Nas tonalidades do oceano Atlântico


Ainda me lembro, exatamente, das suas palavras:

– Tem cuidado para não sujares o vestidinho no recreio… e vê lá que com a brincadeira não te esqueças de comer o lanche…

A minha mãe vive permanentemente preocupada com a minha falta de apetite. Eu, com seis anos de idade, vivo para brincar e ser criança. A infância é um cavalo veloz, e quem o cavalga sente a necessidade de viver o momento presente, plenamente. Assim também é comigo. E neste dia em que a escolaridade inicia para mim, eu sinto que algo fundamental começa a ser-me roubado: a minha liberdade, o meu direito de viver cada momento da minha infância de forma plena e despreocupada.  

É um dia de outono. Princípio de outubro, ainda quente. Pela sua mão eu caminho, direção à escola, que só fica a uns trezentos metros de distância de minha casa. O caminho parece-me longo. Os meus passos são lentos.

– Mas porque é que eu tenho de ir para a escola? – pergunto, insatisfeita com a minha situação. 

– Para aprenderes!

– Mas eu já sei ler e contar… – argumento, triste.

– Vais ver que vais gostar! Estão lá muitas meninas da tua idade, e no recreio podes brincar com elas.

Eu não estava habituada a brincar com meninas da minha idade, nem sabia se isso me iria agradar… Nós tínhamos mudado de casa, havia pouco tempo, e aquela rua que percorríamos era-me estranha. As casas eram-me estranhas. As pessoas com que nos cruzávamos, adultos e crianças que também se dirigiam à escola, eram-me todas estranhas. Senti-me um pouco como um alienígena… Aquele não era, seguramente, o meu mundo. Esse, ficara para trás, com o meu quintal, com as plantas, com as árvores, com as flores, com a rua sossegada que eu bem conhecia. E as suas casas que eu podia contar pelos dedos das minhas mãos. E os vizinhos que eu conhecia pelo nome.

– Vais ficar na sala da neta da vizinha. Aquela menina que conheceste no outro dia. Lembras-te?… Procura-a no intervalo, prometeu que te apresenta às amigas.

Continuo em silêncio, amuada. Os argumentos não me convencem. Na realidade, eu lembrava-me bem da neta da vizinha, com quem não simpatizara. Era um ano mais velha do que eu e tinha de repetir a primeira classe por ter reprovado. A avó explicou longamente as razões para o insucesso da neta. Estive muito atenta à explicação, que se resumia nisto: professora incompetente, turma com muitas alunas, neta com dificuldade de concentração e levada por más companhias…

Chegamos à escola. Tenho de me colocar numa longa fila. Quando chega a minha vez, mostro o boletim das vacinas. Recebo mais uma. De seguida, sou encaminhada para uma sala de aula. Entro e procuro um lugar junto das janelas que dão para o recreio. Sinto o forte desejo de me transformar numa ave, e ser capaz de voar, para fugir por uma das janelas.

Não me crescem asas. Não há fuga possível. Sou obrigada a permanecer naquele canto da sala de aula, repleta de meninas da minha idade. Nunca tinha visto tantas juntas, nem na televisão! Observo-as pormenorizadamente, uma a uma. Estavam quase todas tão assustadas como eu. Sinto-me um pouco mais aliviada. Afinal, não estava sozinha naquela barca do desespero…

A professora, senhora de mais idade e figura pouco simpática, está toda vestida de escuro. De pé, à nossa frente, em cima do estrado, lança ameaças preventivas, nomeando todo o tipo de comportamentos que serão punidos. Nenhum me fica na memória. Só o pavor.

Antes de tocar para o intervalo, porém, a professora passa uma informação que capta toda a minha atenção, seguida de uma proibição:

– No recreio, têm de ficar na parte da frente que dá para a rua, porque, na parte de trás, estão sempre rapazes ciganos, sentados em cima do muro, a tentar meter-se com as meninas. Não podem ir para esse sítio. Os ciganos são mal-educados e muito perigosos!

Sou das últimas a chegar ao recreio. A neta da vizinha deve ter sido das primeiras, porque estava sentada numa carteira perto da porta de saída. Procuro-a, como a minha mãe me dissera para fazer, mas não a distingo entre todas aquelas crianças que correm, saltam e gritam por todo lado. Fico sem saber o que fazer. E, observando a multidão, também não consigo descobrir qual poderá ser o meu lugar naquele espaço de brincadeira desenfreada. De alguma forma, sinto que não pertenço ali, e lembro-me dos rapazes ciganos, e da parte de trás do recreio. Dirijo-me para lá. Um misto de curiosidade e receio conduz os meus passos.

É um pequeno terreiro, circundado por um muro de pedra, não muito alto. Do lado direito, em cima do muro, estão quatro meninos, um deles ainda muito pequeno, ao colo do mais velho.

“Serão os rapazes ciganos?”, pergunto-me, perplexa.

Não sinto medo. Não parecem nada perigosos, são somente crianças tímidas, como eu. Observo-os, observam-me, sem trocarmos uma palavra.

Abro a pasta para tirar o lanche que prometera comer: um pão de leite com manteiga e uma banana. Ao pôr de novo a pasta às costas, porém, talvez pela falta de hábito, deixo cair o pão, que segurava, juntamente com a banana, numa das mãos. Caiu na terra suja, deixo-o caído.

Um dos meninos que me observam, de cima do muro, pergunta-me:

– Não comes o pão?

– Não posso, caiu ao chão… – respondo.

– Podes dar-mo? Eu como – diz-me ele.

Olho-o com grandes olhos de espanto.

Não sei ao certo o que pensei, mas ainda me lembro bem da dor que senti, no peito. Uma dor de profunda tristeza.

Curvo-me, apanho o pão do chão, sopro o pó da terra que a ele se agarrara, e caminho na direção do muro que está a poucos metros de distância.

O menino estende-me a mão direita. Eu, em bicos de pés, estico muito o braço, e entrego-lhe o pão. E enquanto isto acontece, o bebé, ao colo do menino mais velho, choraminga e faz algum  gesto que eu não entendo. Pergunto:

– O que é que ele quer?

– Viu a tua banana. Ele gosta muito de bananas – responde-me o menino a quem eu dera o pão.

Por um momento, hesito.

Se lhe oferecesse a minha banana, eu ia ficar sem lanchar, e se a minha mãe descobrisse isso, ia ficar zangada. Mas foi só um momento de hesitação.

Logo no momento seguinte, estico de novo o braço, com a banana na mão direita. O menino mais velho baixa o menino pequenino na minha direção, para que ele próprio se apodere da banana, com um grande sorriso nos lábios.  

Observo-o bem de perto, e dois olhos imensos, redondos, brilham para mim, nas tonalidades do oceano Atlântico.


Fernanda Alves Afonso Grieben

[email protected]

Sou pintora, originária do Norte de Portugal, mas resido atualmente na Alemanha. Também gosto de escrever textos literários, sobretudo para a infância. Faço-o, principalmente, para mim própria. No entanto, alegro-me sempre que encontro uma possibilidade de partilhar a minha escrita com as demais crianças, de todas as idades. Sou Mestre em Teologia (UCP); Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Doutorada em Estudos Portugueses, na especialidade de Literatura Portuguesa (UAb).

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