cima de uma mesa, uma parte do dinheiro (o dízimo?) que é o salário de um ato de prostituição (“Julia: Metiam-se em bons trabalhos. – Traz dinheiro trocado na mão, conta-o, atira uma parte para cima da meza e mete o resto na perna, por dentro da meia”, p. 19). Nesta crítica religiosa, até o próprio nome escolhido para a protagonista da ação da peça – ‘Domingas Capelôa’ –, se nos afigura significativo, se o substituirmos por um possível correspondente masculino: Domingos Capelão (Capelão de S. Domingos?): “Julia: […] – Ah!… Nem o pregador de S. Domingos!….” (p. 72).


[1] Analisando os arquétipos e as suas origens míticas, na obra de Thomas-Mann, Manfred Dierks defende que, na literatura moderna, o mito não é propriamente interessante enquanto experiência original, mas, sim, enquanto universo das formas primárias – dos arquétipos (cf. 1972: 101).

[2] No caso de Julia, os padrões éticos têm de ser forçosamente negativos, devido ao mau exemplo transmitido tanto pela figura materna como pela paterna: “Domingas: A vender-me a quantos vinham. § Facão: Olha a canseira!… A questão é que bebias e comias…” (p. 18); “Julia: […]. Sou uma galdéria, uma ladra e uma assassina!… Sim! Uma assassina!… Sou o que vocemecê fez de mim. Não ‘stá contente?!… Não aprendi bem!…” (p. 73).


1.3 Estrutura simbólica da peça. A estrutura simbólica de O Lôdo pode considerar-se idêntica à de Fleurs du Mal, de Baudelaire – assim como Pierre Guiraud a reconstrói (1978: 102-104) –, pois também ela se apresenta delineada pelas mesmas quatro linhas de força que formam um cenário que é simultaneamente material e espiritual: o Céu, o Inferno, a Terra – sendo esta última dupla, e correspondendo, muito particularmente, à vida da personagem principal – Domingas Capelôa –, para quem a vida terrena, o destino quotidiano, se opõe ao paraíso artificial que constitui o álcool – que permite a evasão de um lugar onde o amor é impossível. Um lugar onde até um breve sonho – que por alguns momentos, no segundo ato, ilumina o negro cenário, quando sua filha Maria da Luz lhe diz “– Resoluta – Pois nunca mais terá noites d’essas” (p. 50) – está simbolicamente condenado a morrer, quando, no terceiro ato, esta personagem é assassinada pela própria irmã. Julia, movida pelo ciúme, estrangula – com um lenço que usa ao pescoço – sua irmã, Maria da Luz. Um crime que nos trás à memória o Mito bíblico de Caim e Abel (Gn 4,10-11)[1]. No drama O Lôdo, porém, não flui sangue e, por isso, a Terra não pode assumir a imagem de matriz protetora, que, em conformidade com o simbolismo cósmico, reabsorve, no fim do ciclo, o elemento subtil da vida, simbolizado pelo sopro ou pelo sangue (Cf. GIRARD, M., 1997: 561). A Terra, nesta peça de Alfredo Cortez, não pode assumir a imagem de matriz protetora[2], já que a esta corresponde, do ponto de vista simbólico, a imagem da mãe; uma imagem que, no drama, é apresentada pela negativa. A devassidão e o álcool adormecem o quotidiano abominável de Domingas Capelôa, que dessa forma o rejeita, porque a sua vida é uma luta permanente com ‘O Lodo’: imagem terrífica, que não abandona a sua mente – nem mesmo durante o sono, apoderando-se dos seus sonhos:


DOMINGAS
Duvidas? Julgas que o lôdo desistiu de mim? Nunca mais desde essa hora. Apoderou-se-me dos sonhos… Fazia-me acordar num grito. Via-o em cada sombra… Era uma massa negra com os olhos fitos em mim (p. 40)


Por isso, Domingas prefere não dormir, fazendo da aguardente a sua companheira de luta, durante as noites de vigília (“Domingas: Nunca me deito enquanto não é dia”, p. 30). É já na madrugada de uma dessas longas noites de luta desigual que a morte surge, por fim, para levar Domingas Capelôa, que se despede da existência terrena, gritando três vezes “Perdão!…”:


DOMINGAS
Caminhando de mãos erguidas para o fundo – Morta!… A minha rica filha!… – Aproxima-se timorata do cortinado. Vae levanta-lo. Vacila. Ergue por fim a cortina e recua n’um grito. Depois caminhando novamente de mãos postas – Perdão!… Perdão!… – Mais alto – Perdão!… – Leva as mãos ao peito, cae de costas, contorce-se uns segundos e queda logo inerte. Julia corre a acudir-lhe (pp. 76-77).


