Ginkgo Biloba (VII)
EU SOU a árvore que Goethe cantou
PRIMAVERA
O parque onde me plantaram não era, com toda a certeza, mais belo do que o jardim onde eu germinara e crescera, nos arredores de Xangai. Nesse tempo, porém, ele afigurou-se-me bem mais encantador.
A diversidade de vegetação tornava-o alegre e exótico, e as diferentes espécies de pássaros, que aí afluíam em grandes bandos, eram quase todas estranhas para mim.
Eu encontrava-me agora no coração da Europa, na cidade de Heidelberga, no grão-ducado de Baden. E foi nesse lugar, tão distante da minha terra de origem, que eu tomei consciência de como a mentalidade, os usos e os costumes de um determinado povo são capazes de modificar a paisagem natural das terras em que habita.
No Império Chinês, predominava a busca de uma relação de equilíbrio entre as forças da Natureza. Possuidor de uma sensibilidade diferente da do povo europeu, o povo chinês agrupa as suas plantas consoante a sua força interior: junta, em proporções equilibradas, o positivo e o negativo, o masculino e o feminino, o ativo e o passivo, ou seja: o Yang e o Yin… Assim, nós, árvores da espécie Ginkgo biloba, éramos quase sempre plantadas aos pares: uma árvore masculina com uma feminina.
Na minha nova terra, porém, eu podia sentir a força de um povo ambicioso e construtor de ideais. Mas a genialidade e o espírito inovador, que não sentira no Oriente, traziam consigo o individualismo, o egoísmo e, consequentemente, uma maior falta de respeito pelo meio ambiente…
Era um mundo de mais possibilidades, para o bem e para o mal, porque era filho dos extremos, e não do equilíbrio.
No entanto, esse mundo, do qual eu agora fazia parte, encantava-me, ainda que não se harmonizasse com as minhas origens orientais. Por que razão seria assim?
Foi isso mesmo o que prometi a mim própria descobrir, estando sempre atenta, e procurando ver em tudo o que me rodeava, ou até mim chegava, uma possibilidade de aprender algo de novo…
Certo dia de primavera, olhando em meu redor, reparei num pequeno malmequer que tinha desabrochado espontaneamente perto de mim. Era bonito e singelo. Fiquei durante algum tempo a observá-lo em silêncio.
O pequeno malmequer, porém, sentiu-se muito perturbado com o meu olhar examinador. E, passados alguns momentos, perguntou-me:
– Porque me olhas dessa maneira?
Permaneci por mais algum tempo em silêncio. Na verdade, eu não sabia ao certo por que o observava.
Disse-lhe, por fim, ainda indecisa:
– Tu fascinas-me…
O pequeno malmequer, porém, não estava habituado a despertar a admiração noutros seres vivos e ficou bastante confuso com as minhas palavras. Perguntou-me, mais perturbado do que anteriormente:
– Como é possível que um simples malmequer, como eu, seja capaz de fascinar uma árvore tão bela e majestosa, como tu?!!
Chegara a minha vez de ficar inquieta. “Bela e majestosa!”, pensei para comigo. Assim, nunca me tinha sentido.
– Porque pensas isso a meu respeito? – perguntei-lhe.
– Mas quem não pensa assim? – retorquiu o malmequer. – Aqui, todas as flores pensam como eu.
– Não compreendo porquê! Não me sinto mais importante do que qualquer uma de vocês…
O pequeno malmequer fixou-me, muito surpreendido.
– Então tu pensas que uma árvore da tua espécie, que pode durar centenas de anos, senão milhares, e atingir dezenas de metros de altura, não é mais importante do que um pequeno malmequer, que só dura alguns meses do ano e não passa de poucos centímetros do solo? – perguntou-me, por fim.
– Eu tive uma Amiga, há já vários anos, com quem só convivi durante um breve espaço de tempo – contei-lhe então. – Ela era tão pequenina que conseguiu passar por uma simples fenda de uma caixa de madeira onde eu me encontrava aprisionada. No entanto, para mim, ela foi o ser vivo mais importante que eu conheci até hoje. Porque partilhou comigo algo que me transformou…
Como vês, não é importante o tempo que dura um ser vivo, nem o seu tamanho, nem a sua força física. Importante é o que ele tem para dar.
– Mas o que tenho eu para dar? – perguntou-me o pequeno malmequer, que me escutava muito interessado.
– Isso, só tu poderás descobrir – esclareci. – Mas, por vezes, damos, sem nos apercebermos de que estamos a dar: como quando damos algo que é especificamente nosso, que possuímos desde sempre e, por isso mesmo, não lhe atribuímos o verdadeiro valor. Também foi assim para a minha Amiga aragem quando me disse que não há mistério maior que o da procura. Para ela, esta afirmação transmitia um saber evidente, ao qual não atribuía um valor especial. Porque se fundava na sua experiência de vida, fazia parte da sua natureza de vento. Dentro de mim, porém, as suas palavras abriram uma porta. A porta de um compartimento que tinha sido cerrado, há já milhões de anos, pelo meu antepassado mais remoto.
– Então tu pensas que se pode dar, sem se ter consciência de que o fazemos?
– Claro! Ainda que ninguém possa dar o que não possui. Logo, é importante construirmos o nosso ser interior. Procurarmos, e nunca nos darmos por satisfeitos com o que já alcançámos.
– Começo a compreender-te… – comentou o malmequer.
– Sabes, há pouco – continuei –, quando me disseste que era majestosa, surpreendeste-me. Contudo, analisando melhor, posso concluir algo de importante através do teu julgamento…
O pequeno malmequer virou as suas pétalas na minha direção e, esticando bem o seu caule, dirigia-me toda a sua atenção, como se quisesse absorver as minhas palavras e transformá-las numa parte de si próprio. Gostei da sua atitude, que revelava um grau de humildade que as árvores da minha espécie não cultivavam, e prossegui o diálogo:
– Parece-me que a maior parte dos seres vivos comete esse mesmo erro. Julgam-se, comparando-se com os outros, em vez de procurarem o seu verdadeiro valor.
– Queres dizer que eu não devia julgar o meu valor pelo teu? – perguntou-me o malmequer, um tanto intrigado.
– Ou por aquele que eu tenho para ti! Pois o meu verdadeiro valor não depende do julgamento de outros seres…
Senão, repara: para ti, eu sou uma árvore grande e poderosa, porque tu és pequeno e pouco resistente, em relação a mim; no entanto, para uma montanha de milhares de metros de altura e muitos quilómetros de extensão, eu não passo de uma pequena árvore insignificante, entre tantas outras que a formam.
– Interessante! – exclamou o malmequer. – Nunca tinha visto isso assim. Mas parece-me que se os seres vivos fossem capazes de compreender a vida dessa forma, poderíamos ser todos bem mais felizes…
“A felicidade!”, pensei eu então. O malmequer tinha razão. Não era isso, afinal, o que todos nós procurávamos? E o maior obstáculo para a atingirmos, construíamo-lo nós mesmos…
Fiquei longo tempo em silêncio, observando todo o parque onde estava plantada. Era como se o visse pela primeira vez. Tudo parecia calmo e harmonioso, sem exigências exteriores. Mas eu interrogava-me: “E a luta?” Essa luta interior que todos os seres vivos que me rodeavam travavam consigo próprios, sem mesmo se aperceberem disso. A luta, para descobrirem qual o seu lugar na escala de valores. E a luta, para o manterem…
Quanta energia desperdiçada… para nada!
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