É neste cenário que termina a vida de uma mulher a quem ‘o Lodo’ perseguiu desde a infância. Uma mulher a quem a vida não ofereceu opções, porque era viúva, pobre e, num tempo de doença, ficando impossibilitada de prover ao sustento de duas filhas, ainda crianças, é ‘empurrada’ para a prostituição pela própria sociedade que a condena. Porquê, então, este triplo grito de ‘Perdão’, no desfecho? Talvez a mitologia africana nos ajude a compreender este derradeiro grito de Domingas, através de uma lenda (cf. VERGER, P. F., 2002: 86-91), que se inscreve na Tradição oral do culto aos Orixás[3], e que conta a história de como Nàná Buruku (ou Nàná Bùkùkú ou Nàná Brukung), uma divindade muito antiga, teria fornecido a matéria-prima da qual o ser humano foi modelado – o lodo (lama ou argila) –, já que Nàná Buruku é a deusa das águas estagnadas dos lagos e dos pântanos lamacentos.

Nas danças rituais em honra a esta deusa, que são precedidas de uma noite de vigília, em que se bebe muita cerveja de milho, os iniciados desfilam, dançando e gesticulando, de forma a exteriorizar a fadiga originada por uma longa viagem simbólica, que corresponde a uma dura provação. Nàná Buruku pode então manifestar-se numa das suas iniciadas, sendo logo cumprimentada pelos gritos de “Salúba!”. Estes são os gritos que aclamam a transmutação operada na iniciada, pela incorporação da deusa.

Os gritos de ‘Perdão’ que Domingas Capelôa pronuncia no final do drama podem comparar-se a estes da iniciação a Nàná Buruku, que, segundo outra lenda, é inimiga de facas[4] (ou ‘Facões’), à semelhança de Domingas Capelôa, que também vê no seu antigo amante, Manuel Facão, uma espécie de ‘mal metálico’, quando afirma, referindo-se ao amor que ainda sente por ele: “Há realmente um elo de ferro que me chumba a isto para todo o sempre… Uma prisão de que ninguém me pode libertar…” (p.46).

No final de uma vida dolorosa, de dura provação, num momento passional de amarga lamentação (cf. nota 4), Domingas Capelôa reconhece que – também ela – é ‘O Lodo’, a matéria-prima da qual a sua filha, agora morta[5], fora criada.


[1] O relato bíblico funda-se, porém, em mitos mais antigos (cf. THURLOW, G., [s.d.]: 17).

[2] Acrescente-se, contudo, que a forma como Maria da Luz é assassinada pode remeter simbolicamente para as superstições religiosas portuguesas, e para os ‘amuletos em forma de nó’. Segundo esta tradição popular, estes amuletos, que se colocam ao pescoço, ‘prendem o mal’, “fixando o espírito malévolo (ou detendo a sua acção)”, ainda que o nó, na magia, também possa ter por fim “deter um espírito bom, que defenda quem o traz consigo”. O costume de, ainda hoje, se colocarem fitas de cores, na testa ou ao pescoço dos animais, é fundado nesta crença antiga (Cf. VASCONCELOS, J. L., 1988: 118-119). Assim sendo, Julia, ao estrangular a irmã com o lenço que usa ao seu próprio pescoço (“Julia: […] Tirando um lenço que traz ao pescoço e dobrando-o em tira […]. § […] Passa-lhe o lenço pela boca cruzando-lho na nuca […], indo buscar ao outro lado a ponta mais comprida do lenço e passando-lh’a pelo pescoço. […] Julia põe-lhe um joelho na nuca, puxa o lenço. Mata-a”, p. 72), estaria simbolicamente a pôr termo às intenções de Maria da Luz de ‘salvar’ Domingas Capelôa, ‘fixando’ o que resultaria de malévolo para si, nessa ação: a futura falta de apoio financeiro por parte da mãe, mas, sobretudo, a impossibilidade de resgatar o seu amor. Atente-se nesta declaração, feita por essa personagem: “Julia: […] que também cá a mim, louvado Deus, nunca ninguém me quiz salvar”, p. 74).

[3] Deuses dos iorubas, que, sendo cultuados originariamente em África (Nigéria, ex-Daomé e Togo), foram exportados para o Brasil e Antilhas, há séculos atrás, juntamente com os escravos. A noção de família, que compreende tanto os vivos como os mortos, encontra-se subjacente a esta religião dos Orixás, que podem ser ancestrais que atingiram a divinização, através de poderes ou conhecimentos adquiridos durante a vida terrena. Neste caso o Orixá é considerado um bem de família e é transmitido pela linhagem paterna. Mas o mais interessante reside no facto de a passagem da vida terrena à condição de Orixá se efetuar, geralmente, num momento passional de amarga lamentação (cf. VERGER, P. F., 2002: 8-11).

[4] A proibição do uso de facas e outros instrumentos de metal, declarada por esta deusa, encontra-se registada nesta outra lenda: “Disputa entre NANÃ BURUKU e OGUM”, in VERGER, Pierre (1985) – Carybé: lendas africanas dos Orixás, Salvador, Corrupio, pp. 63-65.

[5] Ainda segundo a mesma lenda, quando uma vida humana termina, Nàná Buruku exige de volta o que é seu. Uma ideia que aparece expressa no drama, em termos idênticos: “Domingas: […] Vi-o espumar de raiva. Tiravam-lhe o que era d’elle” (p.40).


2. Filiação estética. Na sua obra Über das Geistige in der Kunst, Kandinsky (1952: 43-44), na sequência de uma reflexão sobre o estado geral de decadência em que a Europa se encontra, do ponto de vista religioso, científico e moral (considerando-se que foi Nietzsche quem abalou esta última), elucida-nos acerca do papel que desempenham a Literatura, a Música e as Artes Plásticas, num tempo em que o ser humano é coagido a praticar um ato de introspeção.

Enquanto ser humano de sensibilidade privilegiada, inserido numa sociedade estruturalmente decadente, o artista será o primeiro a captar essa necessidade introspetiva, que o levará a desligar-se do que é meramente exterior, aparente e até ilusório. A consequência deste desprendimento manifestar-se-á, então, na transformação intelectual (“Geistige Wendung”) que se opera na mente do artista, e da qual a obra de arte será, então, a expressão concreta.

No campo da Literatura, um artista que merece ser mencionado – como alguém que soube exprimir esta transmutação – é o poeta Maeterlinck. Foi ele o verdadeiro introdutor do fantástico e do transcendente no campo da produção literária. Por isso, Kandinsky afirma que Maeterlinck pode ser considerado um dos primeiros artistas-profetas, um dos que souberam registar artística e visionariamente essa decadência que já germinava no seio da Europa, nos finais do século XIX. Maeterlinck é, assim, um desses artistas em que o talento revela uma grande sensibilidade – qualidade que permite ao artista antever o futuro e conduzir os seus contemporâneos até esse mesmo futuro (cf. Id.: 39), preparando-lhes o caminho. São estes os principais fundamentos em que a Obra de um artista tem de estar alicerçada, para a podermos filiar na corrente estética simbolista, que visa, acima de tudo, a totalidade, a que subjaz uma conceção cíclica da vida, em permanente evolução. Logo, Alfredo Cortez não pode ser considerado um desses artistas-profetas, já que a sua Obra não visa conduzir os seus contemporâneos a um futuro que se antevê, num presente em transmutação; mas, sim, movê-los a refletir, de forma mais aprofundada, sobre a sua existência presente, num tempo concreto. No entanto, no drama O Lôdo, ao recorrer a imagens arquetípicas e universais, a que subjazem mitos, lendas, alegorias – ou seja, impregnando o discurso narrativo de uma dimensão simbólica transcendental – Cortez desvia-se, intencionalmente, de uma estética realista/naturalista, de inspiração iluminista/racionalista, que ainda predominava nas obras dramatúrgicas do seu tempo, trilhando um novo caminho[1].

A principal tentativa de formulação dialética das relações entre Mythos e Logos deve-se, no século XX, a Max Horkheimer e Theodor W. Adorno; no entanto, já os românticos alemães, principalmente Friedrich Schlegel, começaram a refletir sobre esta questão. Um grande avanço, porém, conseguido neste sentido, dá-se com Sigmund Freud e a psicanálise, que surge na sequência das reflexões nietzschianas sobre este tema, e a que C. G. Jung, por sua vez, irá dar continuidade, ainda que adaptando-as às suas próprias conceções, que pretendiam ser menos reducionistas, em relação à mitologia clássica. No entanto, será na sequência da conceção freudiana do Mito que tanto Thomas Mann como Hermann Broch tentarão reencontrar, nostalgicamente, uma linguagem perdida que o Mito encerra (cf. WILKE, S., 1992: 21; 29-33). Inseridas nesta mesma linha evolutiva de pensamento, também surgirão as primeiras manifestações da estética surrealista (cf. UPJOHN, E. M.; WINGERT, P.
S.; MAHLER, J. G., [s.d]: 194-224), que pretendem afirmar a necessidade de recriação de mitologias que contribuam para a edificação de uma nova mundividência, na medida em que facultem ao ser humano a possibilidade de este se rever sob aspetos que até aí eram considerados invulgares ou mesmo reprimidos, tais como os do onírico, da líbido ou da loucura. Desta forma, surgirão então produções artísticas capazes de expressar uma ontologia da finitude e do mal – que Paul Ricoeur diz não ser compreensível racionalmente –, expondo o drama humano existencial (cf. 1969: 699-713). O Lôdo é uma dessas produções artísticas.


[1] Como vimos, a estrutura simbólica de O Lôdo é semelhante à de Fleurs du Mal, de Baudelaire (cf. 1.3), no entanto, tal constatação não é suficiente para podermos considerar que na peça de Cortez se encontram marcas concretas da estética simbolista, pelas razões que apresentamos acima. Uma estrutura simbólica idêntica é explicável, neste caso, pela simples razão de o Surrealismo ser tributário da estética simbolista.


Conclusão. O texto dramático O Lôdo apresenta-se ao leitor de hoje como um diálogo que o seu autor estabelece com um determinado cenário histórico e cultural, mas um diálogo que ainda é atual, pois o seu discurso atinge uma dimensão simbólica transcendental, que é veiculada por formas primárias universais, que fazem parte do Inconsciente Coletivo. Estes arquétipos enraízam em mitos que se exprimem numa linguagem que – não obedecendo a um discurso lógico e racional, mas apelando à sensibilidade imaginativa do ser humano – se revela capaz de comunicar essa face oculta da realidade que o Logos não consegue exprimir. Logo, ainda que Cortez revele, neste seu drama, preocupações referentes a uma realidade sociocultural vivida num tempo histórico concreto – o período de vigência da República Democrática –, desejando a reconstrução dessa sociedade decadente, por meio da arte, é o subconsciente – ‘O Lodo’, o que no ser humano existe de mais profundo, irrascível, incontrolável, mantendo oculto o mistério das origens da vida – o que, verdadeiramente, constitui o centro das suas atenções criativas. Neste sentido, O Lôdo, composto por Alfredo Cortez em 1923, aproxima-se bastante da estética surrealista. Nesse mesmo ano, André Breton escreveria Clair de terre e é com algumas palavras suas, extraídas do Second Manifeste du Surréalisme, de 1929, que gostaríamos de terminar:


« Tout porte à croire qu’il existe un certain point de l’esprit d’où la vie est la mort, le réel est l’imaginaire, le passé est le futur, le communicable est l’incommunicable, le haut et le bas cessent d’être perçus contradictoirement » (André Breton apud ASPLEY, K., 2010: 152).


BIBLIOGRAFIA


Fonte

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Estudos

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O estudo aqui apresentado foi elaborado em 2012, no âmbito do Curso de Doutoramento em Estudos Portugueses (UAb), para a disciplina História do Teatro Português, ministrada pela Prof. Doutora Ana Isabel Vasconcelos.


Fernanda Alves Afonso Grieben

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Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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